23/01/2010

Fotografias

Perambulando por um dos corredores do hospital universitário, um dia destes, dei comigo parada diante das fotografias de uma das turmas de formandos do curso de medicina. Uma das turmas mais antigas, talvez das primeiras a inaugurar essa moda da fotografia de beca. Todos vestidos da mesma maneira, esmagadora maioria masculina. Chama a minha atenção a multiplicidade de expressões em todas essas fotos. Duas delas chamam-me mais, e detenho-me um tempo maior diante delas, parafraseando a cena do filme “Sociedade dos poetas mortos” em que o professor Keating leva a turma para o hall onde estão as fotos dos ex-alunos da escola, nos tempos em que lá estudaram. Diz que é preciso prestar-lhes atenção, porque, dali onde estão imortalizados, sussurram-lhes coisas importantes dos tempos que se foram. Essas pessoas que chamam a minha atenção também me sussurram alguma coisa, mas mesmo chegando mais perto eu não as consigo ouvir. Olho-as nos olhos, e para isso tenho de encostar a testa no vidro. E escuto, por fim - dizem que seus sonhos são maiores que o tamanho das suas fotos, maiores do que as próprias fotos, no preto e branco que lhes sobrou. Mal cabem dentro deles mesmos, olham expectantes para o futuro, perguntando-se quem os olhará depois que tiverem cumprido a sua missão. Desloco-me para as vitrines das fotos mais recentes, as becas parecidas, mas tudo mais brilhante, mais estudado, preocupações diferentes dentro dos olhos. As fotografias novas não me sussurram nada. Acho que ainda não envelheceram e por isso não sabem falar.

Umas semanas atrás, ao abrir meu email, recebi algumas fotos, fotos antigas da cidade de Lisboa. Muitos chafarizes, pessoas apinhadas à sua volta numa época em que não existiam canos. Duas delas capturam-me, e sinto mover-se dentro de mim um sentimento que não consigo definir, mas me faz lembrar dos sonhos dos formandos da medicina. Um vendedor de castanhas, na sua bicicleta, olha-me intensamente do lado de lá, parecendo orgulhoso de ser fotografado e ao mesmo tempo dono de um segredo que não pode revelar. Descubro-lhe o nome, ao canto da foto: Tomé Fonseca. Logo me lembro da história que ouvi em pequena, do vendedor de castanhas de olhos azuis e pele cor de azeitona, que encantava as raparigas que frequentavam o Largo do Rato em fins do século XIX. Um dia, vendendo calmamente as suas castanhas no início do outono lisboeta, Tomé viu-se rodeado de um magote de homens. No seu português cantado, denunciando a origem a sul, Tomé quis defender-se, mas os homens eram muitos e chegaram armados de pedras e paus. As meninas que compravam castanhas fugiram em busca de suas mães, nenhuma delas sequer se virou para o defender. De nada valeu a Tomé explicar que nada sabia da menina Constança, nem sabia que tivesse sido encontrada morta na calçada da Estrela – era dele que ela comprava castanhas todos os dias, desde que começara o outono. Como não lhe tinham valido os avisos do pai de que se mantivesse longe do cigano das castanhas, agora era com eles. E nunca mais se viu o Tomé Fonseca, o cigano das castanhas.

Outra fotografia mostra uma varina descarregando o peixe de uma traineira, atracada, deduzo, ao Cais das Colunas, o mesmo que acabou de ser restaurado, dando fim às obras do Terreiro do Paço que se arrastaram desde que eu me conheço por gente. Varinas ainda as há, continuam vendendo o peixe do Mercado da Ribeira, ali mesmo ao lado do dito cais. Já não descem das traineiras atravessando a prancha estreita e comprida, num balanço na cadência dos passos descalços, alguidar de peixe à cabeça. Manobra arriscada, essa do desembarcar o peixe - varinas eram mulheres de respeito, usavam chinelas bordadas a fio de ouro e representam a cidade de Lisboa na sua melhor forma quinhentista. Hoje, cada uma em sua barraca, continuam aos berros a vender o seu peixe. Lançam elogios aos rapazes que passam e agradam, desatam aos palavrões gritados quando alguém as chateia e não estão quietas um segundo – “Ó menina! Venha cá ver este pargo, está a querer lançar-se dentro da sua panela!”

