20/01/2012

Despedidas - I


porque
“as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão”*


(I - porque a vida demanda tempo e palavra para qualquer verdadeira despedida)

Foi agora mesmo, fim de madrugada. Levantou-se um vento diante da minha janela, um vento que pareceu nascer nas profundezas do chão e içar-se pelos troncos das árvores, agitar-se nas folhas e estender-se por sobre o teto da minha casa. Como uma mão que acenasse um adeus ainda prematuro, um presságio em forma de anúncio, um sinal de advertência; uma mão que duvidasse entre a separação e o distanciamento e o manter-se linha de pesca que suporte os quilos da distância, a pressão da saudade, o cimento preciso para alicerçar a continuação do caminho.

As madrugadas costumam colher-me grávida de palavras que descem sorrateiras pelo meio dos meus sonhos. Nos últimos anos, tenho me levantado a meio delas, para aprender que correr à escrita é o alívio de alma que me inicia. Perco horas de sono para ganhar horas de vida. Uma vida que reconheço, com a ajuda dos leitores do que resulta de tudo isso, na palavra que escoa de dentro de mim e se transformou, num pouco a pouco perseverante, na maior razão e tarefa de ser o tempo que sou.

O vento desta madrugada acorda-me feito um sacramento. Faz-me levantar, escrever e fechar os olhos. Ouvir no silêncio entrecortado pelos primeiros galos e pelas últimas cigarras um mundo que se liquefaz perante meus olhos, enquanto dinâmico e vivo se solidifica para outros. E eu preciso acreditar que é assim, a vida, as idas e as vindas como sempre dizemos, especialmente quando precisamos mudar em direções para as quais temos mais certezas que dúvidas. Não sei qual dos pratos da minha balança pesa ou se torna mais leve. Assim que acho que é o da direita, percebo que é o da esquerda, e em pouco tempo me dou conta de que a minha balança tem muitos, muitos pratos, e por todos eles dou graças e sorrio, ainda que me doam, e porque seu peso e leveza permanecerá por muito tempo em mim, ainda e porque tantas coisas.

Vários anos atrás, poucas horas depois do nascimento de um dos filhos que respirou pela primeira vez dentro das paredes desta casa, um coral de vozes surgiu do meio do escuro para cantar o recém chegado, como uma brisa que chegasse de mansinho e se instalasse à entrada da vida. Abri a porta devagarinho, sequer pude articular palavra. Agora que o dia começa a raiar lá fora, fecho a porta uma última vez; devagar, como naquela outra noite; ainda ouço em meus ouvidos a música de louvor aos que chegam de novo, a cada dia. Que este seja um bom dia.


* "Memória", Carlos Drummond de Andrade

19/01/2012

Atos


Vez por outra gosto de reler um texto de Paulo Freire, um texto curto, fruto de uma palestra dada em 1981 e incluída anos depois pela Cortez num pequeno livro: “A importância do ato de ler”. Dos três artigos que compõem o volume, é o primeiro que gosto de ler e ler outra vez.

Volto a ele pelo significado profundo que teve em diversos momentos da minha vida, da minha própria leitura do mundo que me cerca, de mim mesma dentro desse mundo, desse mundo que se avoluma e de repente me toma inteira por dentro. Paulo volta, nesse texto, à leitura dos primeiros signos da sua vida, a casa em que nasceu no Recife, as avencas de sua mãe, as grandes árvores no quintal que o viram pôr-se de pé, andar e aprender a ler – assim, nessa sequência singela e simples. Uma infância permeada pelos signos que ele, como ninguém, soube entender conectados a todos os outros que constroem a nossa vida, representações da realidade onde inclui com especial reverência as linguísticos – a “palavramundo”. Textos encarnados no “canto dos pássaros, na dança das copas das árvores anunciando tempestade, na cor das folhagens, na forma das folhas, no cheiro das flores”. E numa transição terna, numa saudade que apelida de “mansa”, Paulo absorve e multiplica, junto a esses signos, o da leitura dos livros que inspiraram, ampliaram e modificaram a sua representação do que é o mundo.

