18/10/2012

Eternidade


Uma professora conta, algumas semanas atrás, olhos quase molhados de tanto brilho, uma das coisas felizes que fez com seus alunos. Leu-lhes "A rainha da neve", de Andersen. Eles se dispuseram a desenhar alguns momentos do conto. Uma das meninas quis desenhar a eternidade, mas parou assustada e correu à professora: 

- Professora, eu não sei desenhar a eternidade! 

E como a professora também não soubesse, disse-lhe que tentasse: quem sabe não descobria? Ao cabo de um tempo a aluna volta, olhar alumbrado:

- Professora, eu vou escrever a palavra eternidade, é o melhor desenho que posso fazer. 

Ouço tudo isso e do fundo das palavras há um sopro de ar puro que me arrebata, e me faz perder a respiração, nessa sala onde nos reunimos para falar de palavras, e nesse alumbramento que nos atinge a todos porque uma criança viu, na palavra eternidade, no desenho da epiderme das suas letras, a própria eternidade.

Há palavras que se fazem da rugosidade da sua escrita; outras, da sua lisura serena. Tanto faz se as escrevemos, se as lemos. A porosidade, o brilho, os veios, permanecem todos lá. Mesmo nas impressas, é possível tocá-las com as gemas dos olhos. 

O verso único da poesia de Anelise Zeidler atingiu-me dentro de um ônibus em Porto Alegre, dia desses. Num acesso súbito de falta do sentido da eternidade, vejo-me sentada ao lado dessas sete palavras que a poeta escolheu, e que alguém depois escolheu para oferecer aos outros na janela de um ônibus. Olho-as com uma atenção só de fora, e as suas características físicas são as que primeiro me atingem, e têm o poder de arrancar-me de dentro de mim mesma. Como se os olhos que leem os olhos que se inundam se inundassem por pura empatia, a mente em estado de repletitude de coisas para transbordar.

Lembro-me da pequena aluna e da sua presença de eternidade,  essa que nesse momento eu sequer saberia escrever, e penso o quanto palavras são pouco afeitas a contatos determinados. Aparecem quando devem, e não quando se quer. Assim que saem, diluem-se. Assumem-se a si mesmas e distanciam-se de quem as escreve ou pronuncia - não se lhes pertence mais. Nem sempre penetram os outros da maneira como se pretendeu - eles, os outros, veem-nas da forma que querem ou podem, percebendo-lhes as peles com um tato único, aquele que lhes é possível.

15/10/2012

De quando se dá nome aos bois

Quando nosso primeiro pai nomeou todas as coisas e animais do mundo, seu próprio Pai, aquele de quem guardou completa semelhança, permitiu-lhe um descanso. "Pouco", avisou-o, "é preciso que voltes ao trabalho, não vás acomodar-te antes do tempo". Os anjos, enquanto isso, feitas as pazes com essa estranha e humana invenção do Senhor, puseram-se a guardar-lhe o sono, quem sabe se com a ideia de tomarem para si a capacidade da nomeação do mundo. Em vão.

Adão dormiu por anos, porque a matéria prima do tempo divino é a relatividade. Quando acordou, barbas e cabelos crescidos, foi chamado à presença de seu Senhor, que lhe apresentou, para que lhes desse nome, duas virtudes em forma de barro: a subsistência e a sobrevivência. Adão nem precisou perguntar-se quais eram os nomes de ambas, pois fluiram de sua boca antes mesmo que conseguisse pensá-los. O Senhor olhou-o entre incrédulo e espantado (coisas que são assemelhadas, mas que Adão distinguiu com clareza e sabedoria ao nomeá-las), e pôs-se a observar os dois nomes que entretanto flutuaram da boca de Adão até o barro, entranhando-se nele e guardando-lhe duas formas diferentes. A transformação das coisas inominadas em coisas nominadas acontecera já muitas vezes debaixo de Seus olhos, mas o Senhor não cansava de alegrar-se e aliviar-se - coisas também semelhantes, porém Adão, e os nomes... 

