Aos que falavam de Heráclito e Parmênides
Nem sempre carrego os pensamentos corretos. Ou ordenados. Ontem, na mesma hora em que Helena tombou, ocupava-me com Heráclito. Não conhecia dona Helena, mas fiquei em meio à multidão que se foi juntando, ouvindo retalhos de verdade da boca de todos. Doze facadas. Tentaram reanimar, mas não teve jeito. E o homem lavando com calma a faca assassina na pia de casa, como se não lhe pertencesse. Ali mesmo, a polícia pegou, o sujeito era vizinho. A faca foi aumentando nas bocas dos que nada viram mas tudo sabem, desenham-lhe o tamanho com as mãos estendidas. E o tamanho de Helena diminuindo nas lembranças que todos já confundem. Acendem-se cigarros nervosos nas bocas desdentadas dos velhos que vivem essas esquinas todos os dias. Mulheres com filhos a tiracolo olham de lado e atravessam rápido, antes das perguntas. Motoboys descansam as motos e discutem todas as hipóteses da traição. Um diz que foi o marido. O outro, que foi o amante. O terceiro investigou: foi um cliente. E eles se entreolham, perguntando-se com os olhos cliente de qual mercadoria. E riem-se, mas sem desaforo, porque há silêncio por entre os corpos, e todos se sentem um pouco estendidos ao lado da mulher morta. Está calor, são ainda cinco horas da tarde. Quem tinha pressa, esqueceu-se dela, guarda o que vê para contar à mesa do jantar. Deve ter sido causa de droga. Foi não: foi mulher mesmo. Ou dívida. Diz que não pagou a cerveja de de manhã, e Helena cobrou. Foi lá e buscou a faca. E gostou do som da lâmina entrando na carne macia da Helena, não conseguiu mais parar. Coitada da Helena. Arrastada pelos cabelos, não teve tempo de pegar a arma dela debaixo do balcão. Ali mesmo, na calçada, as doze facadas. O garoto de olho ressecado diz que o povo gritou, mas ele nem ligou. E foi pra casa lavar a faca, o malandro. Bandido. Drogado.
Dona Helena, dona do bar menos afamado do centro, não ouve mais nada. Está dentro do rio que a conduz ao outro lado da vida. Deixa escapar a mão por baixo do sudário prateado com que a polícia a embrulhou sem cuidado. Há um anel nessa mão, num dedo curto e gordo que acaricia inerte a pedra da sarjeta, e uma tira espessa de sangue coagulado que se agarra com determinação às pedrinhas da calçada. Para tornar-se marca, que nenhuma água consiga lavar ou esquecer.
Enquanto Helena era esfaqueada, eu pensava no nada que sei de Heráclito e por consequência em Parmênides. No rio que ambos atravessaram, cada um a seu tempo e com uma impressão diferente sobre a verdade da água, e ao qual Helena se congrega, nesta tarde de sexta feira. Uma senhora ao meu lado, com uma imagem grande de Nossa Senhora das Graças, diz-me que agora sim ela está livre. Livre do pecado e livre do sofrimento de seus 47 anos, que acabam hoje em meio a esse tumulto de interessados no fim das coisas. Coitada, diz um rapaz ao meu lado, ninguém a defendeu. A mulher que tropeça na falta de dentes deixa escorrer as piores palavras que conhece: teve o que mereceu, essa puta da Helena.
E eu penso em Heráclito e em Parmênides, e nessas oposições contraditórias que a vida oferece como forma de encontrarmos sentido, e penso mais ainda quando a multidão se embaralha em volta dos cordões de isolamento nessa esquina dessa rua desse centro decrépito, e a polícia quer desfazer o novelo, e liga as sirenes, e em seus olhos brilha a intenção de passar por cima de quem não respeite as luzes que giram e a buzina que não dá sossego, e a turba é um rebanho que obedece sem perceber e tudo isso é uma coisa só e agora faz parte de mim porque aqui estou. Insisto em retirar os véus que Maya persiste em sobrepor diante dos meus olhos. E de repente vejo as lágrimas de duas mulheres, e os braços amparadores de um homem que aparece como consolo. Um estalar de afeto sem ruído. Difícil sair desse cenário, esse reconhecimento coletivo de destino na mulher caída, o pescoço aberto na facada fatal, a roupa ensaguentada, o sapato que escorrega de seu pé e cai sem que o enfermeiro da ambulância possa fazer qualquer coisa, porque se esqueceu de olhar para trás e ver. Como às vezes se faz com a vida, que escorrega para fora do pé, e não se tem nada a receber a não ser o choque duro e cru do asfalto esburacado de um centro qualquer de cidade.
E eu penso em Heráclito e em Parmênides, e nessas oposições contraditórias que a vida oferece como forma de encontrarmos sentido, e penso mais ainda quando a multidão se embaralha em volta dos cordões de isolamento nessa esquina dessa rua desse centro decrépito, e a polícia quer desfazer o novelo, e liga as sirenes, e em seus olhos brilha a intenção de passar por cima de quem não respeite as luzes que giram e a buzina que não dá sossego, e a turba é um rebanho que obedece sem perceber e tudo isso é uma coisa só e agora faz parte de mim porque aqui estou. Insisto em retirar os véus que Maya persiste em sobrepor diante dos meus olhos. E de repente vejo as lágrimas de duas mulheres, e os braços amparadores de um homem que aparece como consolo. Um estalar de afeto sem ruído. Difícil sair desse cenário, esse reconhecimento coletivo de destino na mulher caída, o pescoço aberto na facada fatal, a roupa ensaguentada, o sapato que escorrega de seu pé e cai sem que o enfermeiro da ambulância possa fazer qualquer coisa, porque se esqueceu de olhar para trás e ver. Como às vezes se faz com a vida, que escorrega para fora do pé, e não se tem nada a receber a não ser o choque duro e cru do asfalto esburacado de um centro qualquer de cidade.
Imagem: recorte de "Hombres leyendo", uma das "Pinturas Negras", de Goya.