19/06/2012

A cidade nova XIII - o cemitério

Cemitérios são lugares calmos e sossegados, silenciosos; ninguém incomoda ninguém, ninguém pergunta nada, não tem lágrima que se estranhe. Tenho um cemitério a duas quadras de casa - centro da cidade, cemitério que nem é bonito de se dar nota. Mas tem aqueles ingredientes: sossego, calma, silêncio e solidão. Que é coisa de que se precisa, e por isso passeio por lá com frequência.

Chego hoje e seu Isidro me cumprimenta. Acho que se acostumou  com a minha presença. Descubro que trabalha há anos por lá, tantos que perdeu a conta, limpando e lavando o que precisa ser lavado, pondo e tirando terra de covas. É de poucas, quase nenhuma, palavras, mas veio me perguntar hoje o que é que eu tinha perdido por lá, que tanto aparecia. Disse-lhe que não tinha perdido, mas achado: o sossego, a calma, a solidão e a sombra fresca. Olhou-me nos olhos, abanou a cabeça, retomou a enxada que deixara a um canto e desejou-me um bom dia. Seu Isidro tem um par de olhos cor de mel claro, com um vidrado que os faz brilhar. Olhos estranhos, que se fecham assim que encontram outros. Decidi não ir atrás dele. Fui atrás da estátua que há semanas quero fotografar.


As alamedas são cheias de murtas antigas. Troncos retorcidos, folhas miúdas, a um lado e ao outro. As mais antigas estão na alameda central, fazendo companhia às famílias mais tradicionais da cidade, quando ainda existia espaço para jazigos. Espremem-se os mortos uns ao lado dos outros, sem queixas, sem lamúrias, quietos e parados debaixo da terra. Tudo ladrilhado à flor da terra, num puzzle que se esqueceu de olhar o todo e parece uma colcha de retalhos mal projetada. Ninguém olha o morto alheio quando enterra o próprio. 


Num desses jazigos, todo dia me chama a atenção uma escultura, de longe a mais bonita de todo o cemitério. Já tinha decidido pesquisar-lhe a origem. Valeu a pena o tempo investido hoje.

A escultura foi capa do catálogo da exposição individual do artista que a idealizou, em 1936. Ottone Zorlini. O sexto de sete filhos nascidos em Treviso. Ottone nasceu no fim do século XIX e mudou-se pra Gênova na década de vinte. Menos de 10 anos depois, já estava em São Paulo, com seus instrumentos de escultor a tiracolo. Tornou-se amigo de Volpi, de Mário Zanini. E de uma porção de outros nomes que a mim, leiga por completo, não me dizem nada.

É a sua obra, a escultura que tem me seduzido. Fico sentada à sua frente durante horas, ora de um lado, ora de outro. Como cemitério não é museu (acho), posso encostar a mão em qualquer lugar que me apeteça. Assim os detalhes entram em mim pelos poros sem olhos. As mãos, os pés, as superfícies envelhecidas e duras. Riem-se, aqui em casa, quando tento sair de fininho, não consigo, e acabo confessando que vou ao cemitério. Vou em busca dessa frieza dolorida fustigada pelo tempo.


Mas no fundo são os sonhos enterrados que me chamam para esse lugar, a sensação da vida que chega ao fim, as fotos sépia envelhecidas nas pequenas molduras pregadas às lápides, o parto ao contrário, a viagem de volta. Como as flores de plástico, que não morrem, também permanecem as saudades, coladas às pedras e aos azulejos.