Eu não cresci em Lisboa, mas mercado de peixe é o que mais há por todo Portugal. Dia de feira de peixe é dia de cheiro de peixe por todo lado, tudo fresco e acabado de pescar, e as mesmas varinas, que em outras cidades são as mulheres do peixe e ponto, gritam da mesma maneira. Metade do baixo calão que aprendi na infância foi com elas, enquanto a minha avó se desesperava para que saíssemos logo dali, que a minha língua segundo ela já era afiada o suficiente. Acho que, secretamente, ela gostava que eu visse como o mundo é variado, sempre ao seu lado e de mão dada, não fosse eu querer perder-me dentro dele.

Descubro, com essas fotografias que me coloriram estes dias, o quanto tudo faz parte de cada um, ainda que pouco ou nada se conheça. Pelo poder que tem de despertar o que dorme, a imagem apodera-se das nossas lembranças e distorce-as, alimenta-as, espreme-as, enovela-se pelo meio delas e obriga a que se atualizem ou, na pior (ou melhor?!) das hipóteses, que se inventem a si mesmas. É só permitir que aconteça e abrir a cortina que nos divide em possíveis impossíveis e impossíveis possíveis.

13/01/2010

Responsabilidade e autonomia dentro da geladeira

Estou a fazer um curso online com professores portugueses - e por isso mesmo o meu acento lusitano deve afirmar-se um pouco mais, a começar pela eliminação compulsória da maioria dos gerúndios! Hoje, a sugestão foi de mergulharmos as cabeças na relação entre autonomia e responsabilidade. Vem mesmo a calhar, diriam meus conterrâneos. Como tenho a favor (hoje, às vezes é contra) a diferença de fuso horário, ponho-me a pensar no assunto logo de manhã, que é quando os meus neurônios funcionam melhor – antigamente, reparo, era de noite; não sei se será da idade ou da mudança do eixo da terra, já me disseram que pode ser isso...

Parto do princípio, provavelmente óbvio, de que autonomia existe quando alguém se responsabiliza por algo – nem que seja por si próprio, garantia do “eu prometo” que antes de qualquer coisa responsabilizar-se sugere, como já dizia de forma parecida Nietzsche. Parece simples e fácil, mas na prática não é bem assim. Sou responsável pelo suprimento da minha geladeira, esta semana em que me toca ir às compras, e por isso tenho autonomia (que sempre é relativa, claro está) para enchê-la com o que eu quiser. Relativa porque estou limitada no onde comprar e no quanto comprar, a partir do que tenho dentro da carteira, do tamanho da geladeira e da quantidade de pessoas que pretendo alimentar com as escolhas que farei e as decisões que tomar. Mas tenho autonomia, e posso usá-la e usufruí-la (que são coisas distintas) porque sou responsável por essas compras, assim foi combinado, e em algum momento, se alguém tiver fome, será a mim que virá perguntar por que afinal a geladeira está vazia. E eu deverei responder, da melhor e mais honesta maneira possível, porque a responsabilidade era minha, e a autonomia para desenvolvê-la estava a meu lado.

No processo de definição da lista de compras, além de olhar para o que já existe, de maneira a não comprar o que não é preciso, devo manter em mente que, quanto mais eu pensar nos outros a quem a minha responsabilidade afetar (quem sabe não lhes pergunto o que querem comer?!), mais chances terei de exercer a minha autonomia com satisfação dupla: a minha própria e a geral da nação que habita a minha casa. Preciso responder por mim, e pelos meus atos, justificar por isso as minhas escolhas da melhor forma que possa, mas como me aconselhavam em pequena (e eu acho que vem de um trecho do Talmud) posso também me perguntar “se só respondo por mim, serei ainda eu?”.

Feitas essas considerações antes de por os pés na loja, lá fui e cá estou de volta: enchi a minha geladeira, a meio porque, confesso, entusiasmei-me por um lado e calculei mal as quantidades por outro. Estou satisfeita com as compras, assim como a minha família que agradece ter sido ouvida e não submersa nos meus apetites sazonais, que por estes dias se entusiasmam com os sucos de vegetais, que são práticos, indolores, não sujam panelas e são ricos em nutrientes, conforme atesta o livro que li nas férias.