A metamorfose que Adão operava em Seu mundo através da Palavra que lhe nascia, enchia o Senhor de um gozo tal que quase não cabia dentro de si, embora nascesse de dentro d'Ele, o que é no mínimo um contrasenso ou um paradoxo (coisas que sabemos diferentes, porque assim o disse Adão).

Foi assim que, entre espantado, incrédulo, alegre e aliviado, o Senhor viu a subsistência distanciar-se no espaço da sua antes irmã sobrevivência, enquanto os homens por toda a Terra cuidavam ora de uma, ora de outra: a sua ocupação escolhia-as a ambas para firmar seus pés sobre a terra, porém com intentos diferentes, como se verá. 

Os primeiros, reparou o Senhor e fez mostrar a sua primeira criatura, trabalhavam a terra e a semente com os olhos postos no chão; viam brotar os minúsculos prenúncios que antecedem todo fruto, e a sua mente projetava de imediato a refeição dos meses seguintes; e as gavinhas cresciam, o mundo frutificava e alimentava os homens. Então, eles diziam: "Graças a Deus pela nossa subsistência", no que estavam certos, pois era o Senhor que lhes inspirava a existência, que eles ainda percebiam (talvez) como uma sub-sistência. Os segundos, viu o Senhor conforme lhes voltou a serena face, trabalhavam a mesma terra e a mesma semente, mas ambas brilhavam diferentes por entre seus dedos. Embora permanecessem ágeis e ativos, seus olhos alongavam-se no horizonte, alcançando as estrelas, como se soubessem que era de lá que provinham, e que era de lá que, nesse exato momento, seu Senhor os observava. Um deles, então, diria, "Existe muito mais entre o céu e a terra do que as plantas que crescem e nos alimentam"; e outro responderia, "Graças a Deus por sermos quem somos". E tinha razão, pois que todos eram o que eram graças à graça concedida pelo Senhor.

Adão, sentado ao lado de seu Criador, pouco via além da água e da terra de que são formadas todas as criaturas, sejam coisas, animais ou virtudes, entre outras. Os nomes acorriam-lhe sem que ele os chamasse ou procurasse, e afligia-se, às vezes, por não ver mais do que dois elementos na fonte de onde tanta variedade nascia. E o Senhor, nessas alturas, acalmava-o dizendo: "Pois que tudo o que criei e que tu nomeias é feito da nossa mesma matéria, não te aflijas pelo que não podes mudar. Alegra-te, outrossim, pelo poder de transformação que inspiras às coisas do mundo após lhes outorgares seus nomes." E com essas palavras Adão respirava com o coração esvaziado de todo temor e receio (coisas diferentes, já se sabe por quais caminhos) e soube que, nomeado, o mundo estava liberto. E liberdade é tudo o que as coisas do mundo precisam para ser o que devem ser. Depois de, como se depreende, serem nomeadas.


12/10/2012

Vácuo

À entrada da imensa PUC de Porto Alegre há uma também imensa escultura de ferro. Um recorte de figuras humanas, que me fez lembrar aquele André Gide que falava (salvo erro) da estética da espera. 

A observação da escultura associada à lembrança de Gide levou-me ontem diretamente a um estado de alma que, na falta de melhor expressão, vou chamar de craquelado: entre uma epiderme lisa e outra rugosa, uma terceira que se insinua inteiramente infiltrada. Fendas e fissuras por todo lado. 

O dia de hoje chega-me ainda com essa sensação de vácuo, um não-preenchimento que só cresce conforme as horas passam. (Acordo cedo, é um defeito em dias assim. Melhor seria dormir até às 10 horas.) A amiga gaúcha de longe provoca-me: - Bah, guria, vai passear na Redenção! E eu, que já lá tinha estado de manhã cedo, lá volto. Diz-me ela que esse foi o parque da sua infância, que ali estão as suas memórias; neste dia cheio de crianças por todo lado vejo-a pulando à minha volta. E isso consola-me. Ainda que me mantenha perigosamente perto da mesma vacuidade.

