11/11/2013

Curto e grosso

Botucatu, 11.11.13. Guarda Civil Municipal atende um chamado de emergência no centro da cidade. Questão de "desinteligência entre um casal", diz a crônica policial. Ele, 26 anos, partiu para a agressão. Desconhece-se o motivo; talvez se aproxime daquele "não sei porque bato, mas ela sabe por que apanha"... Pelas fotos, percebe-se não a falta de inteligência, mas o excesso olímpico de estupidez. Ela, 27 anos, não tem dúvidas: devolve na mesma moeda, só que à facada. As fotos mostram o resultado nas costas do sujeito. Dizer que "houve uma desinteligência entre o casal" chega a dar vontade de rir.

Adoro eufemismos. Essas formas sinuosas de se escapar do que deve ser dito. Para não ferir suscetibilidades alheias. Não ferir corações. Machucar sem necessidade. Ah, quanta bondade. Dizem-se as coisas pela metade e fica a consciência com a aparência de limpa. E melhor, sem quase peso. Aham. 

A atitude eufemística costuma responder por dizer de forma suave algo que de outra forma poderia magoar, incomodar ou agredir o outro. Ou seja: buscam-se palavras mais amenas para dizer algo que se quer dizer, mas não se sabe muito bem como, e ainda correndo o risco de ser chamado de bruto ou estúpido ou tosco.

As palavras prestam-se a isso. A serem manipuladas. Por isso é que há que prestar-lhes o devido respeito, e tratá-las com cuidado. Melhor nada dizer do que dizer pela metade, ou lançar mão do pó-de-arroz das avós pra cobrir o brilho que não se quer mostrar.

É um processo cognitivo da nossa evolução, diz um psicólogo e linguista canadense que vale a pena ler, Steven Pinker. Historicamente, trocam-se os nomes das coisas para que (espera-se) elas mudem. Ou mude a relação que temos com elas. Mas elas de fato só mudam quando de fato mudam as nossas atitudes (coisa mais óbvia...). Aquilo que fazemos. A nossa ação. Acho que ele tem razão, ao menos em parte. A mudança de palavras pode auxiliar a mudança de atitudes, pode ser até um sinal de alerta para a necessidade de mudança - mas só quando a mudança de atitude (portanto, de nós mesmos) está de fato no nosso horizonte. E não é assim apenas uma imagem tão linda, aquele ideal que não temos grandes pretensões de alcançar. Sobretudo quando pode custar-nos muito.

Por exemplo - roubo-o de Schwartzman, que o usou dia desses num de seus artigos. No começo do século XX, a palavra "alcoólatra" substituiu a usual, "bêbado". Para retirar a carga negativa e preconceituosa, etc e tal. Depois, mudou-se para "alcoólico". E agora a nossa opção é "dependente químico". As pessoas continuam bebendo, e mais. Outro exemplo é a expressão "de cor", que virou "crioulo", que virou "negro", que virou "afro-descendente". 

Claro que eu sei, e o Pinker deve saber também, que é tudo parte de uma mesma coisa. E que não é preciso escolher sempre uma coisa em detrimento de outra. Podemos transformar nosso "crioulo" em "afro-descendente" e transformar a nossa atitude na mesma medida. O problema é que é muito, mas muito mais fácil mudarmos o vocabulário e mantermos os vieses, do que mudarmos tudo ao mesmo tempo. Com o agravante de que algo dentro de nós parte do princípio de que, por usarmos outra palavra, temos outra maneira de ver as coisas. Não temos, a não ser que de fato tenhamos tratado a palavra como deve ser, e tenhamos aberto espaços novos dentro de nós, onde caiba o que é novo. Palavras novas inclusive, com seu novo brilho e a sua capacidade de transformarem o mundo em que nos transformamos.

Sabe aquelas situações em que usamos palavras doces para entregarmos verdades amargas? Sobre nós mesmos? Sobre as nossas escolhas? Sobre os movimentos que fazemos em nossas vidas? As palavras doces não adoçam o que as coisas são. As palavras doces traem a confiança de quem não espera o sabor amargo à entrada da garganta. Porque "palavras doces" não são palavras doces - são palavras falsas. Melhor as palavras agrestes, verdadeiras e inteiras. Sem desinteligências.



09/11/2013

O chão que renasce

Faça como eu fiz: olhe rapidamente para essa foto, e feche os olhos. Não se preocupe em entender do que se trata, apenas abra-se para olhar. Não é preciso ver. Deixe essa ocupação para mais tarde, quando puder construir o tempo e o espaço do olhar atento, dedicado e amoroso. Quando quiser construir esse espaço de encontro. E se quiser, claro.

Eu quis. Vi a foto pela primeira vez ontem à noite. Por entre conversas, música, mil e um estímulos querendo arrancar-me a alma de dentro. Ela até parece que vai, mas não vai: a minha alma anda avessa à exposição das suas dobras. Deve ser para que não se transformem em vincos, essas espécies sutis de mortalhas.