É triste ver os cortejos saindo do velório ao lado, avançando em medidos passos lentíssimos pelas alamedas sombreadas, um ritual tão antigo que esquecemos porque não passa ao nosso lado. Mas o tempo, aqui, tem outro ritmo. O de seu Isidro, que passa e acena com a cabeça, ocupadas ambas as mãos  com o carrinho cheio de terra de cova. O cemitério se enche de pessoas que atravessam a alameda central para chegar à rua de cima - entram dum lado, saem do outro, pura conveniência ditada pela pressa. Nem reparam no que está. Cemitério é lugar de onde se foge, ou por onde se passa de sentidos fechados.


















































18/06/2012

Segunda feira

Há dias como os de hoje, plena segunda feira, em que se fica zanzando à procura de sentido. As horas não passam, encalacradas umas nas outras. Não é falta de trabalho: estou rodeada de textos, uns que precisam ser escritos, outros reescritos, revisões que precisam chegar ao fim, traduções que esperam pacientemente que volte a elas. Não é falta de trabalho: é falta de sentido.

"Como se houvessem fantasmas de nós mesmos em lugares que não mais habitamos", diz-me uma amiga de longe, agora mesmo, respondendo a um email que conscientemente buscava sentido no alheio, e que com estas palavras sei que me entende. Ou como se tivesse "saudades do futuro", responde-me outra, no bate-papo, fazendo parecer que está aqui ao meu lado. É tudo isso, e mais um pouco, ao mesmo tempo.

Dona S., ontem, contava-me o quanto detesta os domingos - dias em que a cidade pára (e pára mesmo, esta), em que nada acontece, em que as filhas vêm para almoçar e parece que esquecem de ir embora, e ela querendo logo que sumam para poder ir tomar sorvete sossegada lá em baixo, na sorveteria do São Geraldo. E seus olhos estão tristes, quando me diz isso, de repente seu rosto sem brilho num domingo atormentado. Tenho vontade de lhe dar um abraço, mas não me mexo.

Fui visitá-la, agora cedo. E o brilho voltou-lhe, as segundas feiras não a incomodam em nada, tem um ritual todo próprio para dar conta da semana.

- O duro, Ana, são os domingos. Quase que podia viver sem eles - E eu arrisco-me a dizer-lhe que institua um ritual também para os domingos. E ela responde-me sem saber o quanto me responde: - Mas como é que eu podia viver a vida inteira achando que vale a pena, se não tiver um dia que parece que não vale?


Volto a sentar-me diante do papel para reencontrar um qualquer sentido, daqueles que só alcanço quando as palavras me desabitam. Dona S. nem desconfia o quanto me ajuda, do lado de lá do muro que divide as nossas vidas em duas metades, a árvore de canela que nasce no quintal de lá abrindo-se prodigiosamente em galhos e folhas para o lado de cá. Até meus fantasmas desabitados têm saudades do futuro.

17/06/2012

Exercício: personagem em diálogo a uma voz

Júlia olha o teto com os olhos abertos, as pálpebras finas cobertas por uma sombra cor de terra, os cílios pesados de tinta. Júlia tem muito cabelo, preso todo ele num rabo de cavalo alto. Suas mãos descansam pesadas em cima do abdome, e de vez em quando o polegar e o indicador da mão direita apertam o dedo do meio da mão esquerda. Júlia tem mãos de dedos longos como enguias. A seu lado, numa pequena mesa, uma jarra e um copo. Os raios de sol brincam com as superfícies transparentes, e o ar brilha ao redor do vidro cheio de água. Não há ruídos em volta, a não ser os passos que de vez em quando ecoam do andar de cima. A parede ao seu lado está inteiramente coberta por prateleiras de madeira escura, e estas de livros. À sua frente ergue-se a reprodução de uma imagem, um anjo que adverte, espada numa mão, balança em desequilíbrio na outra. É firme, o olhar do anjo, e encontra-se de vez em quando com o de Júlia, enquanto esta passeia pelos dourados que o rodeiam. Tudo o que Júlia diz desaparece no ar em volta. Apenas as palavras de P. permanecem em seus ouvidos.



          - Não, Júlia. Se você estivesse morta, obviamente não poderíamos ter esta conversa. Você não teria acordado de manhã e vindo até mim, subido as escadas da entrada, aberto a porta do elevador, premido o botão que a trouxe até este sexto andar.
                 ...