Guiada pelas suas mãos, passeio mais uma vez pelos signos da leitura do meu próprio lugar e tempo; os que me rodeiam agora e os que já me deixaram, deixando-me impressa com a sua forma passada, sem saber então o que viria a ser de mim sob a sua marca. Anos atrás, num dos momentos de releitura desse texto, decidi lê-lo com um grupo de alunos – jovens que pensaram não entender o que dizia, que relação teria tudo aquilo com eles próprios, sua própria vida, a sua necessidade de leitura construindo-se ainda tão diáfana. Há dias, um deles me escreve, e me diz que de repente se lembrou de tudo aquilo, do que Paulo Freire dizia, e se surpreendeu de não ter percebido então o que no fundo já tinha feito sentido. Só que ele não percebera. Mas guardara.

A verdade é que passamos a vida lendo, às vezes sem consciência disso, e essa leitura acomoda-se dentro de nós à espera que demos por ela. Com sorte, mais tarde ou mais cedo é isso que nos acontece. A alguns a tarefa de ler como comumente se entende a leitura é custosa, doída: livros, textos compridos, que demandam concentração que às vezes falha, numa obrigação que nenhuma leitura comporta, porque ler é condição libertária, ave bala cabralina exigindo o oxigênio da sua sobrevivência. Em todos os outros momentos, seguimos vida afora lendo, sem saber que lemos – lemos as indicações da vida no que é óbvio e no que nem tanto, lemos os signos e as contas, os búzios, as estrelas, as cartas, os olhares, o toque do outro fundo em nossa carne. Lemos de cabeça inclinada e coração em sangue, a pele exposta vulnerável, as carícias e as palavras da vida numa aragem que não se esgota nem mesmo quando já passou. Gosto de pensar que, no dia de hoje, conseguirei ocupar-me por inteiro com a leitura do que me rodeia; uma leitura leve, correta, consciente, consequente, daquele tipo que me liberta, disponibiliza e autentica, num passeio que me leve aos mesmos bons caminhos que Paulo Freire consagrou sob seus pés.

13/01/2012

Perturbação


A pergunta veio insuspeita, assim como quem não quer saber nada mas pergunta; recebeu um silêncio espesso como resposta, um ”aguarda” que logo se resolveu numa só palavra, saída repentina da minha boca, como se minhas gengivas decidissem sentir enquanto o coração espera. Uma resposta em forma de parto, um expulsar tântrico de palavra resumo. Perguntam-me o que me faz escrever hoje, e eu só consigo ver diante de mim essa palavra: perturbação.

Uma perturbação provocada pelo exercício das palavras, do diálogo entre elas, de uma espécie de movimento longínquo que não se afasta nem no espaço nem no tempo: passadas horas, está aqui sem que se veja, sentada ao meu lado, palpitante nos veios da memória recente.  É o estado de perturbação que me provoca a escrita, respondo.

Decido investigar, para entender-me melhor e aprender a dar respostas que se comportem. Ir ao dicionário, aqui, pouco ajuda: perturbação é coisa ruim, parece, à primeira vista. Coisa de tumulto, distúrbio, mal estar passageiro, desordem, confusão. A minha perturbação não se alinha nesse verbete. E lá na última linha, quando acho que nada faz sentido, um sinônimo acomoda-se ao que sinto - ali escondido quase no fim da página, como se talvez pensasse pertencer a outro lugar. Perturbação sinônimo de comoção, emoção profunda que acorda, provoca, move e faz mover. Perturbação sinônima de motim, revolta do tempo, de um ser que se altera sem que o faça a sua estrutura. Um tempo de costas viradas aos relógios concretos, endurecidos, ponteiros amarrados ao aço frio dos mecanismos exatos.

