13/11/2012

Falta d'água

Asa Branca por todo lado. 

Na voz de Caetano em "Tropicália" (excelente), na de Chambinho do Acordeon em "Gonzaga, de pai para filho" (excelente também, belíssima fotografia). Alazões morrendo de falta d'água  em todas as telas de cinema do país, e um povo inteiro acompanhando peregrinações. Demais.

Lembrei disso agora de noitinha, porque faltou água aqui em casa. Eu querendo fazer faxina noturna, lavar chão e roupa e louça e paredes e tudo o mais que precisasse de água para luzir apalermado quando o dia raiasse. Nada disso: o que me mandam as outras esferas é ficar quieta e esperar que a água chegue. Quando quiser chegar, porque a causa da falta é desconhecida - tem água na torneira lá de fora, o problema é aqui dentro.

Para dividir a aflição (juro que foi aflição) com outréns, agarro-me às virtualidades da vida: mando uma mensagem ao grupo internáutico que se criou para que a comunicação fluísse aprumada entre nós, vizinhos que moramos todos por perto uns dos outros. Será que às vezes quase nos convencemos de que a comunicação parece fluir melhor quando se é mais distante? Não sei - acho que no fundo estamos todos é em busca do canal de entrada.

Mas eu dizia então que lá fui dividir essa minha aflição, dessa forma assim em que não se ouvem as vozes, com vizinhos, uns menos e outros mais recentes, e a estes últimos não conheço nem me conhecem, ao vivo, como era costume antigamente. Mas lemo-nos uns aos outros, até nos arriscamos a um palpite aqui e ali, de vez em quando. Como se fôssemos velhos conhecidos e nos permitíssemos, tacitamente, essas liberdades de interferir nas palavras uns dos outros.

O fato é que a aflição foi dividida sim, e logo mil ajudas e oferecimentos pularam da tela pros meus olhos. Peço um encanador de estimação, acho que devem ser os canos entupidos com as algas que descem em catadupas da caixa d'água central (não seria a primeira vez). Respondem-me que encanador de estimação não têm, mas água, toda a que eu precisar - "venha!". E isso quando eu sequer fui ainda visitar o bebê recém nascido que mora nessa casa que me oferece sua água... Agradeço, e conto-lhes que já tomei banho, de canequinha - porque há uma torneira, lá fora, que ainda tem água, e o jeito foi lembrar de Asa Branca e lançar mão da canequinha de ágata. Depois releio e me espanto com o que eu mesma escrevo - pra que expor minha canequinha assim, tão sem pudor?!

Mas aqui ninguém se incomoda: não demora e oferecem-me a própria água, na própria mangueira - "eu passo logo ali, pela cerca - quer?". E eu declino, e olha que é tarde e a pessoa deve estar é cansada - e peço-lhe quem sabe a mangueira emprestada para o dia de amanhã. E o vizinho que trabalhou o dia inteiro e não tem nada com a falta d'água minha diz-me que me traz a mangueira agorinha mesmo, se for o caso e se for preciso. Digo que não, deixe disso, amanhã tá bom demais da conta. Aqui sozinha rodeada de vizinhos, sorrio pra tela opaca do computador e - milagre! - ela sorri-me de volta: "Ah, Ana, eu tou adorando, acho que vai sair uma crônica daí!"

E não é que saiu?!


(E pra quem está nessa virada de um dia pro outro ainda de olhos abertos, Caetano cantando Asa Branca em 1972, na França (num dos momentos mais bonitos do documentário), e "Gonzaga", o trailer do filme:

12/11/2012

Exercício: Atlas (1)

Podia ter-lhe chamado Bucéfalo, ou Rocinante. Mas nenhum desses nomes alcançava a generosidade e a nobreza ardente que caracterizava seu temperamento, acrescidas da amplidão em que mergulhavam seus olhos. Sabia que precisava oferecer-lhe mais do que a presença por entre as páginas de um livro. Gostava de olhá-lo de lado, o costado bem desenvolvido, extenso e profundo, onde quase lia inscrito o nome do mundo todo, e ainda uma montanha, e a realeza de um continente perdido, e um castigo que apenas Hércules tivesse a capacidade de aliviar.

Por isso, seu nome foi Atlas.

