27/10/2018

Mente, coração e mãos a serviço

A Umbanda convida-nos a tornar visíveis, com o nosso corpo, nossos pensamentos e sentimentos. Corpo mental, corpo emocional e corpo físico precisam de alinhamento, para que possam viver, de forma coerente, uma mesma intenção ou percepção. Observar a Natureza das coisas é um dos caminhos propostos pela Umbanda para perceber o mundo espiritual à nossa volta, e a forma como propõe a nossa relação com esse mundo também bebe dessa fonte. Estabelecer pontes significativas entre aquilo que pensamos, sentimos e fazemos é uma forma de nos aproximarmos desses mundos invisíveis e impalpáveis.

"Bater a cabeça", que é o ato físico de reverenciar o mundo espiritual ao chegar a um templo de Umbanda, é um convite a que, a partir da sede da nossa ligação mais sutil com esse mesmo mundo, estabeleçamos contato com os mundos sutis. Em nossa Casa, sob a orientação do Caboclo Pena Vermelha, significa deitar-se no chão com a cabeça voltada para o altar, ou congá, lugar onde se torna visível a energia que nos sustenta. Estamos entregues, e dispostos a essa entrega, em várias dimensões. Nossa cabeça, nosso coração e nossos membros estão rés do chão, assentados sobre aquilo que é comum a todo ser humano no planeta, em contato com essa dimensão que a todos iguala: o chão.

Nesse lugar, pensamentos, sentimentos e ações não se sobrepõem uns aos outros, antes se colocam a serviço, diante dessas forças que reconhecemos na natureza das coisas. Por isso a cabeça, o peito onde se aninha o coração, os braços e as pernas que projetam a nossa ação no mundo, estão deitados, alinhados nesse plano mais básico e sustentador de vida terrena. Tornamos visível a nossa prontidão e o nosso desejo de reconhecer a humanidade em todos os que pisam a Terra, não importando escolhas, passado, desejos ou ambições.

Nesse exercício, entender que o mundo físico, e as nossas ações dentro dele, está profundamente ligado aos nossos pensamentos e sentimentos, faz com que os três precisem ser coerentes entre si. Penso uma coisa, mas faço outra? Sinto de uma forma, mas as palavras que expressam meus pensamentos dizem outra coisa? O alinhamento entre o que se pensa, o que se sente e o que se faz é um fator de saúde - da própria pessoa e a da sociedade ao seu redor.

Observar a natureza das coisas demanda que o meu pré-conceito, o meu julgamento prévio, a noção que tenho das coisas até o momento, as minhas opiniões - tudo isso seja colocado em segundo plano. Eliminar o que me constitui hoje seria um contrassenso, porque esse meu pré-conceito, esse meu julgamento, é (também) a minha identidade. Mas identidade é algo que se reconstrói, todos os dias, a partir desses olhos novos que veem o que nunca foi visto, escutam o que não foi antes escutado, e permitem que o mundo avance e se modifique. Desafio? Sem dúvida.

Na vivência de terreiro, exercita-se esse olhar, e exercita-se a percepção de igualdade, a partir desse gesto básico e inicial que é o bater a cabeça. Saudamos todos os que integram o grupo, reconhecendo em cada um a própria humanidade, e assim nos preparamos para o exercício que nos propomos, que é o compromisso em servir. Mente, coração, braços e pernas na direção do Outro, do Próximo, a quem reverenciamos reconhecendo Nele a presença Dele, a presença divina.

Aguardem-nos tempos fáceis ou difíceis, parece indispensável que consigamos nos reconhecer no outro, que encontremos campos de encontro e de troca, que possamos superar a nós mesmos para superar quaisquer diferenças que possam existir entre nós e o outro. Nada terá valor se a coragem nos faltar, diz Rudolf Steiner; são as almas plenas que fazem tudo valer a pena, diz Fernando Pessoa. Que não falte à nossa alma a coragem de reconhecermos que este chão que todos pisamos é a Terra que a todos acolhe.

25/08/2018

Ser do Santo

Perguntam-me, depois do último texto, se eu eu virei umbandista. Virei, há anos.

Não gosto (nada) de definições, essas coisas que, mesmo não querendo, nos restringem. Dizer que se é uma coisa, poderá parecer que não podermos ser outras muitas. Porém, parece que chega uma hora em que são precisas, as definições. Para facilitar a comunicação. Ou estabelecer lugares de fala. Por isso, é bom esclarecer: sou umbandista, também.

Numa palestra bem interessante durante um encontro de escritores no começo deste ano, intitulada "The Healing Self" (o link você encontra logo aí abaixo), Deepak Chopra diz termos muitos e muitos corpos. A cada semana, um novo. A cada ano. A cada período de vida. Um bom ponto de partida para refletir que, mesmo ainda sendo os mesmos e vivendo, somos sempre uma nova edição desses nós mesmos.