Sento-me na confeitaria Maomé para tomar um chocolate quente. Dias como este, solucionam-se às vezes assim: come-se e o sentido retorna. Experimentei a tática várias vezes ao longo do dia, e durante certo tempo pareceu-me resolvido o impasse gidiano - menos vácuo, mais preenchimento. Mas por pouco tempo: mera impressão ou pura digestão. Por isso o chocolate quente a esta altura do passeio na Redenção, que faço acompanhar de um diplomata para ter o que mastigar, já que a matéria interna anda de difícil mastigação. (De manhãzinha a escolha recaiu sobre um pastel integral de ricota e espinafre, achei que seria bom manter-me perto de coisas nutritivas, naturais, saudáveis. Horas depois, dois pedaços de melancia a meio da calçada. E ainda almocei bem: risoto de camarão e uma gigantesca salada, tentativa de chegar ao fim do dia com menos de 3000 calorias ingeridas.)

Numa conversa torpeada de algumas horas, descubro que a Redenção está florida - e fico estarrecida, porque precisou ela avisar-me das flores que estavam logo ali, quase encostadas aos meus olhos. Considerando que ela está a mais de 1000 km de distância, é de pasmar mesmo. Em compensação, posso contar-lhe das datas da Feira do Livro, logo ali em novembro - e ela, que não sabia das mesmas, entusiasma-se em ver passagens pra mesma altura em que eu aqui virei. Enquanto isso, vou ver das flores. É fato: jacarandás em profusão por todos os lados, sibipirunas (creio) idem.

Fico parada, deliciada com a vista, ao lado de um carrinho de churros. Peço um sem recheio, que é doce demais e que ainda me economiza um real. Fico olhando as flores, pensando nessa gaúcha que ainda iria me fazer ter a ideia de ir comer uma coisinha ali na Lancheria do Parque, onde pelo preço de um bife comem quatro pessoas à vontade. Estou sozinha, e a única solução é oferecer de tudo aos dois rapazes na mesa ao lado, que olhavam numa gula de bolso vazio - que nem o meu vácuo, que se fez menor com o passar das horas, mas ainda pode abrigar, como um bolso, a minha mão inteira.



08/10/2012

Servir

Meu amigo,

Quando de repente, a meio desta noite e por entre todas as palavras que disseste, pronunciaste a mais bela de todas - servir -, encantou-se em mim uma flor não desabrochada. Olho-a agora, antes das demais tarefas que ainda me ocuparão as horas, e não posso acudi-las, como não poderei deitar-me e repousar o sono, sem antes escrever-te e dizer-te: tens razão quando dizes que servir é o que verdadeiramente importa.

E digo-te que essa palavra que usas, com uma propriedade que te vem desse tormento aflito em que te vês imerso (e do qual nem foges, nem te esquivas, nem negas, nem condenas), é de fato um verbo, mas conjuga-se de forma diversa e incomum, e principalmente (repara: principalmente) admite tão somente o presente do indicativo. Eu souvir, tu ésvir, ele évir, nós somosvir e eles, todos eles, sãovir. Bastou, por hoje, ser e vir.

Por isso te envio, em forma de palavras voadoras, as pétalas que uma a uma fui desabrochando ao longo do caminho de volta, dessa flor que deixaste junto à porta do universo de palavras que escolho todos os dias ocupar no mundo. Quero com ardência poder estar a teu serviço tanto quanto ou mais te dispões a estar, a qualquer hora e forma necessária, ao meu. 

Despeço-me dessa impressão tão forte que inculcaste na minha alma, e volto-me para os outros trabalhos, esses que me redimem e dão sentido, acalentam e sossegam e que respondem, todos e cada um, pela palavra escrever.

Que a noite te seja leve.