Se quisesse, Atlas cobriria a galope todos os mares, desertos, lava de vulcões, pedra de desfiladeiros. Veloz e cheio de força, levantava a cabeça delgada e seca, sacudia a fronte levemente abaulada e firmava a cernelha extensa e destacada, parando para olhá-la quando ela se aproximava. Cabeceava assim que a via e deixava-se montar e cavalgar, como seus ancestrais nos últimos 5000 anos. Ela amava-o por isso, tanto quanto amava sentir-se livre sobre seu dorso, confiada à sua vontade, o freio sem uso entre os dentes. Ele oferecia-lhe, nas patas sempre prontas, qualquer mundo que acenasse ao longe: levava-a até lá e, se por acaso ela caía, o que era raro, e ele precisava voltar para resgatá-la, fazia-o sem sacrifício. Ela amava-o ainda mais.

Talvez ajude saber que ela nascera na cidade de Ronda, na andaluzia espanhola. Onde os cavalos olham de cima, e são chamados de altaneiros por alguns dos habitantes da península, e as mulheres amam sem respeitar medidas. Onde as pessoas vivem acima dos limites do mundo, e atravessam uma das três pontes que se levantam a mais de noventa metros de altura, o rio Guadalevín fluindo lá embaixo, tão longe que nem murmura. Em cima dessa meseta rochosa que serve de chão à cidade de Ronda, o vento por vezes sopra forte. A crina de Atlas parece nesses dias uma franja de xale ao vento, mas o toque de seus fios é rude e hirsuto. Ela amava-o por isso também, por dar-lhe duas coisas ao mesmo tempo, e quando a conheci, em Algeciras, parada diante do lugar de onde saem os barcos em direção a África, apertava entre os dedos o que me pareceu um talismã feito de crina. Olhava a costa africana invisível ao longe. Longe demais para olhos que ainda estão na Europa.

Falou-me de Ronda, da antiga praça de touros, dos cavalos dentro da arena. Dos sacrifícios dos homens e dos animais da sua terra. Estava frio, nesse dia, e ela batia os pés no chão. Debaixo estavam as marcas dos pés de Atlas - mas não o cavalo, disse-me (e foi assim que ouvi falar nele pela primeira vez), e sim o filho de Jácome e Climene, primeiro rei da Atlântida, o preparador selvagem e bruto do planeta que seria morada da raça humana centenas de anos depois.

Conversamos durante horas, e por fim ela despediu-se, como se eu fosse um antigo e querido amigo que ela não visse há muito e soubesse não tornaria a ver tão breve. Embarcou em direção a Marrocos e eu fiquei a acenar-lhe, ambos presos desse encontro, ela a bordo e eu de repente sem guarida.

Anos mais tarde, quando a vida me ofereceu o sofrimento necessário para deixar tudo para trás, lembrei-me dela e comprei uma passagem de trem para Ronda. X horas desde Madrid. A praça de touros estava onde me contara, o Guadelvín serpenteando por baixo do Puente Nuevo, mais de 200 anos de idade pétrea. Descobri que não sabia seu nome, mas procurei por Atlas. E encontrei-o na praça, enorme escultura de um cavalo lusitano, a crina como um xale duro em atitude de ondular ao vento. Perguntei em volta da praça, nos cafés debaixo das arcadas brancas de cal, os garçons apoiados nas colunas, suas bandejas como luas em pleno dia. Riram-se e mandaram-me descansar.

- Atlas tem tantos anos - disse-me um deles abrindo-me uns dentes amarelos - que nenhum de nós o conheceu. Está morto desde a Reconquista, homem!

De nada adiantou dizer-lhe da mulher, nem nome tinha a mulher. Apenas a lembrança de seus dedos compridos no aperto da crina escura.

(continua)

06/11/2012

Exercício: "Como anzóis"

Tenho quase certeza de que, nas primeiras horas da manhã, os amantes procuram-se com o reluzir de anzóis dentro dos olhos, numa estonteante linha de leveza e velocidade visível no instante do lançar-se ao rio. Precisam saber se ainda se pertencem, ou se as sombras os transformaram em outra coisa que não seu encontro de amor.