Assim, à primeira vista, foi só luz o que vi na imagem. Sem saber por que, pedi-a a meu amigo, mais intuindo do que vendo de fato alguma coisa. A foto veio, rápida e ligeira nesse pé de vento que é a tecnologia. Ali mesmo, na mesa do bar, a imagem pula de um celular ao outro. Deixo-a em paz, quieta.

Horas depois, sem conseguir dormir, tenho vagar para dedicar-me a ela. Olho-a com tempo, senhor de todos os processos, e surpreende-me que essa luz que vi esteja dentro dos espaços das folhas mortas. Parecem luminosas, as folhas, mas estão mortas. O vivo do verde à sua volta é quase ofuscado por essa luz que não é da matéria, mas do espaço ao seu redor, e atinge a superfície para fazê-la rebrilhar. É só superfície. Assim que o sol mudar seu ângulo, a luz desaparecerá. Não há existência dentro da folha, a não ser aquela de que se nutrirão outros, aqueles que se alimentam da putrefação do que morre. O que está vivo é o tapete verde que as folhas querem esconder. A vida das folhas mortas é uma vida em reflexo.

O dono da foto ofereceu-me, além da foto, a sua legenda: "o chão que renasce". E eu aqui, horas depois de ter visto a luz não só na foto, mas também nas retinas alheias, confirmo uma sequência inteira de impressões noturnas. Poderia ter dado o título de "gratidão" a este texto.

Esse chão que renasce, e que ganho de presente em imagem e palavra, nutre-se de momentos muito particulares. Momentos que surgem por detrás das paredes do tempo, espaços no avesso do espaço. É preciso inventá-los, a esses momentos. E é preciso inventá-los a várias mãos. Duas não conseguem. Podem acontecer em qualquer lugar, mas ontem foi aqui, nesta cidade que me acolhe assim que a vejo e me diz "afaste-se" no momento em que tento aproximar-me.

Chamou-se dançar, este chão renascido de ontem. Foi simples, até. Inventou-se um tempo e um espaço para o encontro. Não foi preciso inventar a vontade, mas inventou-se o movimento de ir na direção da música. E o resto inventou-se sozinho. Inventou-se o que era preciso para que a alma alcançasse os lugares que a fazem sentir-se viva, e dançasse em toda a sua extensão, e recebesse sem pedir o amparo que precisava. Uma brecha na insanidade. Um mergulho dentro da delicadeza da entrega pura. Tudo o que a minha alma, o meu coração e o meu corpo necessitam. Ainda que seja leve e breve como a passagem da brisa. Ainda que seja inventado. Ainda que seja de noite. Ainda que as folhas estejam mortas.

06/11/2013

P.A.

Dia 1 de fisioterapia. Sala de espera. Um garoto de (imagino) seus 17 anos está sentado na poltrona à minha esquerda, absorto na revista que lê. Men's Health. As outras revistas à disposição resumem-se à Boa Forma. Como meus olhos hoje nada fazem a não ser chorar, decido fechá-los e dar-me uma trégua. De vez em quando, espreito o garoto a meu lado. Continua num interesse desmedido pela matéria que lê. Até eu estou ficando interessada.

O garoto, que vou chamar de Kléber porque gosto das coisas que têm nomes, entra para sua sessão. Não resisto a querer saber o que afinal tanto o entretinha. Pego a revista ainda quente. Sua matéria intitula-se P.A. Uma lista de três coisas que todo homem deve saber fazer na sua relação de P.A. Porque é possível, nesta nossa sociedade liberal e liberada, ter relações de P.A. com os outros, e parece haver um código e uns preceitos para que a relação caminhe na direção do êxito. Ou seja: como se dar bem como P.A. Uma espécie de manual de bricolage das relações entre homens e mulheres. Vamos a ele.

Um P.A. é um Pinto Amigo. Não é bem uma pessoa, mas uma parte dela. Essa parte estabelece uma relação (imagino eu que com uma B.A.) em que, ensina a revista, não há compromisso, e onde o desejo, a vontade e a satisfação sexual ocasional são o norte, e o sul e quantos mais pontos cardeais existirem. Das três regras de ouro, guardei duas: 1) não pareça interessar-se apenas pelo sexo, que não pega bem; pergunte sobre o trabalho, sobre seus planos, vá com sede ao pote mas que não pareça ser apenas isso; e 2) caso sua amiga não esteja interessada em sexo numa das suas saídas, mas queira sair pra jantar, bater um papo, não fique chateado: afinal, ela pode estar apaixonada por outro e não ser correspondida, pode estar precisando desabafar... Além de ser um bom P.A., a sua amiga é uma pessoa bacana e você pode ser também um ombro amigo, certo? Certíssimo. Seja bacana e seu amigo lá embaixo receberá o que tanto quer.

Fico me perguntando o que levará o garoto de aprendizado da sua leitura. De que maneiras decidirá relacionar-se com as mulheres (ou os homens) por quem se interessar, o que fará com as "regrinhas de ouro" que acabou de aprender, quais fantasias e expectativas de encontros amorosos irá seu cérebro e seu coração (e seu pinto, claro) delineando. O que fará com essa banalidade toda que a sociedade insiste e consegue impôr, travestindo de libertação e autonomia situações que amarram, encolhem e são fontes potenciais de danos mais longos e largos do que podemos supor.