               - Mas há uma parte do que não se entende que é o que nos faz entender o resto. E acredito que você esteja aqui porque essa parte que não se entende bate à sua porta com insistência, e a maneira que você encontra de despachá-la é acreditar que esteja morta.
                    ...

                - Isso não importa, Júlia. Você precisa olhar de frente essa parte que você acredita morta e perdoá-la. Ou perdoar-se, vem a ser o mesmo.
                 ...

                 - Sim, a sua vinda é um passo.
                 ...

             - Tome quanta água quiser. Não precisa pedir licença pra isso. Mas não fuja para dentro do copo, nem acredite que a tímida fuga lhe traga um tempo de trégua.
                ...

                - Trégua, sim. Das circunstâncias da sua vida.

A mão hesita entre tomar o copo entre os dedos e não tomá-lo. Entre sorver um gole de forma rápida e automática e prestar-lhe intensa e absoluta atenção. Fica estacionada no ar, como uma lua cheia por cima do pânico da noite. E volta ao regaço.

                - Você percebeu, Júlia? A sua hesitação?
                ...

                - A que a fez largar o copo antes de mesmo de agarrá-lo?
                ...

               - Não se desculpe, é bom que chore. As lágrimas mostram-lhe que não há secura dentro de você. Lembra-se de ter-me dito isso?
                 ...

                 -  E porque não foi ao encontro desse amigo, então, em vez de ter vindo ao meu?
                 ...

                 - Eu teria tempo para você, a qualquer momento. Você sabe disso. Não sabe? Se quer inventar uma desculpa, é melhor que seja outra.
                  ....

                - Mas você não está morta, e a prova está no momento em que eu lhe digo que você está aqui. Eu a ouço. Eu a vejo.
                  ...

                 - Vejo-a sim, por detrás dessa máscara que você colocou ao acordar, como disse ao chegar. As suas máscaras não são tão densas e opacas a ponto de que não se veja o que escondem.
                 ...

                  - Faça o exercício. Olhe-se a partir da parte que sente não ter morrido.


Imagem: anjo protetor contra  demônio, de Simone Martini.

13/06/2012

Fado: a terra ou o mar?

Antonio Sampaio da Nóvoa é reitor da Universidade de Lisboa. Homem culto, falante de várias línguas, lúcido, inteligente e afetuoso. O seu discurso no dia 10 de junho, em Lisboa, convidado oficial para falar no dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, não se furtou à crítica necessária, e dura, ao estado atual desse país ibérico. Contundente e forte, a sua fala reflete o seu compromisso com a reinvenção do país que é o seu, e que assume como sua tarefa. 15 minutos densos e leves ao mesmo tempo. Recheado de referências poéticas, seu discurso assume a a coragem de erguer o nome de José Afonso, 25 anos passados da sua morte, quando cantava "enquanto há força (...) cantemos todos".

Gosto imensamente de saber que somos amigos, gosto de encontrá-lo nas suas presenças por aqui, porque por poucas que sejam as palavras que tenhamos tempo de trocar, percebo-lhe sempre essa segura, clara e afetuosa maneira de tratar a vida, aproveitando os momentos que outros tomariam como circunstância para vivê-los de fato e ser-se intenso. Ouvi-lo neste 10 de junho foi um presente.

É desta forma que gosto que Portugal apareça à minha porta. E logo hoje, quando mais tarde se cantará o fado, levanto-me animada pelas palavras de poetas que não frequento com assiduidade. Vozes que demoram a deslizar das prateleiras, ficam ali paradas à espera, até que o dia (hoje) chegue. Leio-os e sinto o mar no seu encontro com o Tejo, um cheiro que não se repete em nenhum outro lugar do mundo. Hoje, dia de Santo Antonio, padroeiro de Lisboa, revejo as calçadas de Alfama, os becos da Mouraria, a encosta do Castelo, formigueiros humanos que se juntam para cantar e dançar, comer umas sardinhas, beber um vinho da casa. Sento-me à mesa da tasca da Estrela e peço uns caracois, ainda que não seja tempo deles. E olho em volta para as paredes azuis, para as mesas de mármore lustrado e côncavo de tanto uso, para o chão de tábuas corridas por onde tantos de tantos séculos caminharam, e respiro aliviada, porque se o passado existe em mim, o presente tem luz e o futuro é mais que uma promessa.