Isaura não saberia dizer. Os olhos de Armindo ainda estavam fechados quando ela abriu os seus, e assim permaneceram por horas. Essa extensão de tempo fez com que as retinas de Isaura se acostumassem com as fímbrias de luz filtrada pela persiana, uma luz de dia ainda não nascido mas já grávido de si mesmo. Por isso, quando os de Armindo se despregaram e ainda a olharam cobertos pela poeira dos seus sonhos, repararam na mulher que o fitava, mas não lhe perceberam o despertencimento; ou, se o perceberam, o que é bem possível também, se formos observar os fatos, guardou-o por dentro das pálpebras, naquele único lugar em que os olhos escolhem não ver.  Não por mal, mas por não poder ver. Talvez não tenha havido nenhuma linha lançada, nessa manhã. E talvez o mundo se tenha quebrado em dois, a linha inexistente cindindo a realidade.

É Isaura quem me conta esse acordar. Transformou-o num símbolo que a persegue uma e outra noite, quando acorda num susto e abre os olhos e a imagem de Armindo de olhos fechados a atinge imensa. Como se ela fosse uma ilha, e ele a rodeasse por todos os lados, menos mansa e amorosamente do que gostaria, claro, mas ainda assim rodeando. Seus olhos encharcam-se enquanto me conta. Espera (seus soluços não me deixam ouvir-lhe todas as palavras) que esta saudade aguda se transforme em crônica, e logo mais em névoa, e logo mais numa substância de nada que a permita respirar sem ansiar pelo que se foi. As suas mãos desenham no espaço entre nós o vazio que quer tanto encontrar.

Mas seus olhos desmentem as suas palavras, coisa que não ouso dizer-lhe, para não afundá-la mais nesse poço que ocupa. Há uma distância que a ajudo a estabelecer desse amanhecer de noite de amor sem olhos; consigo-lhe perspectiva e duração ao longo de horas, mas a sombra aproxima-se com lentidão e arrebata-me Isaura, e eu perco-a novamente. Só consigo, antes de que nos separemos, marcar um novo encontro, para amanhã ao meio dia. Espero que ela não me falte. Espero que eu não lhe falte.

01/11/2012

Fragmento em viagem

As horas que passam sentadas dentro deste avião oferecem-me duas sensações: a de não ter onde ir (um considerável e paradoxal desconforto grau x de ansiedade) e a de ser invadida, obliterada por um turbilhão incessante de ideias, todas elas ligadas às minhas muitas pernas imóveis, apertadas neste espaço que cada vez se torna menor e as condena ao estado implacável de repouso. Essa invasão de motivos desencadeia outro tipo de ansiedade, que suplanta aquela de tipo x, um alicerce estendido de razão e força. Nesse ponto preciso,  sufocada entre ansiedades, posso ser a imagem que reflito no espelho; essa que, quase na hora do pouso, toma a rédea, o pulso, o chão.

Meus companheiros de voo, sentados a um lado e ao outro, devem entender pouco dessa que pareço, tomando e abandonando, consecutivas vezes sem conta, a caneta e o caderno pequeno que não me abandonam. Como um aluno em primeiros dias de escola, que esconde da professora o que escreve no momento em que o faz, preferiria que se ocupassem da própria vida e deixassem seus rabos de olhos presos a si mesmos. Mas a mão tomou posse do olho, e as palavras que soluçam precisam de ambos, e não ouso suspender a escrita por medo a que a ansiedade x volte zombeteira e me atormente nas mesmas perguntas, e a resposta não possa ser outra a não ser o encharcar do mundo com as mais grossas lágrimas que conheço.

Enquanto tudo isso acontece, ao mesmo tempo em tempos sobrepostos que confundem passado e presente, o olho de Ângela, a comissária de bordo, está fixo nos movimentos da pele da minha testa. Pergunto-me se terá ela a capacidade de ler a aflição alheia nas rugas da sua face. Olho-a, e ela retribui-me um sorriso, fecha de leve os olhos e nas suas pálpebras está escrito "stand still".


Imagem: Tai Ribeiro

30/10/2012

Intenções

Como o ninho espremido por entre paredes de madeira.
Como as cordas do navio assim que as desamarram do cais.
Como as fibras de sisal que o tecelão bate e liberta.
Como a areia da praia onde os pés brincam antes de desaparecem dentro d'água.
Como a vida que nasce de dentro com um grito, um suspiro, uma queimação que nos retira da  mão da morte.
Como as cartas viradas sobre a mesa, as paredes limpas, os pratos lavados.
Como as palavras que se colam às coisas, para que mais tarde alguém lembre os nomes delas.
Como os livros amontoados pela casa, sílabas abertas na mesa, no chão, na cadeira, na cama.
Como o lado vazio da cama.
Como o lado vazio da alma.
Um vazio.
Para preencher de ninhos e cordas e fibra e areia e vida e cartas e coisas e palavras e livros.