Esta minha família, partícipe das minhas compras, tornou-se por esses caminhos minha cúmplice – combinamos juntos o que comprar, e agora abrimos a geladeira e sentimo-nos unidos e confiantes no que uns disseram e outros fizeram, num respeito mútuo que anima as almas. Pode ser que me façam responsável com confiança das próximas vezes, se não tiverem memória fraca e se eu tiver a suficiente coragem de lembrá-los de vez em quando de que “aquelas compras foram boas, não foram?”. E eu sentir-me-ei responsável, porque de alguma forma desenvolvi um sentimento de pertencimento com relação às compras que alimentarão a todos os meus e as visitas que sempre agradeço e festejo. Como as de hoje, que me agraciaram com um chá a meio da manhã, espontâneo e bem vindo, e se aproveitou do pão que comprei por sugestão de um membro da família.

Espero que a cumplicidade que criamos não lhes altere o olhar crítico, para que possam olhar para as suas escolhas, que hoje eu respeitei, e chegar à conclusão de que melhor seria que eu não as tivesse atendido. Para não parecer ingratidão, eu terei de olhar para o seu olhar e agradecer por ele, porque não há nada pior que cúmplices sem cérebro: não podemos confiar neles, porque estão cegos e surdos e não sabem por onde vão, obedecem ao vento que lhes passa mais perto. Espero que a cumplicidade que nos é tão grata não os impeça a todos eles de chegarem perto e me dizerem que é melhor que nesta semana outra pessoa se encarregue das compras; por isso, assim que me levante daqui, tratarei de reuni-los a todos para que combinemos que as regras precisam incorporar esse detalhe. E mais um: que sejamos amorosos uns com os outros e saibamos agradecer o que um fez mesmo que não o vá fazer mais, porque é melhor que outro o faça, porque o fará melhor.

Espero por fim que não se dividam entre si, e que as nossas compras possam ser assim serenas e tranquilas, com espaço na carteira e na geladeira para agradar a todos; fico feliz porque vejo um deles interessado no pedido do outro, inaugurando um diálogo que lhe possibilitará aprender mais um gosto, mais uma receita, mais um lanchinho a meio da manhã, furtado à minha vigilância que os quer a todos com fome na hora do almoço. O diálogo inaugurado produzirá novos frutos e cores, e assim ganhamos todos, sem clivagens que detonariam os laços solidários que todos os dias queremos, nesta minha família, alicerçar com solidez.

06/01/2010

Fernão Lopes e o alobairro

Dei comigo ontem à noite lendo Fernão Lopes. Sempre que se põe um pé além das cantigas dos trovadores, aparece esse senhor recém nomeado guarda mor da Torre do Tombo – ventos renascentistas o faziam escrever sobre o povo, embora se dedicasse ao registro do que faziam os reis. Atento às mudanças dos tempos, imagino que parte ativa da sua mesma engrenagem, Fernão Lopes era cronista, dando continuidade a uma profusão de escritores das vidas e dias dos reinados por boa parte da Europa, mas de um modo revolucionário, e precavido, porque com isso não perdeu o emprego. Mescla mais ou menos apurada do ímpeto historicista e do cultivo literato, dependendo de quem se tratasse, os cronistas portugueses deixaram uma abundância de registros interessantes sobre os primeiros séculos do país. Das prateleiras da Torre do Tombo que Fernão guardava naqueles idos de mil quatrocentos e alguma coisa, servem de matéria prima aos autores dos modernos romances históricos – quem gosta do gênero, e quer ler algo que acrescente, leia “A casa do pó”, de Fernando Campos.

Um excerto de Fernão Lopes aqui, outro acolá, já havia lido. Mas nunca tinha parado para ler uma das suas crônicas de ponta a ponta – escolhi uma das muitas em que assoma a vida fervilhante de Lisboa, cidade que de repente me atinge, por culpa desse homem antigo, com umas saudades líquidas, da cor e da textura das águas do Tejo. Diante delas passam os sentimentos do povo que palmilha Lisboa o dia inteiro, personagens anônimos que através da prosa acurada de Fernão, adjetivada no que há de mais preciso e exato, ganham vida e transpõem séculos, instalando-se aqui ao meu lado; quase lhes sinto o cheiro a mar violentando o rio através do estuário e os gritos enervantes das gaivotas em volta das traineiras de pesca.