Por outro lado, penso: haverá diferença entre este tal de P.A. e as amizades coloridas desse tempo que já parece pré-histórico? Acho que sim. Enormes e gritantes. As amizades coloridas aconteciam (e acontecem) entre indivíduos e não entre partes sexuais. Eram um todo de pessoas que se olhavam e reconheciam. E não tinham o prévio estabelecimento de querer ou não querer compromissos. Havia, pelo menos assim me lembro, o compromisso de ser para o outro e de estar para o outro. Os frutos nasciam (ou não) da relação, e não eram dados, nem previstos, nem combinados, antes dela. E duravam o que tinham de durar. Sem receitas. Sem institucionalizações. Sem matérias de revista "how-to-do-it".

E vejo mais um outro lado, que isto de ter o rosto paralisado faz as coisas assumirem muitos lados: quanta razão tinha Hannah Arendt quando há décadas (aliás, aquelas em que as amizades tinham mais cores que hoje) alertava para a banalidade do mal. Para esse momento histórico em que um ser humano decide abdicar da sua condição de ser humano e passa a outra categoria, porque deixa de pensar, porque se acovarda, porque deixa de se colocar diante das situações da vida e do mundo nessa forma que os seres que se erguem assumem no mundo: de pé, conscientes das rédeas que o destino descansa em nossas mãos. E o pinto, onde for seu lugar.

05/11/2013

A vida segundo as palavras

Estou grávida de palavras. Não sei o que faço com todas elas, parece que se paralisam dentro de mim. Não sei o que, mas sei o porquê: assim que lhes dou passagem, mortalizam-se. Absorvem a presença do ar que lhes dou ao oferecer os campos da luz terrestre, respiram a consistência do papel em que as escrevo, iniciam o seu processo de morte. O que farão em vida, as estradas por onde viajarão, as paisagens que visitarão, depende dos outros mais do que de mim. Abro-lhes as mãos para que lhes brotem asas e voem. Mas algumas sei que ficarão retidas. Tornadas silêncios em suas formas dispostas ao mundo do som.

A essas, sinto-lhes a dor. Como se fosse minha. Talvez por isso, talvez por querer poupá-las, eu me demore a resgatá-las de seu estado de dicionário, e deixá-las que se encostem a mim durante a noite. O estado de dicionário é um estado sereno e preservado, o cosmos onde as palavras vivem desencarnadas. Mas elas escapam porque sabem o caminho até mim, e observam-me silenciosa enquanto durmo e as sonho. Mesmo percebendo-lhes a espera, deixo-as quietas. Como se isso pudesse evitar-lhes o sofrimento. Sei que estão aqui quando acordo, e por isso demoro a abrir os olhos, porque não quero que desapareçam e ao mesmo tempo sei que o devem fazer. Precisam, porque assim que vêm que as vemos, as palavras tomam corpo. E estas, que desconfio não encontrarão morada segura, tomam um corpo transparente. Tornam-se difíceis de reencontrar. Não quero que nasçam prematuras, deixo-as à vontade. A meio do frio da madrugada, escondem-se debaixo do meu cobertor, enlaçam-se ao meu corpo que dorme e quase quase se tornam meus músculos, meu sangue, meu coração, nesse bater compassado de relógio de sala. Peço-lhes silêncio quando acordo. E elas retornam de onde vieram, deixando-me cheia de palavras não ditas. Ficam aqui, deste lado direito do meu rosto, em solidária paralisia.

Mas toda gestação chega a termo. E parece que me chamam, do lado de fora, para que nasça junto com as palavras que gesto. Porque embora gestante, estou também gestanda. Faço nascer e nasço ao mesmo tempo. Não tenho outro remédio a não ser deixar que as palavras se estendam como tapetes, que tomem as estradas e se vão, que se alinhavem aos caminhos para que os homens possam passar com mais certeza das coisas suaves. Espero que, ao pisá-las, saibam o que fazem. Que lhes percebam a presença frágil. Que não lhes provoquem espinhos. Que cuidem da sua cicatrização se forem feridas. Palavras são como pessoas, séculos de incapacidades sobre a pele, camadas e camadas de pequenos danos eternizados. Quando tratadas, quando cuidadas, tornam-se mais resistentes. Desenvolvem resiliência. Recuperam-se com quase nenhuma sequela. Mas é preciso cuidado, e cuidado é coisa que nossos dias carecem.