24/10/2012

Artifícios

Sabe aqueles dias em que não se tem muita vontade de profundidade? Porque às vezes a profundidade é tão lá no fundo que até a superfície parece implacável? Dias assim beneficiam-se enormemente das superfícies ternas, suaves, tranquilas; em dias assim não se pensa muito na necessária correspondência entre o que está por cima e o que vive por baixo. Em dias assim, no fundo, sequer se pensa. Manter-se à superfície, para mais fácil respirar, é um bom artifício para um dia como o de hoje.

Escolho a escrita, parece-me agora o artifício supremo. Um processo engenhoso de compor um discurso, libertando as palavras, seres sem substância carnada, daqueles lugares comuns em que elas se acostumaram a sentar confortavelmente (desautomatização, diziam os poetas formalistas, ressignifcação dizem os neurolinguistas, e por aí vai, nada disto é novidade nem descoberta). "Não", dizemos-lhes, "procurem outros espaços, onde possam ser outras e mais coisas". Um estranhamento. Vejo-o acontecer todo dia. A cada fisgada no fígado daquela palavra que se intromete por entre as linhas da página e de repente solta uma faísca e revela outro caminho e de repente lá está o sentido diferente do que se queria, mas por isso mesmo sentido.

Isto que escrevo, aliás, nada mais é do que um artifício para conseguir dizer uma coisa com as palavras que não a dizem, antes a insinuam; sugerem em vez de mostrar; porque assim querem, é essa a intenção que lhes dou. Mantenho-me à superfície, mas haverá quem perceba por entre as águas feitas palavras a vida que se move por baixo. Porque as palavras, tal como as coisas, estão sedentas por revelar-se em novos significados, que tragam à tona seus outros veios, todos os veios; especialmente aquelas mais comuns, aquelas que dizemos todos os dias sem reparar nos seus contornos cheios de preciosidades intocadas. 

Por isso em dias assim, de superfícies perfeitas porque quase impenetráveis, deito-me à sombra com as minhas palavras preferidas, e deixo-as livres, soltas, fluindo por entre as membranas das minhas células, permitindo que se tinjam de cores invulgares, translucidamente suaves e ao mesmo tempo impregnadas das sensações mais poderosas. É a maneira que encontro de, à superfície que serve de manto, desautomatizar, desconstruir, ressignificar as coisas do mundo. As minhas são feitas de sons e letras, outros hão de preferir outras matérias: à superfície e por baixo dela, a arte do encontro de todos os nossos artifícios.

18/10/2012

Eternidade


Uma professora conta, algumas semanas atrás, olhos quase molhados de tanto brilho, uma das coisas felizes que fez com seus alunos. Leu-lhes "A rainha da neve", de Andersen. Eles se dispuseram a desenhar alguns momentos do conto. Uma das meninas quis desenhar a eternidade, mas parou assustada e correu à professora: 

- Professora, eu não sei desenhar a eternidade! 

E como a professora também não soubesse, disse-lhe que tentasse: quem sabe não descobria? Ao cabo de um tempo a aluna volta, olhar alumbrado:

- Professora, eu vou escrever a palavra eternidade, é o melhor desenho que posso fazer. 

Ouço tudo isso e do fundo das palavras há um sopro de ar puro que me arrebata, e me faz perder a respiração, nessa sala onde nos reunimos para falar de palavras, e nesse alumbramento que nos atinge a todos porque uma criança viu, na palavra eternidade, no desenho da epiderme das suas letras, a própria eternidade.

Há palavras que se fazem da rugosidade da sua escrita; outras, da sua lisura serena. Tanto faz se as escrevemos, se as lemos. A porosidade, o brilho, os veios, permanecem todos lá. Mesmo nas impressas, é possível tocá-las com as gemas dos olhos. 