A terra ou o mar?, pergunta Nóvoa, repetindo séculos de história. Crescer dentro de si ou partir para longe? Centenas de aventureiros marítimos lançaram-se mar afora, ampliando a alma de um país que se faz pequeno no espaço. A escolha insistente pelo mar, abandonando a terra à própria sorte, cobra seu preço hoje. E o que Nóvoa faz é denunciar as nossas ingenuidades, sem pôr de lado as ilusões. E a sua divisa acende-se nas palavras de Sophia - a busca de um país liberto, de uma vida limpa e de um tempo justo.

O discurso a que me refiro:



11/06/2012

A mais curta história de Armindo


Armindo está parado na fila do caixa há muito tempo. Tenta, a duras penas, o que deixara de ser normal, controlar a sua impaciência. Não deixaria que seu sangue quente lhe complicasse a vida – ou seu temperamento colérico, como preferia seu médico amigo, ou amigo médico.  Era difícil saber o que definia e o que qualificava a relação que mantinham, entre a amizade e a terapêutica. Um pouco como aquela diferença que existe entre uma grande árvore e uma árvore grande.

Seu temperamento colérico. Na época em que ouviu a expressão pela primeira vez, pôs-se a pesquisar Hipócrates e os quatro temperamentos-base. Reconheceu-se, logo à primeira vista, nesse tipo que explode e depois considera, que fala e depois vê que devia ter-se calado. Decidiu (colericamente) superar-se a si mesmo e, com a persistência necessária, tinha conseguido. Exageradamente, até – quem o vê agora, dirá que é taciturno, um melancólico típico. Nada disso: apenas um colérico escondido. Esse supermercado devia tomar cuidado. Nunca se sabe que animal se aloja dentro das pessoas.

Essa decisão, de se superar a si mesmo e a seus instintos mais primários, resultou de um incidente numa parada de ônibus. Armindo já tinha descido irritado por mais uma interrupção na viagem. Aguardava-o uma conversa decisiva (nem o sabia naquele momento, mas algo intuía dentro dele que assim seria), e pra que parar tantas vezes? Por não ter mais nada a fazer, pediu uma coca-cola ao balcão da lanchonete, confirmando duas ou três vezes se estava bem gelada. Nem estava, nem ele achou que a atenção do balconista tivesse sido a que merecia. Irritou-se. Além do normal, reconheceu depois. Uma coca cola quente não poderia ter resultado numa vitrine espatifada pela força do seu punho. Foi tão grande o susto que a lanchonete inteira parou, o tempo parou, os estilhaços de vidro passaram diante de seus olhos refletindo um arco-íris com a própria câmera lenta. 

Anos depois, deitado no divã do terapeuta, recoletara da memória esse momento, reconhecendo-o como um divisor de águas. Não pelo dinheiro que tivera de desembolsar, não pelo vexame tão grande em meio a tantos desconhecidos, não pela dor de cabeça que o acompanhara daí até Brasília, nem tampouco pelo desastre que fora a conversa que lá tivera, afinal. Mas pelos estilhaços de vidro que permaneceram dentro de si, sem ele saber; pelas cicatrizes na alma que o momento lhe rendera, talvez o primeiro daqueles em que se olhara sem véus nem espelhos nem desvios subjetivos - e não gostara do que vira. Uma vergonha pesada e opaca apossara-se dele e, logo depois, a urgência, a premência de se transformar em outro, alguém que pudesse apresentar a si mesmo, diante do balcão de qualquer lanchonete de cocas quentes, e se orgulhar. Sim, responde ao terapeuta, a conversa com Isaura também tivera seu peso, também ela o atingira como um estilhaço, uma bala perdida em busca de um coração desgovernado. Mas fora o balcão de vidro, e o frio contato com seu punho, que o transformara numa pessoa diferente. Seus dedos passeiam pelos cabelos grisalhos e Armindo para de falar. O silêncio não consegue ser tão denso quanto tudo o que sente e não sabe dizer. 