03/11/2013

Assimetrias


À esquerda, o Sever, o Sorraia e o Almansor. À direita, o Erges, o Pônsul, o Ocreza, o Zêzere, o Alviela e o Maior. A lista é do 4º ano primário, creio, e era preciso decorá-la. Os afluentes do Tejo, em cada uma das suas margens. Lembro-me dos da direita, os mais torrenciais, os que descem das partes altas das montanhas a meio de Portugal. O Tejo, que é o maior rio ibérico, deságua aos pés de Lisboa. O forte de São Julião da Barra é o marco do encontro das águas: o Tejo derrama-se larga e tranquilamente, o Atlântico recebe-o abrindo-lhe as ondas suaves. Se fecho os olhos, sou capaz de ver a praia de Oeiras em frente ao forte, as gaivotas aos gritos acima de mim, as ondas a baterem nas rochas ao lado esquerdo. 

Os rios desta minha península são como os sulcos desta folha de eritrina que tenho entre as mãos. As eritrinas explodem em cor quando florescem suas lanças, vermelhas como o Mar Vermelho a que os gregos chamavam eruthros. Ainda que já tenham se passado semanas do fim da sua floração, e agora só haja folhas, a presença das flores continua ao redor do espaço que ocuparam. Mas o meu olhar pousa na quase mas não simetria dos rios que navegam na folha, esses tranquilos Tejos verdes, o caos organizado dentro de limites construídos no cotidiano. Na passagem dos dias. Observo-a longamente, a essa folha; percebo-lhe o contorno justo, a ligação fraterna entre as moléculas e a profunda presença a olhos nus. A folha existe para existir. Como os rios.

Esta atenção à falta de simetria das coisas nasce no espelho que tenho diante de mim. No meu rosto paralisado do lado direito, um olho abre-se desmesurado, e decide não piscar. Ou quase. Fico me perguntando que quer ele tanto ver, que não me permite a pausa da escuridão das pálpebras fechadas.

Estou assimétrica, como a disposição dos afluentes do Tejo, como as nervuras das costas das folhas das eritrinas. Se havia algum equilíbrio entre os dois lados do meu rosto, desfez-se, como uma catedral gótica que decidisse abrir espaços dentro do seu equilíbrio. Como o oferecimento de um mundo a desbravar. É preciso, penso, encontrar formas de equilíbrio dinâmico, que disponham as forças do movimento e da paralisação onde cada uma cabe.

E por isso lembro dos afluentes do Tejo. Da dificuldade de ordená-los na lógica que se pedia, da vontade de repetir-lhes os nomes pelo prazer de o fazer, do dia em que mergulhei nas águas do Zêzere e as soube frias como nunca imaginei ao saborear-lhes o nome. Rios de água sinuando pelas planícies, mansos e férteis, deslizando suaves pelo meu pensamento. São sentimentos, penso, estas águas em busca de oceano onde desaguar, intercalando seu passeio pelas represas e pelas barragens que os homens insistem em fabricar.

Agora que a noite se aproxima, tenho uma paleta cada vez mais variada de novos símbolos. Imagens e palavras e fatos amalgamados ao longo de um dia. Aquilo que meu olho acostumado a si mesmo vê, difere daquilo que o outro, esse que se paralisa e insiste em permanecer-se aberto, me descobre. Como um paradoxo a céu aberto, a sua paralisia desaperta-me, afrouxa-me, alarga-me, desamarra-me, derrete-me, dissolve-me. Descubro que a simetria é uma espécie de invariância sobre transformações, movimentos ou trocas: esta assimetria que vejo ao observar-me ao espelho é uma porta para outro lado de mim mesma. Não posso exercer a força, assim como não podem os dois lados da folha de eritrina, variantes de uma mesma essência que não pode forçar-se a nada que não seja ela mesma. O que posso é observar o novo quadrante, esse poço escavado dentro do espelho.

Enquanto uma onda de solidão luminosa preenche o espaço ao meu redor, pergunto-me onde está o oceano em que tanto desejam desaguar as águas que se represam ao lado direito do meu rosto. São como rios, projetados para fluir, em pleno embate com o espaço fechado e mudo. Os nervos do meu rosto estão à espera. 


23/10/2013

As fontes do afeto


Começo do verbete, a seco:

Afeto é tudo aquilo que se inclina ao que é bom,  ao que é pleno de sentimento; indica uma característica disposição, condição e estado para o movimento, para a impressão de si próprio no outro. Afficere é, sem mudanças de significado desde os primórdios latinos, sempre, afeto.

Pensei em afeto ao acordar. E lembrei-me da foto ao lado, tirada há algumas semanas na sala de aula de uma professora paulistana. Esqueci-me do nome da planta, o que é uma pena, mas a fotografia aí está, prova de que o mundo é um lugar recheado de sentidos e símbolos, para os quais ou nos abrimos ou nos abrimos. O tempo vai ficando curto.

Sem água, nem terra, essa plantinha floresceu na sala de aula. As carinhas dos quase 30 alunos que frequentam o lugar todos os dias floresceram junto com ela, encantados com o milagre da vida em processo de desabrochamento. A professora também. Mostrou-me a flor como se mostrasse seu mais precioso bem. Não sei se será da natureza dessa planta prescindir de elementos tão básicos ao mundo vegetal, pode ser que sim. Mas creio que ela se nutriu com muita tranquilidade e gratidão da quantidade descomunal de afeto que mora dentro dessa sala. Respira-se, o afeto. Percebe-se nos abraços, na troca de olhares, nos sorrisos de entusiasmo ao falar do percurso que se caminha.