O verso único da poesia de Anelise Zeidler atingiu-me dentro de um ônibus em Porto Alegre, dia desses. Num acesso súbito de falta do sentido da eternidade, vejo-me sentada ao lado dessas sete palavras que a poeta escolheu, e que alguém depois escolheu para oferecer aos outros na janela de um ônibus. Olho-as com uma atenção só de fora, e as suas características físicas são as que primeiro me atingem, e têm o poder de arrancar-me de dentro de mim mesma. Como se os olhos que leem os olhos que se inundam se inundassem por pura empatia, a mente em estado de repletitude de coisas para transbordar.

Lembro-me da pequena aluna e da sua presença de eternidade,  essa que nesse momento eu sequer saberia escrever, e penso o quanto palavras são pouco afeitas a contatos determinados. Aparecem quando devem, e não quando se quer. Assim que saem, diluem-se. Assumem-se a si mesmas e distanciam-se de quem as escreve ou pronuncia - não se lhes pertence mais. Nem sempre penetram os outros da maneira como se pretendeu - eles, os outros, veem-nas da forma que querem ou podem, percebendo-lhes as peles com um tato único, aquele que lhes é possível.

15/10/2012

De quando se dá nome aos bois

Quando nosso primeiro pai nomeou todas as coisas e animais do mundo, seu próprio Pai, aquele de quem guardou completa semelhança, permitiu-lhe um descanso. "Pouco", avisou-o, "é preciso que voltes ao trabalho, não vás acomodar-te antes do tempo". Os anjos, enquanto isso, feitas as pazes com essa estranha e humana invenção do Senhor, puseram-se a guardar-lhe o sono, quem sabe se com a ideia de tomarem para si a capacidade da nomeação do mundo. Em vão.

Adão dormiu por anos, porque a matéria prima do tempo divino é a relatividade. Quando acordou, barbas e cabelos crescidos, foi chamado à presença de seu Senhor, que lhe apresentou, para que lhes desse nome, duas virtudes em forma de barro: a subsistência e a sobrevivência. Adão nem precisou perguntar-se quais eram os nomes de ambas, pois fluiram de sua boca antes mesmo que conseguisse pensá-los. O Senhor olhou-o entre incrédulo e espantado (coisas que são assemelhadas, mas que Adão distinguiu com clareza e sabedoria ao nomeá-las), e pôs-se a observar os dois nomes que entretanto flutuaram da boca de Adão até o barro, entranhando-se nele e guardando-lhe duas formas diferentes. A transformação das coisas inominadas em coisas nominadas acontecera já muitas vezes debaixo de Seus olhos, mas o Senhor não cansava de alegrar-se e aliviar-se - coisas também semelhantes, porém Adão, e os nomes... 

A metamorfose que Adão operava em Seu mundo através da Palavra que lhe nascia, enchia o Senhor de um gozo tal que quase não cabia dentro de si, embora nascesse de dentro d'Ele, o que é no mínimo um contrasenso ou um paradoxo (coisas que sabemos diferentes, porque assim o disse Adão).

Foi assim que, entre espantado, incrédulo, alegre e aliviado, o Senhor viu a subsistência distanciar-se no espaço da sua antes irmã sobrevivência, enquanto os homens por toda a Terra cuidavam ora de uma, ora de outra: a sua ocupação escolhia-as a ambas para firmar seus pés sobre a terra, porém com intentos diferentes, como se verá. 

Os primeiros, reparou o Senhor e fez mostrar a sua primeira criatura, trabalhavam a terra e a semente com os olhos postos no chão; viam brotar os minúsculos prenúncios que antecedem todo fruto, e a sua mente projetava de imediato a refeição dos meses seguintes; e as gavinhas cresciam, o mundo frutificava e alimentava os homens. Então, eles diziam: "Graças a Deus pela nossa subsistência", no que estavam certos, pois era o Senhor que lhes inspirava a existência, que eles ainda percebiam (talvez) como uma sub-sistência. Os segundos, viu o Senhor conforme lhes voltou a serena face, trabalhavam a mesma terra e a mesma semente, mas ambas brilhavam diferentes por entre seus dedos. Embora permanecessem ágeis e ativos, seus olhos alongavam-se no horizonte, alcançando as estrelas, como se soubessem que era de lá que provinham, e que era de lá que, nesse exato momento, seu Senhor os observava. Um deles, então, diria, "Existe muito mais entre o céu e a terra do que as plantas que crescem e nos alimentam"; e outro responderia, "Graças a Deus por sermos quem somos". E tinha razão, pois que todos eram o que eram graças à graça concedida pelo Senhor.