Quem me fez lembrar Fernão Lopes, fazendo-me galgar as prateleiras onde o guardo, é outro cronista, mas este moderno, contemporâneo, combativo – Baptista-Bastos. Escritor e jornalista, ativo militante na Lisboa da resistência salazarista (e por isso mesmo demitido e perseguido antes de 74), publicou em 2001 um livro em que reuniu suas crônicas, todas elas sobre Lisboa. De certa forma cansativas, no dizer de quem as lê ao mesmo tempo em que eu, roubando-me o livro quando me distraio com outra coisa, depois dá-me trabalho lembrar-me de onde estava, usa uma linguagem rebuscada, que não se usa mais, e um estilo saudosista bem ao gosto do mais confesso alfacinha. Tem, no entanto, passagens bonitas e sensíveis, como a crônica que dedica à Rua da Bombarda, relembrando personagens de antes e de agora, como a família de indianos chegados de Moçambique ao fim do sonho imperialista português, e que proliferam pela rua, dando-lhe intenso colorido e nova sonoridade, talvez ressuscitando o ambiente da Lisboa dos séculos das navegações, fervilhante de pessoas e coisas e situações que pareciam de outro mundo. (Em outra destas suas crônicas, Bastos diz de um viajante de quinhentos que, ao voltar de Lisboa, teria exclamado: “Vi o mundo numa cidade”. Em outra, faz-nos água na boca, ao menos na minha que tem a sua memória, descrevendo as minúcias das tascas dos bairros antigos que se debruçam sobre o Tejo, cada uma com a sua especialidade, saladas de pimentos com sardinhas assadas, coentradas de cação, cozidos à portuguesa e jarros de vinho da pipa saltando animados de página em página.)

Na introdução a esse livro (que se intitula, diga-se de passagem, “Lisboa contada pelos dedos”), encontrei explicação para uma interrogação que me persegue há meses: porque é que, a estes textos curtos que escrevo, não os consigo guardar numa gaveta, como faço com outros mais longos, sejam contos que me satisfazem ou projetos tímidos de romances que se arrastam ao longo dos anos e aos quais não decido dar por findos? Diz o mestre Bastos que não há cronista sem jornal: “crônica é uma matéria para jornal; ninguém escreve crônicas exclusivamente destinadas a livro. Sem jornal não há cronista.” Jornal remete ao ritmo diário, à sua antecessora “jornada”, o caminho que se faz em um dia; no século XVIII, “jornal” era o pagamento de um dia de trabalho, e só no século XIX veio a significar uma publicação periódica de notícias, diretamente das terras francesas. O nosso alobairro vai se compondo, aos poucos, como jornal deste nosso bairro – dos avisos de carona aos relatos da seção policial, passando pelas às vezes quase que previsões meteorológicas, caminhamos a passos largos para a constituição efetiva de um periódico diário da Demétria, com a vantagem de sermos todos autores e leitores.

Fico mais tranquila - vinha me inquietando essa coceira no dedo, a sedutora tecla send atormentando-me em tons neon madrugadas adentro, e eu sem saber se estou atravessando os obscuros e mutantes limites do razoável. Agora, sei que obedeço aos cânones do gênero, mesmo que isso não me entusiasme em demasia, e apoio-me no que dizia o poeta: antes de subverter, entender. Tudo isso deu-me, ao menos, motivo para três coisas: reler Fernão Lopes, apresentar o Baptista-Bastos a quem aposto o desconhecia e expedir mais uma crônica, para o dia de hoje! Boa quarta-feira a todos!

02/01/2010

Palavras grandes que recriam saudades

Tive uma colega angolana (creio que no 4º ano) que chegou a Portugal logo após a Revolução dos Cravos ter se apoderado das ruas. Não vou saber agora por que mesmo é que ela e sua família chegaram tantos meses antes de Lisboa ser inundada pelo que, na altura, eram chamados de “retornados” – oriundos dos novos países tornados independentes em 1975, que pelos mais variados motivos preferiam manter a nacionalidade lusa a assumir a incerteza de uma nova nação, africana e cheia de horizontes. Incerteza por incerteza, não sei qual será a avaliação que farão hoje os atores daqueles dias, mas certamente os bairros de lata por toda Lisboa e arredores não parecem tão diferentes das cidades de caniço pela África ex-colônia dos dias de hoje.