Parece simples, mas não é tanto. O afeto pressupõe uma série de atributos, desses que é preciso desenvolver ao longo da vida, com o alto grau de consciência que nos cabe ter, humanos deste século, em relação a tudo. É preciso, já disse ali em cima o verbete, estar disposto ao afeto, e estar disposto significa que é preciso estimar, valorizar, encontrar e colocar em um lugar. A pequena planta é objeto de uma enorme estima pelas pessoas que estão ao seu redor; essas pessoas valorizam a sua presença ali (quase se curvam, em reverência doce); encontraram-lhe um lugar (a linda tigela de argila feita à mão, a mesa da professora, de onde pode ver a todos) e ali a puseram. Passam por ela todos os dias, e todos os dias ela recebe essa emanação do afeto que é diário, presente e frequente. 

É preciso também, para o afeto se realizar, condição, raiz primeira de todas as palavras que nos conduzem à noção de acordo ou compromisso. As pessoas que cuidam dessa planta, que se dispuseram a tê-la em suas vidas, comprometeram-se a cuidar dela: é por isso que ela ali está. Bem provável que, não houvesse essa condição (que é também capacidade), a planta já não estivesse mais onde a encontrarei amanhã, quando chegar mais uma vez a essa sala. É a capacidade de compromisso o que faz com que a planta permaneça junto a quem lhe quer bem. Não seria o bastante querer-lhe bem, e não se lembrar de olhar para ela com atenção todos os dias. Ela murcharia, sem o manto com que o afeto a protege.

Nessa linha trimembrada de necessidades para a expressão e o recebimento do afeto, é preciso ainda um estado. O estado do afeto. Stare, para os latinos, não era apenas e simplesmente "estar": "estou aqui... você não me vê?". Stare é uma particular forma de estar em presença de outro. É estar de pé. É estar erguido. É estar na posição vertical, que é a posição que nos coloca na condição de ser humano. Para o afeto existir, para ser sentido, para ser doado, para ser vivido, é preciso estar de pé. Afetos que se encostam, porque se cansam; afetos que não se levantam, porque pensam não precisar; afetos que se deitam, porque querem adormecer; afetos que olham para baixo, porque não sabem o que fazer com o que veem à sua frente; afetos que se demoram ao espelho, porque não sabem bem como lidar com suas rugas e seus cabelos brancos - não são afetos. Serão simulacros, serão tentativas. Mas falta-lhes disposição, falta-lhes condição e falta-lhes, sobretudo, o estado de presença que plantas, animais e seres humanos precisam para não murchar. 

O afeto presente e ativo, manifestado no movimento que imprimimos aos nossos corpos, desabrocha no coração alheio. É preciso coragem, é preciso entrega e é preciso remar contra a maré de um mundo que nos oferece, de bandeja, o desafeto embalado em papel celofane. É difícil e árduo, mas se pensarmos bem, é o que vale a pena. Nessa condição em que chegamos a este mundo, de mãos vazias, e de onde partiremos, de mãos vazias também, o que resta de nós é o que semeamos enquanto aqui estamos. Os campos são os outros. A minha semente é o afeto.


14/10/2013

Ouvir, conhecer, aprender


Tudo isso, numa única palavra. Discere. A raiz de disciplina. Ouvir, conhecer e aprender aplica-se a quase tudo. Quem não ouve, não conhece. Quem não conhece, não aprende. Quem não aprende, não ouve. E assim tudo outra vez de novo, porque a vida gosta do que é cíclico. E é a essas três palavrinhas brincando em círculo que nós, nos dias de hoje, damos o nome de disciplina.

Não pode ser coincidência que discere se pareça tanto com dicere, e ao mesmo tempo seja tão diferente. Dicere é a raiz do nosso verbo dizer, e regia-se pelo sentimento de lançar o que se diz de forma solene. Imagino que, antigamente, se discere mais que dicere. Ouvia-se (conhecia-se, aprendia-se) mais do que se dizia. Nesse dizer que tinha a marca do solene, devia haver mais disciplina e com ela mais consistência.

Ontem foi um dia de manhã de mata. Domingo de cachoeira. Entre gente boa. Povo luminoso. Agora que a noite já passou sobre a minha casa, seu silêncio de estrelas espreitando por entre as cortinas, a manhã parece uma anunciação. Os meus dedos correm pelas palavras, como numa urgência de que esta alma que me habita, essa aragem com ar de pluma, não se perca, não se dilua, não se vá. 

Voltei da mata com a alma leve - cansada, mas leve. Sensação de haver-se limpado boa parte do que me rodeia, do que me acompanha, do que às vezes se interpõe a meio do meu caminho. As distrações do dia a dia. A falta de sono. As presenças alheias. Tudo a água levou. Sensação também de vida aberta. De nova força. Do sorriso de Deus sobre mim. Deixou-me um brilho feito de palavra ressoando nos ouvidos: redução. Mais uma dessas palavras que sei ser preciso explorar para clarear a vida, essas palavras que ouço para poder conhecer e aprender. É essa a disciplina da minha vida.