07/10/2012

Trapézios


Especialmente no verão, acontecia assim: andava até o fundo do quintal, empoleirava-se na figueira velha, galho ante galho até chegar aos troncos apoiados no muro. Uma perfeita plataforma de lançamento para o outro lado: um descampado com duas relevantíssimas  funções. De um lado, a cadeia pública, envolta num mistério proibido que fazia fervilhar a imaginação; do outro, o espaço onde todo e qualquer circo que viesse até à cidade montava seu acampamento. Outra forma de formigamento, mais acessível ao pulo furtivo de cima do muro caiado de branco.

Andava ligeira até o círculo de trailers e carros, a lona esticada e firme ao centro. Rodeava, rodeava, aflita sem saber como raios faria para se infiltrar e pertencer. Ir-se embora sacolejando numa casa sobre rodas, com uma tarefa importante que tanto podia ser dar de beber ao elefante como fazer brilhar com afinco os sapatos do palhaço. 

Mas o que ela mais queria era ser trapezista. Sentada num dos lugares mais baratos do circo, porque dava razão à avó, "de qualquer lugar se pode ver o mundo", a única coisa que a interessava (além de espreitar os garotos do circo, de quem queria com urgência ser irmã, prima, amiga, qualquer coisa) era o momento em que os trapézios se iluminavam. Antes mesmo de que os trapezistas avançassem pelo picadeiro, a falta de ar subia-lhe da base da coluna e penetrava em seu cérebro como se alguém das profundezas dela mesma a avisasse de que aquilo era ela fora de si, e era bom que parasse até de respirar para prestar muita atenção.

Passou anos com essa vontade de trapézio. O que não lhe garantiu estar sempre atenta aos que foram se apresentando. Alguns passaram sem aviso nem notícia. Quase não lhes guardou memória, esquece-se dos nomes, não sabe bem em que cidade. Os que apareceram sem redes de segurança foram com certeza o seu maior desafio e desacomodação, e talvez seja desses que ela mais goste. Outros, compoem-se com leveza e tranquilidade, um balançar dos tons da espera suave, como se o tempo passasse por cima da tenda e não alterasse o momento interno. Há por vezes os que, de súbito, se misturam e multiplicam - nesses, há vários trapezistas nos mirantes, observadores que esperam que algo lhes chegue às mãos. Quando acontece de um trapézio se aproximar vazio, puxam-no com habilidade com as mãos e formam linhas oblíquas em seus olhares. Ela está atenta do outro lado da estrutura de ferro, mas raramente se mexe.

No fundo, teme os trapézios furta-cor. Atraem-na, são-lhe irresistíveis, uma espécie camaleônica de natureza, um tempero orientalmente agridoce, uma vagem de tamarindo que se chupa até o fim para aliviar o travo amargo que provoca, e que as pessoas nem sabem o quanto gostam - mas querem. Furtam-lhe as cores tanto quanto lhe furtam o sossego; mas o pior de tudo é quando lhe furtam aquilo que ela chama de confiança, e que responde ao impulso que a faz largar o trapézio sem sequer pensar se haverá quem a alcance do outro lado. A meio do voo, descobre atônita que é bem possível que não haja braços que agarrem e segurem e protejam e se façam atentos, e que apenas a aguarde um vazio cor de tarde triste sem chuva. Que pode ela fazer, sem a rede de segurança que nunca guardou na bagagem, com a confiança que se esfuma e o salto que já deu?

Os trapézios furta-cor divertem-se com a confusão que provocam. São alegres e bem-aventurados, mas escapa-lhes um dom: o de se fazerem eternos nos gestos pequenos de um dia após o outro, porque quando nunca nada se espera, é muito pouco o que se oferece.


Imagem: Mariana Gouveia/2009

30/09/2012

Cabelos de sereia

Hoje de manhã decidi arrumar papeis. Colocar em pastas o que pertence a projetos acabados - tão  mas tão recém acabados que me olham espantados de que os queira guardar. Mas é preciso, inclusive para abrir espaço na minha mesa para os que já batem à porta, insistência mansa de algumas semanas. Descubro, a meio dessa lenta arrumação, atentamente lenta em tudo o que me ocupa inteira, que tenho um trânsito poderoso no meu céu: um marte em  conjunção com mercúrio natal, coisa que, aprendo, só acontece de dois em dois anos, e que me trará a sensação de ter bebido dez xícaras de café. Céus! Já devo estar já na quinta, penso. E canso, só de imaginar o que trarão esses próximos vinte dias, tempo que dura o tal trânsito.