04/06/2012

Aos meus amigos

Um amigo querido aconselhou-me há alguns dias a fazer terapia. Ele não é o primeiro, nem o único, e provavelmente não será o último a dizer-me o mesmo. Rio-me e digo-lhe que não. Mas ele não sabe os motivos da minha negativa. Escrevo para que saiba. Até porque foi enfático na sua recomendação.

Tenho a pretensão (veja bem, meu amigo, que é apenas pretensão) de poder encontrar alicerces em outros lugares. Lugares chamados amigos. Talvez porque a única experiência de terapia na vida ter-me deixado uma impressão estranha, embora eu tivesse 5 ou 6 anos de idade: guardei o nome da psicóloga, que me perseguiu anos através de qualquer sonho que eu tivesse, às vezes metamorfoseada num gorila imenso que me furava impiedosamente com um polegar desproporcional. Há poucos anos, numa reunião de antigos comunistas numa minúscula aldeia portuguesa, a meio do Alentejo que acolheu tantos clandestinos, ouvi-lhe o nome. Encolhi-me aflita, rejuvenescendo até aqueles incômodos 5 ou 6 anos. Gelaram-se-me os pés, e logo, com a inevitabilidade dos encontros marcados, vi-me à sua frente. Elisete deu-me um abraço com toda a força de seus braços, forte, duradouro, como se sentisse intensa felicidade de ter participado da "salvação" daquela que era criança desajustada e agora lhe reaparecia mãe de família, realizada - com o ar de felicidade que os nativos de sagitário sabem tão bem exibir mesmo quando estão emparedados dentro do vazio mais escuro. E eu achei-lhe graça, retribui-lhe o abraço na mesma medida embora os pés continuassem frios. Mas isso não fez com que pensasse seriamente em fazer terapia.

Vejo, pelas experiências que outros compartilham comigo, que é bom. Que faz bem. Que alivia, permite que se vejam de si mesmo lados que sozinho não se enxerga. Que faz crescer. Amadurecer. Mas eu gosto de pensar que conto com meus amigos para isso, aquele tipo de amigo que diz o que sente, aquilo que talvez até não devesse, mas precisa.  Por amor à amizade que nos temos. Diz o que sabe irá magoar, mas que eu preciso ouvir. Alerta. Acolhe. Avisa. Pontua. Assinala. Investiga. Perspectiva. Às vezes impiedosamente tudo isso ao mesmo tempo. E depois alcança-me a manga da própria camisa para que seque e embale as lágrimas, num tempo que é só nosso e não tem medidas.

Imersa numa espécie de solidão nova, tenho amigos que me falam do além, que se personificam em palavras e folhas de papel; amigos que conheço, e reconheço, através da escolha de palavras que fazem, da sua observação do que poderia ser eu própria, assumindo as dores e os nomes de outras pessoas. Esses amigos, camuflados em livros, criam em mim uma relação onde espaço e tempo não existem, por decisão unânime de todos nós. Rodeiam-me de sabedoria tecida em formas simples e complexas, parágrafos que preciso ler e reler, a cada nova vez mais atenta, como se estivesse dentro da aula em que me ensinaram o "close reading". O ler de perto. O ler dentro. O ler cada palavra, cada letra. 