Esta minha perturbação é filha do inesperado, um espanto que dispensa explicações. As palavras que faz nascer escapam por entre os espaços dos meus dedos - seja verso, seja prosa, um tropel incontido que eu só observo deste meu posto de escrevente. Não, não as psicografo. Sinto-as nascer e tomarem forma, buscarem seu espaço preciso no papel. Não sei se nascem dentro, ou se sou eu que nasço dentro delas. É mais provável que seja a segunda opção. Permito-lhes a ida e a vinda, o retorno, a variação, a dúvida, o olho fechado, a espera, a mão que se apoia para aconselhar ao coração que vibre mais baixo. Sou toda sua, numa entrega que se diz destino, que se esgueira e me desarma as indecisões, as manias, os pensamentos fossilizados, as inconvenientes esquinas em que estacionamos a alma de vez em quando. Vou-me ao papel e à tinta e retorno fortalecida, alma e coração e corpo em calma, em alívio, à espera da próxima perturbação feita palavra. Enquanto isso, volto ao domínio da ficção, palavra que chega com mais vagar e trabalho, de onde saio ultimamente só e apenas para pensar na gênese que a torna fartura à minha porta. Ou para responder aos bons amigos, que inspiram e perturbam os meus caminhos.

11/01/2012

Fado


Há coisas que exercem um fascínio peculiar. Parecem pertencer a outro momento de nós próprios, um outro lugar de outro tempo em que éramos outras pessoas. O fado é isso, na minha vida. Reconheço a minha infância inteira nas letras que ouço, nas melodias que entram por mim adentro, sem respeitar as portas que fui instalando ao longo da vida. As novas paredes com que decorei o meu interior sucumbem ao arremesso do dedilhado da guitarra e, quando dou por mim, já estou a cantar baixinho. Nem sei se quero, mas os olhos fecham-se sem que eu os comande, e em dois segundos tenho diante de mim as águas do Tejo, o poente, as curvas da estrada de Cascais, a noite estendida pelas vielas estreitas dos bairros populares de Lisboa. Porções generosas de melancolia acompanhadas de sardinhas e vinho da casa numa tasca qualquer da Estrela. O ponto mais ocidental da Europa a bater nas janelas da casa que alicercei em terras brasileiras.

Nos últimos anos reaproximei-me do fado graças aos amigos que me puxaram de volta a ele. Com eles, creio que sem que o saibam, repaginei a figura do meu pai, a penumbra avermelhada das casas de fados que o fascinavam (e a mim como consequência), as noites que pareciam não ter fim, os olhos marejados a meio delas, os discos a ocuparem o espaço da casa em que não havia livros.  Com ele, o fado, despedi-me finalmente dessa figura paterna que, como tantas em tantos, desperta emoções e lembranças tão contraditórias. Ficaram-me, assim espero, os bons momentos; aboli os demais como se abolem os vincos da roupa quando a passamos a ferro. O calor, a atenção e o cuidado para que nada se perca, nada se queime e a vida se apresente inteira como se fosse nova. Dobro-os com cuidado, engomados e brancos como as camisas alentejanas que se mandam bordar a vermelho, dentro de uma gaveta que possa levar comigo e abrir quando e se for preciso. Mas nem quero que seja, para não precisar repetir gestos antigos no futuro que está tão próximo.

Devo, a esses amigos, a conciliação com a melancolia que me corre por dentro mas não chego a reconhecer como minha, porque me cansa, porque faz tempo, porque pertence a alguém que se encontrou no meio do caminho e decidiu-se por outras paisagens; concilio-me porque a deposito toda dentro do fado, dentro dessa forma de destino que assume voz e música como protagonistas e me livra, a mim, de transportá-la para a vida de todos os dias. Como se abrisse um interregno na vida de quem reconheço ao espelho, e pudesse voltar atrás, como quem pisa nas próprias pegadas sem olhar para trás.