Penso na redução ao abrir o armário da cozinha, agora cedo. Vou pensando, enquanto faço as dobradiças se movimentarem, no quanto algo que se reduz ganha condensação, mas perde fluidez e com ela liberdade. Deve ser por isso que os meus dedos encostam no vidro de vinagre balsâmico reduzido, aquele tempero agridoce para saladas. Numa materialização do que pensava, esse vinagre balsâmico reduzido que tenho nas mãos é mais doce, mais intenso, mais concentrado naquilo que dele restou, mas é também mais denso e viscoso. Escorre com lentidão, mais presa do ar e do limite do espaço do que a sua versão líquida, que flui sobre as folhas de rúcula no prato sem se lhes colar pegajosamente. Gasta-se mais devagar: a redução dura mais tempo que o líquido original. Seu gosto é mais intenso. Nada fica no prato depois de comida a salada e seu gosto permanece na boca do comensal por mais tempo.

Reduzir reduz volume, tamanho, quantidade. Elimina uma parte para que sobre o que, ao olhar, parece essencial. Para onde irá a vida líquida do vinagre em estado bruto e aquoso? O que sofre, na matéria, o efeito da redução? Volátil, espalha-se na atmosfera, funde-se ao nada e torna-se sua partícula. Irrecuperável.

Pessoas, que não são vinagre, não podem ser reduzidas. Precisam de todas as suas partes essenciais; ao contrário do que pensamos não são uma, mas várias. E precisam também de todas as outras, as não essenciais, essas que por vezes parecem tão menores, ou tão maiores, que chegam a assustar os outros.

A manhã de ontem firmou o meu espírito sem reduzi-lo. Devolveu-lhe a luz e o brilho que é dele mesmo, porque provém de onde provém. Deve ser por isso que a minha alma ficou tão leve, tão presente em si mesma. O que mais fazer, a não ser agradecer a semana que vem pela frente, pronta a ouvir, a conhecer, a aprender, sem precisar reduzir-me nem reduzir a vida ao meu redor?


Foto: Joaquim Luiz Nogueira


10/10/2013

Além da sobrevivência

Araraquara, sábado, 22h15. À saída da sessão de "O renascimento do parto", um grupo de mulheres jovens, bem vestidas e alimentadas, discute o filme. Mais ou menos na seguinte direção: - "Ah, mas também que firulas, não? O que é que tem o bebê ficar longe da mãe logo depois de nascer, só um pouquinho? Não vai ter a vida inteira pela frente? Não sei pra que ser tão radical...".

Essa história de ser rotulado de radical eu conheço. Meu mapa astral diz. A vida diz. As pessoas em volta dizem. Mas como assim não ser radical? Se não formos radicais a respeito daquilo que respeitamos e consideramos, vamos ser o que? Sempre contemporizadores? Tem coisa que é difícil de contemporizar. As certezas vão mudando de lugar, confirmando o que dizia minha avó: "vais ver como quando envelheceres a vida torna-se relativa". Pois sim, é verdade, é uma graça envelhecer e ver as certezas ruírem. Só que outras constroem-se em seu lugar, lado a lado com as dos outros. Tá tudo muito certo.

Sinto um incômodo no discurso que vai se consolidando em torno do parto normal/natural/humanizado. Muita nomenclatura para variantes de algo muito, mas muito simples. É de se desconfiar. Esse incômodo chama-se sensação de ser engolido a contragosto. Chama-se ser cooptado por um sistema que consegue inacreditavelmente transformar tudo em seu produto. Em mercado. Em matéria de troca. Em uso. O incômodo chama-se ver o sistema assumir contornos de gente humana, mas sem recheio. Um mundo de convexos sem concavidades. Um mundo em que, em vez de nos tornarmos humanos, viramos profissionais.

Tenho certos problemas com a palavra profissionalizar. Já vi situações únicas e espontâneas sucumbirem ao poder do discurso profissionalizante. Pessoas entregues e capazes, cheias de energia e vida pra dar, aniquiladas sem dó nem respeito ao peso daquilo que as torna, muito de repente e sem defesa, incapazes e duvidosas. Nada contra sermos profissionais no que fazemos, muito pelo contrário: o problema está em considerarmos (e tantas vezes fazemos) que alguém, que não nós, fará direito o que nós tentamos mas, por defeito de sermos quem somos e o que somos, não conseguimos. Ou quase conseguimos, mas de repente é preciso profissionalizar. E só nos resta sobreviver.

Foi assim com o atendimento ao parto. Tínhamos as parteiras. E temos, mas a que custo e luta delas mesmas. Pessoas que primavam e primam pela simplicidade e pelo mistério das suas mãos, doação em estado puro e bruto, porque era e é delas a tarefa sublime de estar junto a quem atravessa o umbral da vida. Mulheres de palavras certas. Mulheres de conhecimento atávico. 