É dessa forma que penso e olho hoje meus amigos: essa forma de amizade que chamo de "close friending". Tenho sorte, muita, de ter amigos assim ao redor. Na relação com cada um deles, construo-me a mim mesma nessa escuta próxima, atenta, miúda; vejo-me de outros lados, através de seus olhos que refletem parcelas que as superfícies que uso para me ver não conseguem. São amigos inteligentes: riem-se quando assumo os papeis que conhecem tão bem, quando lanço mão do arsenal de máscaras que eles, argutos,  percebem. Encolhem os ombros e fazem-me saber, sem palavras, que deixe disso.

E é claro que sei que é um jogo de espelhos, mas amigos assim também sabem que é um jogo de espelhos, e que a amizade é uma via em que se vai e se vem. Sabem o valor imenso da advertência amorosa, e não temem lançá-la na minha direção. Ainda que depois tenham de consolar-me e dizer-me que apesar de todas as minhas fraquezas, chatices, resmungos e erros, eu valho a pena. Porque há dias em que é preciso ouvir que se vale a pena, e quando você, meu amigo, me diz que preciso fazer terapia, leio nas suas palavras o pensamento posto amorosamente em mim. E a sua presença assim ao meu lado me faz dormir melhor.

30/05/2012

Moléculas estrelas


Fragmento encontrado numa gaveta de Júlia, a personagem suicida

"Não há diferença entre a respiração daqueles que dormem ao meu lado. Cada qual busca em mim pessoas diferentes, mas a respiração do sono mergulha-os a todos numa mesma imensidão distante. Acordo e olho em volta, e estou sozinha diante desse mar que não se altera. O horizonte está à mesma distância sempre.

Quem dorme ao meu lado crê ter visto aquilo que sou e desejo - mas não há nada entre nós a não ser essa respiração pausada, lenta e inconsciente. Todas as palavras que brotam ao lado dos que dormem precisam ser esfregadas desse sal transparente e áspero que se lhes agarra, o suor das almas imersas no sono, arrepiadas e aturdidas das presenças alheias. É preciso ocupar-se, no dia seguinte, da sua limpeza, da água que livre o corpo dos destroços do espírito, dos reféns feitos poeira por entre as janelas da noite, e poder revisitar-se outra vez sem medo, sem culpa, sem temor. Só água.

Como moléculas impregnadas daquilo que passa e jamais fica. Moléculas de densidade móvel, que se esvaem quando se espera o contrário. É um erro, esperar qualquer coisa. É preciso ficar-lhes a salvo, sobreviver à causticidade agreste com que se impregna seu núcleo. Querem-se doces apenas enquanto abertas. Depois, quando se fecham, quando decidem dedicar-se aos seus afazeres mundanos, distanciam-se, embrulhadas firmemente num esquecimento de agruras calmas. Calmas, mas ainda assim agruras.

Fazem crer, sem que se dediquem a isso, que suas membranas são permeáveis - mas acontece apenas quando e se querem. Não há entrega incondicional entre moléculas; selecionam dentre o que se lhes oferece aquilo que querem, e descartam sem o instinto da piedade o que não lhes parece útil. Ainda que seja, e não o saibam: porque moléculas não possuem órgãos de audição definidos, nem estão empenhadas em saber das suas vizinhas por outros meios. Tateiam suas presas com as fímbrias dos seus tentáculos e engolem-nas como peixes sedentos, matéria que se amalgama à sua pele transparente e a torna mais brilhante, mais potente, mais tentadora.

As almas que se permitem a entrada de moléculas assim precisam precaver-se, ainda que a precaução seja sua própria antítese. Precisam, a todo custo. Para que não se incendeiem a ponto de não reconhecerem as próprias cinzas. É preciso, urgente, que marquem a si mesmas com a cor que a só elas pertence, a única que sobrevive à queima em alta temperatura. Depois, no esfriamento dos dias que se seguem, abrir os olhos para os sinais da fênix que vive em cada qual, dispostos de maneira peculiar dependendo do estado do céu. Abrir as asas à ave, caso não solte as últimas cinzas, limpar-lhe o bico para que se alimente dos restos de si mesma, uma arqueologia de morte. Um desafio e a benção da memória. Para quando a próxima queima se aproximar. Porque as almas que se permitem a entrada de moléculas assim são desta forma: de queima em queima, de renascer em renascer.