Por isso decido andar pelos campos, para quem sabe diminuir toda essa cafeína astral dentro de mim. Não é fuga, repito pra mim mesma, é vontade de procurar. Volto ao mesmo lugar de ontem, na expectativa de recuperar a impressão já passada, mas acontece como tantas vezes: o passado está lá, consigo quase senti-lo com as pontas dos dedos, de mãos dadas com o presente, mas eu não estou. Olho em volta, deito-me ao comprido na relva, como me recomendaria Caeiro, fecho e abro os olhos, mas nada: o mundo em mim mudou. Ouço a minha filha gritar, num entusiasmo que lhe é bem característico: "Caramba, um campo de cabelos de sereia!", mas é o seu grito de ontem, a sua reedição em meus ouvidos treinados em reeditarem os sons. Rio-me quase como me ri ontem ao ouvi-la, nesse êxtase que vê à sua volta, e vejo-a correr para cima e para baixo, flutuando leve por cima dessas hastes que lhe sorriem tentadoras. Mas ela está em casa, desenhando cabelos de sereia, e quem está aqui sou, mais a minha memória feita de tato e ouvido e gosto.

Volto para casa horas depois, fotografias a tiracolo, um atraso já presente do que é preciso fazer hoje. Olho a minha mesa, a pasta que deixei entreaberta para que o passado terminado respire seu último oxigênio. E de repente penso que o passado são conchas que se escondem dentro de si, estrelas do destino em forma côncava. Ele, o passado, sai por uma porta, trazendo atrás de si o futuro; eu permaneço de pé, mãos estendidas querendo esse presente impalpável que insiste em se tornar mais matéria quando já se foi. Como um corpo que crescesse de repente, num trapézio de rugas que aprendo a interpretar quando se faz noite, um corpo feito de hastes maleáveis de silêncio impenetrável, a que a minha filha deu o nome de sereias.


24/09/2012

Luzes e sombra


É de Jaú, a meio caminho entre Araraquara e Botucatu, que me chegam as palavras mais sentidas que tenho lido ultimamente. Abro uma pausa para relê-las e relê-las e relê-las outra vez. Aproximo-me delas por todos os quadrantes, deslizando nesse trapézio oscilante em que se oferecem, sem chão sob seus pés. Quase posso tocá-las, de tão tênues, pequenos fios na direção de um outro que pôs um fim a si mesmo. Para não dizer de quem são, uso-lhe a inicial: R. Personagem de si mesmo, dizendo-se despreparado num tão absoluto preparo, daquele tipo de que apenas as crianças sabem os caminhos. R. estende-me a mão desde o seu vazio, triplicando a força de um ponto final, transformando-o em reticências - reticências que se abram numa maiúscula que lhe inaugure um tempo novo. Mais pleno. Menos doído.

R. escreveu-me de manhãzinha: o que faço com isso tudo que sinto, pergunta. Resposta padrão, a que dou a mim mesma quando me sinto assim (e quando não também): escreve, R., escreve. Em primeira pessoa, jogando-se nas palavras como se seu mais caloroso leito, jogando-as sobre si como se tivessem (e têm) o poder de lavar-lhe a alma, mergulhando na sua densidade, deixando-se permear absorver resolver. Depois vemos, digo-lhe. Lemos juntos. Em pouco tempo, recebo de volta as suas palavras de limpeza e desabafo. Um texto lindo - pena que não posso publicá-lo, penso.