A Glória veio de Angola, nascida em Benguela, oeste do país, e, dentre as muitas coisas que trouxe na sua bagagem, tinham grande efeito sobre nós em primeiro lugar a sua fada madrinha, que se presentificava repentinamente nas quinas do teto da sala de aula, fazendo-a gritar histérica nos momentos mais aterradores da vida escolar (as chamadas orais) e permitiam-nos dois dedos de ar fresco enquanto Dona Esp’rança a acalmava e jurava que “ali não há ninguém, menina, acalme-se lá...”. Desconfio que Glória tivesse esses acessos de visitação da sua madrinha fada quando não tinha a menor ideia do que tratavam as perguntas que estavam a ponto de lhe fazer, ou quando realmente estivesse morta de medo desse país estranho que não reconhecia as bagagens que ela trazia e a fazia refugiar-se nos braços dessa madrinha de nome impronunciável.

Disse-me, numa das raras vezes que fui até sua casa, burlando a vigilância da minha avó, que não podia mais cantar, que era o que mais gostava de fazer, porque só sabia cantar na “língua dos pretos” e tinham-na proibido de o fazer. Dizia que lhe diziam que esquecesse e se habituasse ao novo país e à nova vida, mas a mãe que mal saía da cama, o irmão desaparecido e a falta do pai que ninguém sabia ao certo onde estava, não permitiam que nada saísse da sua memória. Glória tinha saudades de tudo, do cheiro, da cor, da impressão do vento quando ia à praia e os vestidos voavam porque se aproximava uma tempestade, das viagens à ilha de São Tomé, de onde voltavam com café e cacau, da vida à beira mar com sempre sempre calor. Glória detestava a chuva miudinha e os dias gelados, a impressão de que nunca mais nada estaria quente e seco. Não sei porque, mas lembrar da Glória recria-me as saudades que nunca tive dela, como se tivesse sentido a sua falta ao longo dos últimos 30 anos. Muito raramente me lembrei dela, sequer consigo ver-lhe as feições claras na minha memória fraca, mas comove-me extraordinariamente o pouco de que me lembro.

Havia outro efeito que produzia sobre nós, que eram acessos de riso cada vez que uma palavra grande a deixava em pânico. Hoje, imagino que realmente ela sofresse, mas na altura só ríamos e ríamos e ríamos, porque o pânico dela a fazia falar coisas que ninguém entendia, na tal “língua de pretos” – provavelmente uma das variantes do umbundu que mais se fala em Angola. Era realmente estranha, e hilária, a Glória e o seu pavor de palavras grandes.

Fui lembrar-me da Glória justamente porque descobri que esse medo, que não é tão incomum, tem nome - quem tem medo de palavras grandes sofre de (pasmem!) hipopotomonstrosesquipedaliofobia – porque hipopoto significa “grande”e vem do grego; monstro, do latim, já se sabe porque não mudou nada; sesquipedali, também do latim, é ao pé da letra “palavra de um pé e meio de largura”, o que é grande realmente; e fobia, igual a medo.

A Glória, coitada, morreria de medo da palavra que fala do seu medo. (Como será mesmo que os hipopotomonstrosesquipedaliofóbicos se referem ao seu distúrbio?) Não existe maneira de descobri-la, depois de tantos anos, nem há na verdade motivo que me leve a isso, e esse impedimento e falta de motivo faz com que reveja diante dos olhos as imagens borradas de tantos que ficaram presos no passado, de onde acenam, como hoje a Glória, desesperados por se tornarem presentes e me fazerem entender que, sem eles, eu não seria quem sou, ainda que não me lembre de muitos dos seus nomes, da entonação das suas vozes ou do brilho dos seus olhos, ou até porque mesmo é que me lembro deles.

É claro que é a minha imaginação que os pinta desesperados assim; é mais provável que seja eu a procurar-me no passado em desespero, quando me parece tão difícil alimentar o presente com uma perspectiva de futuro, tudo tão enclausurado e preso dentro dos tubos finos das convenções – como aquelas que diziam, a Glória, que ela não podia cantar na língua dos seus pretos, que era, tanto quanto deles, a sua própria. Esse emaranhado de impressões de pessoas que já me foram e não me são mais, salva-me dessa agonia que deve ter sido a da Glória, talvez. As pessoas de hoje, num futuro quem sabe próximo, também se emaranharão em mim, e delas terei saudades, e por elas chorarei desconsolada por não as ver refletidas no espelho que construí, mas sabendo que com cada retalho de espelho desfeito posso construir um mosaico que reflita o mundo por onde andei.