Aqueles que dormem ao meu lado são moléculas soltas num universo sem forma, pedaços de mim mesma espelhados no outro, criaturas como crateras, poros em expansão por dentro das minhas vísceras, estrelas a tantos anos-luz de distância que não se sabe se vivem se morrem. Moléculas estrelas, que se apoderam de meus melhores bocados, que os engolem sôfregas, que transitam pelas galáxias da linha do céu, que não se alteram e me devolvem de outras cores. E eu permaneço quase a mesma, forma plástica no horizonte inalterado, os pés sendo engolidos pelo avesso das moedas de troca, a alma cheia dos pontos de luz da estrela que explode."


Imagem: Betelgeuse, supergigante vermelha da constelação de Orion, a 1270 anos-luz de nós.

28/05/2012

A cidade nova XII - o abacateiro de seu Ambrósio

Até agora, só conhecia seu Ambrósio por dentro. Por dentro do seu corpo debilitado por uma sequência de pneumonias mal curadas. Os muitos raios-x que encontrei no armário de um dos quartos aqui de casa mostram-me as suas costelas estreitas, os finíssimos véus brancos em alguns pontos dos seus pulmões. Passei um bom tempo olhando-o, assim que cheguei, tentando relacionar-me com essa pessoa ida.

Seu Ambrósio morava na casa onde eu moro. Dona S, aqui na casa do lado, já me contou que era homem de gostar de árvores, uma espécie que ela parece não entender muito bem. Duas casas mais abaixo, dona F diz-me que seu Ambrósio vivia plantando mudas na calçada, que alguém arrancava durante a noite. E ela faz aquela cara muito óbvia de que desconfia, justamente, de dona S, tamanha a aversão que tem a folhas sujando a calçada. "Como se folhas fossem sujeira, nunca vi tanta vontade de limpeza", completa a desconsolada senhora, que me parou na calçada para saber, preocupada, se eu cortaria ou não o abacateiro do quintal. E abre um sorriso quando lhe digo que o quintal foi justamente o que me conquistou, com seu abacateiro de mais de 50 anos.

Seu Ambrósio era enfermeiro; trabalhou muitos anos no posto do INSS de Araraquara. Fazendo curativos e coisas assim, pelo que me contou dona S. No dia em que fecharam o ambulatório, não teve dúvidas: abriu a sua casa para quem precisasse dos curativos, sem cobrar nada. Ocupado só com a necessidade do outro. É aí, creio, que reside a diferença entre preocupar-se e ocupar-se: na ação. Naquilo que migra do pensamento e se transforma em visibilidade. Acho que eu andava à procura do coração de seu Ambrósio por entre as costelas radiografadas.

Sua esposa, dona Djanira, pertencia à Assembleia de Deus. Levantava-se todos os dias uma hora antes do necessário (aos olhos do mundo) porque havia muita gente no mundo que precisava da oração dela, e ela usava pelo menos uma hora para essa tarefa, enumerando essas pessoas e lançando seus nomes na direção de Deus, para que ele as amparasse na sua inextinguível glória.

É Jane quem me conta tudo isso de olhos cheios de lágrimas. Dona Djanira era tia dela. Toca a campainha de casa porque precisa cobrar a laje que me vendeu, e eu esqueci de pagar. A laje que agora cobre o quartinho onde dona Djanira rezava, percebo. Todos os dias, sem um sequer de descanso. Uma vizinha de fundos adoeceu, certa vez, e dona Djanira, aflita por ajudar, fazia faxina na casa toda semana. Queriam pagar-lhe, mas ela sorria e dizia que era um serviço que ela fazia melhor só pelo prazer de ser útil ao outro., mesmo que a artrose de seus dedos lhe doesse à noite. "Ah", dizia, "Ambrósio cuida disso pra mim." E sorria, consigo até imaginar que um sorriso alquebrado de dentes. Jane nem quer entrar, diz que vai emocionar-se muito, e precisa trabalhar o dia todo. Fica feliz só em saber que eu gosto de saber. E eu prometo-lhe uma crônica - promessa que ela não entende, mas assim mesmo é o que posso fazer.