Por isso, hoje posso dizer ser umbandista, dentre as várias outras coisas que também sou, as que fui e as que serei. Movimento e liberdade são fundamentais.

E o que vem a ser "ser umbandista"?

Vem a ser colocar-se num posto de observação de si mesmo e do outro que privilegia duas pequenas palavras: amor e afeto. Se formos à etimologia da palavra caridade (caritas) encontraremos ambas. E caridade é uma palavra indispensável no universo da Umbanda, essa religião brasileira que ergue a bandeira do amor e a leva alegremente, entre cantando e dançando, feliz de estar encarnada e atuante no mundo hoje, mudando e servindo conforme necessário, sincrética como a sociedade que reflete.

Ser umbandista é uma alegria diária, um lugar onde alicerçar a fé, um recanto onde encostar o cansaço, onde renovar a esperança, onde se nutrir de presença e "firmeza de cabeça", onde exercitar a fraternidade e onde perceber nítida e clara a presença do mundo que não podemos ver com os olhos físicos, mas que os olhos da alma reconhecem.

Parece um bom tema para escrever mais algumas coisas!



"The Healing Self", Deepak Chopra

19/08/2018

O ser deitado

Entre os muitos processos da Umbanda, a deitada é um dos que mais me encantam. Há casas e templos que a têm entre seus ritos e outros que não, por que a Umbanda é assim: nem todas as pessoas são iguais e fazem as mesmas coisas, nem todas as casas são iguais e fazem as mesmas coisas. E está muito muito certo que assim seja, desde que alguns princípios estejam observados.

É o que acontece na deitada, feita de puro amor, o princípio maior de toda Umbanda.

Chegam os filhos da casa no horário combinado e deitam-se no chão do terreiro: trazem a sua esteira, o seu lençol e a sua devoção pelos Orixás, pela essência divina que permeia toda a criação, das pedras à passagem do vento. Preparam as suas oferendas, essa forma de tornar visível a nossa compreensão e alegria pela vibração do divino e assim com ela nos comunicarmos. Acalmam seus corações da azáfama diária. Um traz um livro para ler durante esse dia de deitada, outro um pequeno trabalho manual ligado ao trabalho espiritual que realiza, um outro traz os pensamentos que precisa acalmar, outro as emoções que precisa soltar. Na deitada (que pode durar de horas a dias, e receber outros nomes dependendo de quem dela fale), o importante é cultivar a paz e o silêncio.

Deitam-se porque vão descansar. Descansar a alma no lago profundo que é a sua própria fé, esse lugar onde nos situamos quando temos certeza de sermos capazes de fazer o que devemos fazer. Descansam o corpo, descansam a alma, descansam o espírito. Retiram-se do burburinho diário, deslocam-se para um espaço e tempo de devoção e reverência. A devoção nos abre as portas do coração e a reverência nos faz rever quem somos, nos faz rever a essência do que somos, nos faz rever aquilo que nos acompanha sempre, ainda que às vezes esqueçamos.

Esse é um dos motivos pelos quais a deitada me encanta: porque permite espaço e tempo às pessoas, para que elas repousem e respirem, abrindo os braços e o coração àquilo que mais profundamente são.

Nós outros, os que ficamos do lado de fora do espaço da deitada (porque há um espaço determinado, protegido, silencioso, amparado e resguardado), passamos o dia trabalhando para que os que estão deitados o façam na maior qualidade possível. Resguardamos o silêncio, ficamos atentos. Preparamos a comida, cada tempero, cada elemento com seu porquê e sua forma. Pensamos nos motivos que nos levam a fazer o que fazemos. Ou não pensamos nada, porque ali não estamos por nós, mas por outros. Nos movemos na ordem, na disciplina e na limpeza. Promovemos harmonia, exercitamos a alegria de estarmos juntos no espirito da fraternidade que nos agrega uns aos outros. Enquanto eles se deitam na esteira, nós nos deitamos neste longo e frutífero rio que é o servir. Fazemos tudo o que fazemos pelos outros, os que deitam. E o serviço, essa dádiva, nos permite sair de nós mesmos sem nunca nos abandonarmos, e assim entrarmos no outro princípio da Umbanda. É quase no fundo aquele mesmo primeiro, porque a caridade é puro afeto e amor. A caridade desperta em nós e nos faz exercer o amor, amando-nos a nós mesmos como amamos os outros e vice-versa, e a deitada faz isso por nós. 

Quando termina o dia, e nos alegramos com os cantos que entoamos e nos emocionamos com o mundo espiritual que de tão tão perto nos acompanha e sustenta, podemos levar nas mãos, de volta às nossas casas, esse presente tão especial que é perceber como é grande e poderoso tudo o que nos habita.