(Imagem: "Fado", de José Malhoa)

02/01/2012

Livros dentro dos livros


Escrever uma história faz desaguar uma imensidão de outras histórias. Estou tentando chegar a qualquer estágio que possa chamar de “finalizado” de uma história longa, mas a cada dia infiltram-se dentro de mim novas histórias, ligadas àquela, e com elas a necessidade de saber algo que não sei – portanto, lá vou pesquisar, e assim o final cada vez se desaproxima mais de mim. Ainda não sei se é uma vantagem ou um inconveniente.

Procurar informações é coisa que gosto realmente de fazer. Em tempos de internet é uma alegria só, tudo a quase só um clique – dois ou três, na verdade, porque é preciso checar e rechecar as informações conseguidas. Mas é uma diversão só do mesmo jeito, até porque eu me pego rindo o tempo inteiro, feliz de ver o tamanho do quanto o ser humano é capaz de interessar-se por coisas tão variadas, e compartilhar o que sabe com os demais.

Dentro da história que me tem em mãos (porque já passei do ponto em que eu (achava que) a tinha nas minhas próprias), aparece-me de repente um livro antigo, com data de impressão de 1888, um espécime daqueles que precisavam ser abertos pelos seus primeiros donos, com aquelas faquinhas que os avôs burgueses ofereciam de presente de aniversário a seus netos nos natais de meados do século XIX – o status da leitura alcançava cada vez mais pessoas à época, e as tais faquinhas (cabo de osso, cabo de madeira, cabo de pedraria trabalhada) foram um hit das compras naqueles tempos.

Os cortes dessas faquinhas deixavam uma peculiar textura no corte das folhas, irregular e manual, e é justamente para essa sensação concreta que eu preciso achar uma palavra, que a um só tempo descreva a textura, o sentimento, a tepidez desse tempo gasto em abrir folha a folha a história de uma história, e deixar essa marca inconfundível no corte de frente do livro.

Por isso a pesquisa: que terão dito outros sobre essa impressão, essa percepção tátil tão sutil e ao mesmo tempo tão potente? Eu mesma abri vários livros dessa forma, de Júlio Dinis a Vitorino Nemésio, mesmo tendo o século XIX beeeeem às minhas costas – mas não consigo evocar em uma palavra o sentimento nostálgico que me provoca lembrar o desejo de não antecipar o que vinha depois, abrindo mão de abrir tudo ao mesmo tempo.

Nessa pesquisa, descubro um alfarrabista dedicado aos livros raros: entre outras coisas, tem à venda um João Cabral, “O engenheiro”, autografado e dedicado (carinhosamente dedicado, diga-se de passagem) por R$2.900,; um Guimarães, um Mário de Andrade, todos eles autografados e a esses preços que só podem me fazer mesmo sorrir... Algumas dedicatórias mais entusiasmadas (mais caras); outras mais protocolares (entre as caras, as mais baratas). Descubro também uma pequena gráfica do norte do Rio de Janeiro que publica tiragens pequenas com o detalhe do “primor da perfeição”, pago conforme: uma luxúria de possibilidades de acabamento, de papeis, de dobraduras, de cortes, de aberturas, de fechos, de facas especiais que recortam silhuetas também especiais em qualquer tipo de papel.

O livro do meu livro aguarda pacientemente na janela aberta do editor de textos, piscando aqui embaixo, doido pra chamar a minha atenção para o que deve ser o centro inequívoco do meu interesse e trabalho – um piscar tranquilo, certo de que em algum momento desse prolixo divagar pelas informações do mundo virtual eu me lembrarei de que ele precisa de uma palavra para se tornar visível. Para ser real. Para permitir que eu feche os olhos e veja o onde, o como e o com quem. Para que eu possa tornar-me papel e deixar de ser sangue incandescente nas artérias.

