27/12/2016
Pó
silêncio
no mais fundo
no poço do tempo
no fundo do poço do tempo
no silêncio do fundo do poço do tempo
no silêncio fundo e sem gosto da ponta da faca quando
15/11/2016
Quitéria
Quitéria traz o cangaço dentro do sangue. Ferve, como ele, diante da injustiça. Recolhe dentro de si o desvirtuamento do pensamento, do raciocínio. Quando lhe perguntam como se fazer amar, como atrair o amor para si, ela sorri por dentro e pensa que o que é preciso é amar a si mesmo e ao outro sem esperar ser amado no retorno. Mas ela sabe que a vida pede movimento, pede que nada esteja parado. E por isso sabe que amar sem desejar ser amado, mesmo sendo destino de todos, é um destino longínquo, e nesse caminho é preciso que os olhos que amam se encontrem nos que são amados.
Quando ergue os olhos para responder, suas armas em vida estão junto a ela, e ela diz "amar é como disparar bala". Bala no cano da arma, é coisa morta, quieta, sem motivo. Cravada dentro do alvo, seja carne, seja muro, seja pedaço de árvore no caminho, já perdeu seu voo, já atingiu seu destino, já encontrou a morte no outro, já não é de quem era seu dono. Amor, diz ela, é como bala: só vive é no trajeto. As balas que se guardam, são como moedas no bolso: você pode contá-las, recontá-las, olhá-las e revirá-las. Mas elas nada dizem, nada fazem, a não ser ficarem guardadas, inúteis para as coisas da vida.
As balas que encontraram o seu alvo, essas já se foram do mundo. Transformaram-se em outros, na morte, na vida, ou naquilo que não é nem uma coisa e nem a outra. Dizem respeito, de qualquer forma, ao alvo que atingiram, e quem as disparou pode virar suas costas e seguir seu caminho no mundo.
A bala lançada, saída do cano, viaja através do espaço e não tem tempo dentro de si. O mundo para, fica mudo, só o zumbido da bala dando sentido ao universo. O amor no impulso não se mede, nem se toca, nem acaba, nem começa, nem termina, nem silencia e nem fala. Como bala saída do cano, está no trajeto de si mesmo, sem que os olhos o acompanhem e a pele sinta seu peso.
Quitéria descansa os olhos e com as mãos faz o gesto da bala. Uma e outra vez, como um cano sem fim de projéteis, um nunca acabar de amor que se dá ao outro para se ter mais em si mesmo.
24/10/2016
20/10/2016
Agradecer-nos
Preciso te agradecer.
Por me teres ajudado a descobrir o
que carregava dentro sem saber. Por teres oposto as tuas mãos ao desdobrar do
meu coração.
Por teres sido da forma que apenas
poderia ter sido aquele que me abriria e me colocaria de joelhos diante de meu
próprio altar.
Preciso te agradecer.
E mais ainda me agradecer.
Por ter entrado e saído vezes sem
conta do paraíso para cair no inferno, e vice-versa e outra vez, e não ter
desistido de querer entender o que sabia ser possível saber. Por ter permitido o rasgar e o
estilhaço de mim mesma, para que de dentro desse casulo saísse a que sou hoje,
e que se desnuda sem pudor diante de ti para te agradecer.
Preciso te agradecer. E não é difícil
nem fácil. É antes o que é, necessário e óbvio como são os passarinhos quando
cantam ao nascer o sol, todo e cada dia. Preciso me agradecer por ter sabido
esperar. E aguentar a incompreensão de mim mesma, a minha falácia, as minhas
prisões. Sem ficar frente a frente com cada uma delas, continuaria vivendo em
seu interior. Eram precisas mãos que me arrancassem para fora, e as mãos que
chegaram foram as tuas. Selvagens e ácidas, e por isso mesmo o canal que
necessitava.
Por isso, nos agradeço, a nós dois, e
a esses momentos abertos, inconstantes e inquietos, apenas eles
tranquilos em seu interior, talvez sabendo de antemão da trilha de cada um.
Imagem inspiradora: Trois dauseuses,
1924. Silkscreen de Pablo Picasso.
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