Desculpa-se de há muito não escrever, e ainda e sobretudo da sua "gramática terrível". E eu fico matutando nesse "terrível" que usa com um peso que pressinto; imagino que pense na pontuação atribulada, na concordância invertida, em todos aqueles sintomas que advertem (e curam) uma alma em conflito. Digo-lhe que não há nada de terrível; terrível é ver-se a si mesmo refletido numa tela de palavras que não sejam suas, e que nada digam a ninguém; terrível é ver-se entalado e afogado em pontos e vírgulas e reticências quantas reticências, que não pertencem ao momento da sua alma, e que mais a anestesiam que a inebriam, e mais a afastam do outro do que potencializam o seu juntar-se. Terrível é sentir-se terrível no campo aberto da linguagem, sem conseguir libertar-se de tanta limitação e interdito. E R. não se sente nada disso - portanto, digo-lhe, não use terrível. Deixe-se ressoar.

Gosto da subversão com que as palavras e as pausas seduzem e instigam, aliciando rebeldias desde o miolo do papel. Gosto do gosto que lhes sinto quando se oferecem assim, tão nuas e virgens, e se deliciam entre nossos dedos pelo simples prazer de estarem entre eles, espremidas e molhadas e inteiras e aos pedaços. Nada há de terrível na vírgula que tão bem se coloca entre duas frases que saem entrelaçadas como morte e vida, agarradas a qualquer trapézio, sublinhando toda reticência para que se abra e seja mais e melhor e sempre.


Foto de Álvaro Guedes. 
Exposição "Lágrimas de São Pedro", no Sesc Araraquara, em agosto.

21/09/2012

Urgências e premências

Era uma padaria, hoje de tarde, e ambos pareciam estátuas. Ângela e Mauro sequer se mexiam. Precisei dar-lhes nome, explico a minha interlocutora, sentada ao meu lado: para não afundar nessa tensa presença do esgarçar de um pano, lançada desde onde se sentam, à minha esquerda. Ocupam uma mesa redonda que, em vez de congregar, distancia. (Minha interlocutora alterna um olhar espantado entre o casal sentado à mesa e eu, que não consigo explicar-lhe mais nada e tenho dificuldade em entender o que me diz daqui em diante.)

O pé de Mauro dobra-se, escondido por baixo da cadeira numa vergonha surda, e é imperceptível o movimento que faz, muito de vez em quando. Ângela, olhos verdes que se enchem de água ao de leve, fixa seu olhar na janela, no trânsito da avenida lá fora, nas pessoas que passam através do vidro. Não vê nada, mas ainda assim fixa-se, procurando um ponto de apoio na solidão que a inunda. A sua blusa branca não transpira paz, só uma espécie de substrato do medo que se sente diante do precipício que ela batizou, hoje de manhã, de futuro.

A mão de Mauro está entre as suas, por entre as unhas vermelhas cuidadas. Como o cabelo pintado, destacando o tom marítimo dos olhos. Sim:  olhos verde-marítimo. Como as águas que não rolam do seu peito, depois da descoberta. Sei que os olhos de Mauro estão presos aos dela, ainda que ele esteja quase de costas para mim. Vejo-lhe as hastes dos óculos, e pouco mais. O cabelo ralo, o corpo inclinado num desejo aparência de reconciliação, a jaqueta azul escuro combinando com os tênis em seus pés cansados.

Não há palavras, e a minha aflição cresce. Digo para mim mesma (e descubro que foi em voz alta, porque a minha interlocutora olha-me surpresa) que não irei embora antes deles se movimentarem e resolverem as suas pendências.

Como se me ouvisse, Ângela move-se. Afasta-se do encosto da cadeira, abandona as coisas vidradas lá de fora e embala a fixidez das suas retinas nas de Mauro. Não há nada, em seu olhar, a não ser mágoa. E talvez uma palavra entalada na garganta, aquela que a sua boa educação, contida, calada, não permite tornar-se audível. E talvez algo que poderia soar parecido a "como você quer que eu consiga respirar debaixo da pedra que você colocou em cima de mim?". Mauro é um pequeno animal apanhado em flagrante, a  respiração alterada por baixo da jaqueta. Não tem pedras em suas mãos, seus pulsos são fracos, frágeis, débeis. Quase desprezíveis, ouço-me pensar. E preciso escrever, ouço-me dizer.