Entrego-lhe os cheques de pagamento e de repente dá-me um abraço, enxugando antes as lágrimas com as costas da mão. Diz-me que com certeza serei feliz nessa casa, porque durante décadas e décadas abrigou duas pessoas que faziam o bem sem olhar a quem, e sem querer ter retribuição. Não era nem questão de  esperar retribuição, mas de querer mesmo.

Aos poucos vou reconstruindo a imagem desse casal que deixou tantas marcas pela casa, e que se entranham na minha vida de pouco em pouco sem motivo aparente. Olho o abacateiro de seu Ambrósio, e as dúzias de abacates que caem prodigamente ao chão todos os dias. Certamente seriam outros, estes dois velhos, e não aquilo que ouço deles  agora, e é bom pensar que as marcas que deixaram no mundo fazem jus àquilo que havia de bondade neles. Que os tropeços, os desajustes, as torpezas ficaram no passado que se esquece, e que sobraram os dias bons, os gestos bonitos, as formas gentis de se ser humano. Coisas que inspiram a semana que começa.

20/05/2012

Dos advérbios

Dizem-me que esqueça os advérbios que uso. Aquelas palavras invariáveis que modificam as ações nas suas circunstâncias. Sejam elas quais forem. Palavras que nunca modificam as coisas, mas aquilo que fazemos com elas, os verbos da vida. Normalmente reajo com docilidade a esse tipo de conselho. Reajo atendendo. Até porque percebo, neste, um tom de advertência, mais nos olhos de quem diz do que nas palavras em si.

Mas de repente, quase como se num movimento que não domino, ao contrário do que busco, fervilha ao meu redor a inevitabilidade do que é invariável como o advérbio. E me apavora, porque é fixo. Imutável. Poluem-me todos os quase, todos os aos poucos, todos os além, todos os em volta, embaixo, ao redor, aquém, atrás, dentro, em algum nenhum lugar. Todos os quem sabe. E em especial todos os -mente, que são tantos e não transformam nem variam o íntimo do ser das coisas. Apenas o que fazemos com elas.

A meio da madrugada, uma junção de letras que se compõem a céu aberto para me oferecer, de bandeja e em excesso, uma palavra que desconheço: vicariamente. Martela-me por horas, tento mantê-la afastada para dedicar-lhe tempo mais tarde, quando o tempo haja, quando o sufoco ceda, quando possa encontrar-lhe solução, dicionário quem sabe.

Vicariamente diz daquela capacidade que se tem de obter prazer a partir da experiência de prazer do outro. Ou sublimação. Ou conhecimento. Algo que faz as vezes de outro, um lugar em que nos colocamos usufruindo em plenitude aquilo que o outro perfaz. Sorrio, inevitavelmente. A sina de sempre aproxima-se da minha pele, aquilo que pertence ao outro e me com-penetra, aquele estado de alteridade que frequentemente me pergunto não será o que acelera a construção da humanidade em nós, mais do que a autoridade do conhecimento que se obtém (ou se julga obter) por si mesmo. Quando fazemos as vezes de nós mesmos.

Como se à entrada de uma caverna inexplorada, preciso de fato deixar os advérbios tão abstratos guardados, ajustar o foco nos substantivos da vida, porque os verbos que me cercam não dizem, mais ludibriam e sufocam. E deixar os advérbios, ali, de lado e em silêncio - como fazem aqueles se entregam e assumem o lugar alheio como seu próprio. E se satisfazem e são felizes desse modo, vicariamente.


Imagem: advertência à entrada de uma caverna na Austrália. Como se um portal.