Tínhamos os/as obstetras. Que, apesar da sua formação compartimentalizada e redutora, buscavam um sentido existencial para o momento de nascer. Meu avô, que era médico, e médico rural, falava pouco dos partos que atendia, e eu acho que era por respeito. Por respeito ao que não conhece explicação. Embora ele falasse pouco a respeito de qualquer coisa com a criança pequena que eu era. Gerações de médicos foram se profissionalizando, e hoje temos profissionais extremamente hábeis e competentes no manejo do bisturi.

Talvez por falta de outra opção num primeiro momento, e depois por convicção (variante de radicalismo), meus terceiro, quatro, quinto, sexto e sétimo partos foram atendidos por médicos obstetras convencionais. Alopatas. Nunca tinham feito parto em casa; alguns, os bons de cesárea, poucos partos normais tinham feito. Ajudaram-nos a minha experiência bem sucedida de dois partos anteriores e a minha certeza (radicalismo/convicção) de que é claro que meus filhos nasceriam em casa. Com ou sem os médicos. Aceitaram o desafio, inclusive o da minha outra certeza/radicalismo/convicção de que há que pagar-se um preço justo. Salário mínimo, no país em que vivemos, é um preço justo.

Foi um alumbramento coletivo, cada um desses partos. Tive a felicidade imensa, dessas que vão muito além da pura sobrevivência, de ver não só nascerem meus filhos, mas de presenciar o nascimento de médicos de parto em casa. Isso não tem preço.

É claro que houve senões. Sempre há. É claro que ouvi "anda, faz força" na hora em que não deveria ouvir nada. Que houve exames de toque desnecessários. Apreensões em demasia. Olhares de dúvida que poderiam ter travado qualquer dilatação, aquelas palavrinhas mornas que poderiam desmontar tudo que não fosse certeza/convicção/radicalismo. Sem essas três palavrinhas, capaz que houvesse desistências, de ambas as partes.

Gostando como gosto de parir, acompanhar outras mulheres à beira de dar vida foi uma consequência natural. Como amiga, como vizinha, como mulher. Quis ser parteira. Vi surgirem as doulas. Quis ser uma. Comecei o curso de enfermagem com o olho na enfermagem obstétrica. Ou seja: quis profissionalizar uma atuação que corre pelas minhas veias.

Não avancei nessa direção. O cheiro de mercado, a troca financeira, o fim da explosão pura de amor em forma de doação levou-me para longe, enquanto outras coisas surgiam na vida. Por isso, há poucos dias, quando me perguntavam: "você seria a minha doula?", eu engoli em seco antes de responder que posso ser a amiga, a vizinha, a mulher, a confidente, a irmã, a que cuida das crianças irmãs de quem vai nascer, a que faz chá e atende o telefone. A pessoa que pode estar ao seu lado e acompanhá-la nesse trabalho divino, com aquilo que tive o privilégio de viver e aprender. Mas não posso ser doula, porque não posso dar nome de profissão ao que sinto tarefa de vida. Admiro as mulheres que acompanham outras mulheres assumindo-se como doulas, admiro-lhes a coragem e a garra; quisera eu, há quase três décadas atrás, ter encontrado algumas delas. Admiro esse movimento genial e pulsante de mulheres e homens guerreiros que se erguem com valentia contra a ditadura do sistema. Mas assim, meio recolhida como me sinto, me aflijo com o cheiro de sistema em tudo isso.

Ingênua? Radical? Naif? Pode ser. É mais uma questão de além-sobrevivência. Uma questão de que a vida não fique ao rés-do-chão, no lugar comum das coisas comuns, na falta de significado, de força, de querer olhar a vida de frente e dialogar com ela. Questão muito pessoal, sei disso. Mas com os tons da urgência que se querem compartilhados.

06/10/2013

O parto e a dor

Há vinte e nove anos, minha maior aspiração era garantir um nascimento amoroso a meu primeiro filho. Queria a penumbra, o silêncio, o respeito pleno, a solidão necessária. Queria os cheiros conhecidos, os ruídos tranquilizadores, a panela da minha cozinha. Queria a plenitude diante desse momento que antevia, aos 19 anos, ser um portal para dentro de mim mesma. Não tive dúvidas de que esse lugar de segurança era a casa onde vivia todos os dias, onde a vida se desenvolvia.

Encontrar a pessoa certa que nos fizesse companhia levou quase oito meses. Quando apareceu, trazia na sua mala anos de experiência atendendo partos pelo Xingu. Embrenhamo-nos juntos por essa mata densa que é nascer em casa, e tudo o que se desmonta e remonta dentro de todas as pessoas que se aproximam. Gostei de estar fora do sistema que a tudo sem piedade engole; a minha aspiração buscava o espaço e o tempo em que as coisas se demorassem nelas mesmas, e não houvesse obediência a nada que não fosse, e eu pudesse acertar e errar a partir da minha intuição. Só isso: que fosse, na intensidade do seu ser. Ao mesmo tempo, perceber sem mediações a força primitiva da fêmea que se abre para que outro nasça, e abrir as portas para o divino manifestado na palavra falada assim que o nascimento é nascido. A fêmea, a mulher, a divina.