Passa-se muito tempo, o suficiente para meu cappuccino esfriar. (A minha interlocutora ri-se. Também ela, creio, escreverá ao chegar a casa. A escrita é uma entidade contaminadora.) Vou-me embora antes que a situação afinal se resolva - tenho horário, o trânsito paulistano não perdoa, os alunos estão à espera, há coelhos frenéticos de relógio ao pulso por todos os lados. Mas não posso deixar de carregar esses dois seres, que mais que provavelmente nunca conhecerei, dentro dos meus dedos. Preciso desembrulhá-los, descarregá-los, desembarcá-los assim que chego ao meu destino, numa brevidade urgente de escrita. A eles e à sua tensão sofrida, ao fim que seus olhares prenunciam e que as mãos querem a todo custo retardar retardar retardar.

É assim, às vezes: como se um risco fugaz de ideia pulasse do que está em volta e se acoplasse aos nós dos dedos, e de lá precisasse sofregamente pular novamente, em busca da caneta, do lápis, do teclado. Mais forte do que a própria vontade, os nomes ficcionais  agarram-se aos  neurônios,  criam vida, independentes de repente dos seres de carne e osso que os fizeram emergir das sombras; colocam-se em contato por mil sinapses desenfreadas. A mim, são capazes de me atormentar por horas a fio, a um canto escondido do cérebro que vive dentro do meu coração, até que capitule. Aí, então, sento-me e escrevo até que algo em mim diga "estou satisfeito". E me deixe descansar, todas as Ângelas e os Mauros em silêncio por algumas horas.


19/09/2012

Flores de ontem


Meus amigos acharam estranho o nome: alstroeméria. Fui conferir e, de fato, o nome da flor que levei de presente é esse mesmo. A culpa é de Claus von Alstromer, um sueco barão que em 1753 recolheu suas sementes e as levou para a Espanha - lá, ficaram conhecidas como Lírio dos Incas. Ainda assim, o barão deve ter gostado de lhes dar o seu nome, tanto quanto eu gostei de tê-las oferecido.

Flores são presentes que gosto de dar. Especialmente de corte, porque demandam o cuidado e a atenção de buscar-lhes um recipiente. Entre todas, gosto especialmente delas, as alstroemérias - além de lindas, duram uma eternidade (ou quase). Associam-nas, aqueles que gostam da linguagem das flores, à felicidade que pode unir as pessoas. As suas folhas crescem ao contrário: a folha torce-se ao sair do talo e ao final elas ficam todas viradas ao contrário, suaves contorcionistas. Como as amizades e outros sentimentos assim, que precisam torcer-se vezes sem conta sobre si mesmos para sobreviverem. Não precisam de tanto contorcionismo, estes amigos: a amizade entre nós não se interrompe, apesar da distância e do tempo que escasseia e impede que nos encontremos como gostaríamos.

Gosto de pensar que as alstroemérias que lhes levei permanecem no jarro da sala, seu recipiente físico, e aí ficarão durante muitos dias, viçosas, coloridas e sobretudo resistentes. O recipiente maior, no entanto, está dentro dos meus amigos, naquele lugar que abrem para o nosso encontro. É aí que esse símbolo que escolho com cuidado, as alstroemérias, encontra seu lugar de verdadeiro acolhimento. Quando há espaços internos para receber e ser recebido.

Como elas, resistimos, alicerçados uns nos outros. Para não sucumbir, para não permitir que o cansaço, a falta de tempo, as voltas que a vida dá impeçam que se veja diante dos olhos, luminoso e altivo, o entrelaçado da vida. À distância, os olhos dos meus amigos abrem-se para a permanência que as alstroemérias conferem ao lugar em que estão, e sei que sentem, por entre as suas flores, a presença concreta da nossa amizade. Tão concreta quanto as alstroemérias da foto: ontem, tentei reeditar essa forma de sentir. E as flores repousam dóceis  e resistentes na janela da sala.