Adão, sentado ao lado de seu Criador, pouco via além da água e da terra de que são formadas todas as criaturas, sejam coisas, animais ou virtudes, entre outras. Os nomes acorriam-lhe sem que ele os chamasse ou procurasse, e afligia-se, às vezes, por não ver mais do que dois elementos na fonte de onde tanta variedade nascia. E o Senhor, nessas alturas, acalmava-o dizendo: "Pois que tudo o que criei e que tu nomeias é feito da nossa mesma matéria, não te aflijas pelo que não podes mudar. Alegra-te, outrossim, pelo poder de transformação que inspiras às coisas do mundo após lhes outorgares seus nomes." E com essas palavras Adão respirava com o coração esvaziado de todo temor e receio (coisas diferentes, já se sabe por quais caminhos) e soube que, nomeado, o mundo estava liberto. E liberdade é tudo o que as coisas do mundo precisam para ser o que devem ser. Depois de, como se depreende, serem nomeadas.


12/10/2012

Vácuo

À entrada da imensa PUC de Porto Alegre há uma também imensa escultura de ferro. Um recorte de figuras humanas, que me fez lembrar aquele André Gide que falava (salvo erro) da estética da espera. 

A observação da escultura associada à lembrança de Gide levou-me ontem diretamente a um estado de alma que, na falta de melhor expressão, vou chamar de craquelado: entre uma epiderme lisa e outra rugosa, uma terceira que se insinua inteiramente infiltrada. Fendas e fissuras por todo lado. 

O dia de hoje chega-me ainda com essa sensação de vácuo, um não-preenchimento que só cresce conforme as horas passam. (Acordo cedo, é um defeito em dias assim. Melhor seria dormir até às 10 horas.) A amiga gaúcha de longe provoca-me: - Bah, guria, vai passear na Redenção! E eu, que já lá tinha estado de manhã cedo, lá volto. Diz-me ela que esse foi o parque da sua infância, que ali estão as suas memórias; neste dia cheio de crianças por todo lado vejo-a pulando à minha volta. E isso consola-me. Ainda que me mantenha perigosamente perto da mesma vacuidade.

Sento-me na confeitaria Maomé para tomar um chocolate quente. Dias como este, solucionam-se às vezes assim: come-se e o sentido retorna. Experimentei a tática várias vezes ao longo do dia, e durante certo tempo pareceu-me resolvido o impasse gidiano - menos vácuo, mais preenchimento. Mas por pouco tempo: mera impressão ou pura digestão. Por isso o chocolate quente a esta altura do passeio na Redenção, que faço acompanhar de um diplomata para ter o que mastigar, já que a matéria interna anda de difícil mastigação. (De manhãzinha a escolha recaiu sobre um pastel integral de ricota e espinafre, achei que seria bom manter-me perto de coisas nutritivas, naturais, saudáveis. Horas depois, dois pedaços de melancia a meio da calçada. E ainda almocei bem: risoto de camarão e uma gigantesca salada, tentativa de chegar ao fim do dia com menos de 3000 calorias ingeridas.)

Numa conversa torpeada de algumas horas, descubro que a Redenção está florida - e fico estarrecida, porque precisou ela avisar-me das flores que estavam logo ali, quase encostadas aos meus olhos. Considerando que ela está a mais de 1000 km de distância, é de pasmar mesmo. Em compensação, posso contar-lhe das datas da Feira do Livro, logo ali em novembro - e ela, que não sabia das mesmas, entusiasma-se em ver passagens pra mesma altura em que eu aqui virei. Enquanto isso, vou ver das flores. É fato: jacarandás em profusão por todos os lados, sibipirunas (creio) idem.

Fico parada, deliciada com a vista, ao lado de um carrinho de churros. Peço um sem recheio, que é doce demais e que ainda me economiza um real. Fico olhando as flores, pensando nessa gaúcha que ainda iria me fazer ter a ideia de ir comer uma coisinha ali na Lancheria do Parque, onde pelo preço de um bife comem quatro pessoas à vontade. Estou sozinha, e a única solução é oferecer de tudo aos dois rapazes na mesa ao lado, que olhavam numa gula de bolso vazio - que nem o meu vácuo, que se fez menor com o passar das horas, mas ainda pode abrigar, como um bolso, a minha mão inteira.