Demorei muitos anos a sair dessa mata. Agora, a cada convite para entrar dentro desse território, a emoção e a gratidão são as mesmas. Gosto das plantas que crescem nesse lugar. Gosto do cheiro de cosmos. Gosto da explosão de vida e dor e vida e dor, nessa ordem tão caótica que são as forças que não conhecemos entrando no nosso dia a dia.

Mas não posso deixar de reconhecer que o sistema engoliu parte do que me movimentava, nessa capacidade ímpar que tem de engolir tudo o que estiver pela frente e tentar se contrapor a ele. Uma espécie de sucumbir a uma força que parece insuportável. Claro que é maravilhoso que mais e mais mulheres possam ter seus direitos respeitados na hora sublime do parir; que possam optar, que possam escolher; que possam ser o que e quando e como quiserem ser. O problema que fica incomodando esta minha cabeça inquieta é se as escolhas e as opções são internas ou ainda e mais uma vez ditadas pelo que está do lado de fora (e que eu vou chamar de sistema), todo esse discurso certeiro que diz e dita e preconiza o bom. Não sei, mas tem alguma coisa me incomodando. Eu não sei se as mulheres que parem estão mais ou menos donas do seu parir, ou se diluíram por entre outros atores (além do médico que já era tanto) a responsabilidade que é só delas. E que é difícil assumir e carregar até a última consequência. E é solitária. E é assustadora. E transforma tudo.

Foram sete partos em casa, sete experiências de parir diferentes e únicas. Sete trabalhos. Sete bolsas. Sete cordões. Sete momentos. Sete placentas. Horas que o universo me doou para descobrir novas formas de passar pelo mesmo lugar, para que me reinventasse no encontro dos meus fantasmas, dos meus medos, do pânico inevitável do não sentir-se capaz e precisar da mão invisível. Receber a vida terrena de meus filhos em casa foi uma das certezas mais absolutas que já tive na vida. Acho que nasci com ela e não seria quem sou sem ela. Não seria todas as que sou dentro de mim mesma não fosse por ela.

Um dos sete seres que nasceu de mim atravessou o portal de volta, alguns anos depois de ter chegado até nós. Todas as vindas, e muito especialmente essa ida, moldaram-me o caráter. Aprendi a esperar, e a esperar em meio à dor. Aprendi a dormir por entre a dor. A dormir à espera da dor. A viver amparada pela dor. A perceber na dor a razão de estar viva. A olhar no espelho e ver a feição da dor sobreposta à minha própria, e gostar dela. A levantar-me no início dela e ser-lhe silenciosa nas primeiras horas. A ler nas contrações pequeninas a preparação para o Grande Trabalho. Aprendi a olhar-me para dentro em meio às tempestades violentas. A sentir a emergência de uma força que me transcendeu e à qual me dobrei porque é isso que é preciso fazer quando a transcendência se manifesta: dobrar-se, sem quebrar. Com paixão e entrega, irredutível e incondicional. A dor esteve, e está, sempre ao meu lado, companheira fiel disposta a manter-me o estado de acordada. Ao sofrimento, não lhe dei entrada. Porque não cabia. Nunca coube. E parece que me esqueço dessa lição tão implacável. Nunca vai caber.

A diferença entre uma coisa e outra, dor e sofrimento, veio à tona ontem à noite, enquanto assistia "O renascimento do parto". Demorei a ir ao cinema assistir este filme: queria que o pai de meus sete filhos, a coluna de luz que se ergueu inteira e bela a meu lado a cada um desses momentos de luz e transformação, estivesse junto, porque só ele para entender as minhas lágrimas oceânicas. E fiquei matutando, entre cena e cena, o quanto o meu ser sequer tenta fugir à dor, e o quanto se debate para não criar e nem ver criar sofrimento à sua volta, nem em si mesmo nem nos outros.

Olhando à distância de anos estes sete partos, a dor não me assusta como não me assustou; movimenta-me as entranhas, desperta-me centros vitais que o estado não-doloroso não alcança despertar. Nem tento encontrar grandes explicações, porque certamente não as encontrarei (ou entenderei) e o que sei, hoje, é que a dor é alimento da minha alma tanto quanto o seu contrário, que nem sei como se chama ao certo.

O que sei, e sem nuvens, é que dor não é sofrimento. Sofrimento não tem sentido. Sofrimento, ou os outros criam, ou nós criamos. Mergulhamos dentro dele como se panela de óleo fervente, e esse mergulho não é necessário. Necessário é amar e ser amado, é olhar e ser correspondido, é poder correr livremente pelos campos abertos da entrega e ter a retribuição exata do que se deposita nas mãos dos outros. Nesses campos, a dor tem espaço. O sofrimento, não.

Sobre o filme que é preciso assistir:
http://www.orenascimentodoparto.com.br/

Não tenho fotografias dos meus partos, porque quis guardá-los só na memória. A fotografia é da minha primeira inspiração, o livro de Leboyer, "Nascer sorrindo".