(Termino sem a palavra... se houver quem queira colaborar, será uma alegria!)
(A foto é de um projeto do blog 3 R's :

22/12/2011

Meus amigos


Ao Fábio Cortés

Um dos alegados defeitos do meu pai era dar mais atenção a seus amigos do que a sua família – nada que a mim particularmente me ocupasse, gostava do trânsito frequente de pessoas que (ainda) não conhecia. E ele me dizia, várias vezes e sem querer desculpar-se, que os amigos eram seus mais preciosos tesouros, aqueles que podia escolher e deixar de escolher.  Meu pai era um bom amigo, capaz de tirar seu casaco e congelar, contanto que seu amigo se aquecesse. Algumas das suas dívidas derivam dessa qualidade chamada defeito.

Na formatura do nosso querido Fábio, ouvi dele que ficava feliz por perceber que éramos amigos. Que transcendêramos a relação professora-aluno, tutora-aluno, para nos equilibrarmos nesse terreno ensolarado e cheio de curvas que é a amizade. Meus olhos devem ter brilhado nesse momento, tanto o quanto agora se enchem de lágrimas, e ele certamente percebeu, porque me abraçou como costumava, fazendo soar meus ossos numa demonstração de afeto linda, livre e aberta, tal qual ele próprio. Agora que ele não mais ocupa o lugar físico que ocupou ao nosso lado, rodeia-nos um imenso lago de memória brilhante onde não podemos mergulhar porque nessas águas ainda não sabemos nadar. Fica uma imensa saudade que não preencheremos a não ser com os olhos fechados, cheios da imagem desse garoto-homem cheio de simpatia, um instante preso entre dois retalhos de lembranças que nos chegam de repente e nos fazem parar o que fazemos para retomar o fôlego e não nos afogarmos em lágrimas.

O Fábio tinha uma caligrafia marcante, inconfundível entre todas as outras. Preferia o lápis preto, grosso, a outros materiais e desenhava as suas letras com força e determinação, muitos riscos para cada traço, numa inclinação avessa a catalogações. Olhava para seu caderno e desgostava. E aquela letra rasgada, vitrine de inconformismo, chamava a minha atenção e agradava-me.

Nem todos os lados do Fábio viviam do lado de fora. A imensa vontade de acertar e conseguir ser aquilo que queriam que ele fosse não estava à vista de todos, talvez pela sua inquieta irreverência, tão veloz e rápida quanto o ouço agora recitar, com o seu acento carioca, o poema que escolheu gravar há 5 anos.

Bia, sua mãe, soube apaziguar e contemplar a vontade de Fábio com a qualidade da espera, quantas vezes com o coração em sobressalto. Dizia-lhe eu esta manhã que foi uma sorte o Fábio ter podido fazer todos os piercings que fez – apesar das críticas e dos narizes torcidos alheios, ele galgou os degraus do ensino médio da Aitiara com suas duas argolas pretas nos lábios com o mesmo sorriso com que gentilmente me pediu, meses depois, que as guardasse antes de cada jogo de handebol no torneio interwaldorf em São Paulo. Três anos depois, descobriu com seu trabalho de conclusão de curso que o alargador de orelha era antigamente usado, entre alguns povos, para aumentar o contato com o mundo dos espíritos. Eu disse-lhe que talvez tivesse sido esse o motivo da sua vontade, ainda que sem saber, e ele sorriu e não disse nada.

Já houve quem me dissesse que a relação que se constrói com alunos deve ser distante, permeada por alguma forma de autoridade que, feliz ou infelizmente, não brota nas terras em que meu coração foi semeado. Que alunos e amigos são coisas diferentes. Ontem pela manhã, ao sair do culto em intenção do Fábio, pensei na felicidade que tenho nos amigos que me rodeiam, ainda que partam sem aviso.Que  me escolheram e a quem eu escolhi. Às vezes é uma felicidade doída, porque nos deixam saudosos sem entender os porquês das partidas. Mas a felicidade é dessas coisas que percebemos quando já se foram, ou quando antecipamos a sua vinda. A chegada do Fábio à minha vida, com todos os amigos que chegaram com ele sob o codinome “alunos”, abrilhanta o caminho da minha vida e ilumina o roteiro da minha existência. Escolhem-me tanto quanto eu os escolho, e estaremos juntos sempre, por onde quer que cada um decida misteriosamente passear os seus caminhos.

08/12/2011

Ensaio


Hoje assombra-me um coração conciso. Fino como tapete. Sintético como verbete de dicionário. Espremo-o, e o suco é pouco. Não o provo, porque desconfio que possa amargar-me o tempo. Salvam-me um lápis denso, o papel, as palavras que me rondam. Esvoaçam em volta de mim como noturnos insetos perdidos. (Nessa ordem é o seu esvoaçar: na noite, a asa, o desestino.)

Acendo-me e eles agitam-se mais; posso ver-lhes, através do opaco que se instala no ar ao redor, as asas - e a letra com que iniciam seu nome. Só assim meu coração sossega. Olha-se no espelho e diz-se: calma. Encolhe-se para caber no tamanho da minha vida e diz-se: calma. Respira e avança despreocupado da vidraça estilhaçada que lhe serve de chão e diz-se: calma. Olha-me com seu olho fixo, rebrilham fé e paciência caninas, e diz-se: calma.

Pode ser que seja o Mercúrio retrógrado. O inferno astral. A lua chegando ao seu desconfortável pleno. O dia de sol enevoado. A vida cheia de coisas que não cabem nos poucos minutos com que se faz uma hora. O desencaixe da alma. A saudade. A falta dela. Os fechamentos de um fim de ano.

Mas é só um coração conciso, apertado entre o sentido e o prendido, o vazio e o transbordante, a firmeza e a vontade gritante de se esvair como faz o sangue cáustico a inundá-lo, indiferente à vida que nada entende.

05/12/2011

Da felicidade


El hombre es una realidad utópica, que es y no es, que es lo que todavía no es y tal vez no pueda ser. Consiste en ser una realidad proyectiva, futuriza, deseante, nunca lograda, nunca conclusa, en suma, utópica. Nuestra vida consiste en el esfuerzo por lograr parcelas, islas de felicidad, anticipaciones de la felicidad plena. Y ese intento de buscar la felicidad se nutre de ilusión, la cual, es ya una forma de felicidad. (J.Marías)

Acontece-me às vezes. Ouço um recorte de conversa, um pedaço de fala, um fio dito por alguém e de repente as palavras tomam-me de assalto; destacam-se das demais, e ficam assim, flutuando à minha frente, e eu à mercê delas. Acompanham-me se saio ou entro, entranham-me a memória e tudo o que for espaço ocioso ao longo dos dias. Se deixo de pensar em outras coisas, penso nelas. Acorrem-me várias vezes por detrás do que faço, horas depois ainda estão ali, fazendo-me olhar para a vida como se acabasse de entrar nela. São, durante um tempo, o meu reduto de felicidade.


Às vezes, juntam-se a outras e transformam-se em textos mais longos. Outras, vivem sozinhas durante anos, e tenho aprendido a não as gastar com a frequência que pode gastar alguns amores, mesmo sabendo que é de ausências que morre a maioria. Troco de lentes para podê-las perceber com olhos alheios. Como dizem os espanhóis, “Nada es verdad ni mentira, todo depende del cristal com que se mira”.

Mais às vezes ainda, acontece-me de, num mesmo dia, num mesmo encontro, num mesmo espaço de poucas horas, ser agraciada com várias palavras. Assim foi, neste sábado, nos 81 anos da minha amiga Marina.

Marina ensinou-me, ao longo dos últimos 30 anos, uma porção de coisas. A como dobrar as fraldas para conseguir o máximo de absorção possível (e o mínimo de trocas que vem junto!); a curar panelas de pedra; a preparar frutas em calda; a olhar para os demais com a vista clara; a apreciar as rugas e os cabelos brancos como vincos de memória; a ser-se quem se é, desagrade ou não a quem estiver ao lado; a rir da vida quando ela segue por onde nem suspeitávamos; a curar as feridas sem as lamber; a gostar de pechinchas; a ver a vida com os olhos sadios de quem gosta dela por inteiro. Marina fez 81 anos e fez uma festa: todas as comidas, todos os filhos e todos os amigos, que se querem de todas as idades e de todas as latitudes, na variedade que Marina aprecia. Poesia, música, filosofia, ao longo de uma noite que se fez enorme como é o coração de Marina. Às 4 da manhã, ainda estava animada. Por ela, nem teríamos terminado.

No meio de tudo isso, três palavras que, ainda não sei por que, caminham dentro de mim como caminha, dispersa pelos meus poros, a circulação acelerada do sangue do meu corpo.

“Moro sem forro”, dizia-me Taibo.

E eu não consegui ouvir o resto. Ou ouvi, mas não me lembro, porque “moro sem forro” avançou para dentro de mim como uma onda imensa de águas cheias de estrelas, reluzindo como uma pérola recém vislumbrada. E tomou-me o resto da noite. Parece-me que, para escapar do “moro sem forro”, tentei prender-me a outras coisas das tantas que esse senhor de também 81 anos de idade ofereceu nessa noite: o ditado espanhol no forte sotaque galego dos que nascem em Vigo, uma frase bonita sobre as antecipações da felicidade plena que são os nossos momentos felizes. (Como o que me deixa, no dia seguinte, o coração em relevo agreste e quente, só por uma troca de olhar inesperada e súbita, que sequer pode ser, mas é.)

Mas eu já estava afogada de felicidade nesse “moro sem forro”, que sobe e desce em mim desde então. De outra forma que não a concreta, da casa de telha vã de Taibo na serra da Mantiqueira, sem ter diante de mim as montanhas que seus olhos saúdam ao acordar, também eu moro sem forro. Resisto às lajes e aos lambris que me separem das telhas. Quero ver os caibros e as ripas que sustentam o que impede que chova em mim, e não quero a superfície lisa e reta, nem a inclinação suave do cedrinho que pareça proteger-me do que vem do alto. O vento que atravessa silvando as frestas das minhas telhas mantém-me acordada e, como Taibo, gosto de acordar de manhã com a brisa que atravessa o telhado e vem curiosa bater em meu rosto. 





28/11/2011

Jornal de domingo no primeiro dia de Advento


Neste primeiro domingo de Advento, abro a Folha sem grandes esperanças. Embora seja jornal de domingo e há anos eu goste dos jornais de domingo, onde seja, na língua que seja. Mesmo que metade da sua massa seja de anúncios classificados, as análises literárias tendem a aparecer nesse dia, assim como as resenhas que muitas vezes orientam onde gasto meu dinheiro, os cronistas e articulistas que se publicam aos domingos e só aos domingos... Entre outras coisas.

Vou direto, normalmente, aos cadernos que prefiro; além da Ilustrada e da Ilustríssima, o Cotidiano.  Provavelmente porque seja aí que encontre, via de regra, o dia a dia das pessoas que se querem comuns, aqueles dramas pequenos cortando vidas simples em pedaços complexos. Abro o caderno de trás pra frente, que é como gosto de ler jornal: passo os olhos pelo percurso inverso de quem o montou, divirto-me lendo primeiro o que o editor quis que se lesse por último. Longe de exercer meu direito a ser do contra, mais perto da vontade de querer nortear-me eu mesma nas minhas escolhas.

Enfim, vou lendo. Descubro, na página 7, que esta é a última semana da coluna impressa do Gilberto Dimenstein. Ouço aqui ao lado, assim que comento o quanto gostei, que é controverso, olha lá... Mas o sujeito escreve realmente bem, num tom de despedida sincera e emocionada num texto da estatura dos seus melhores. Serendipity é o mote da sua gratidão pela Folha e pelo espaço que pôde ocupar dentro dela, o mote para a breve revisitação da própria vida: os prêmios coloca-os a um lado; a outro, o “encanto de transformar o acaso em aprendizado”, e isso é serendipity, a sua “palavra mais bonita”. Demoro a retomar a leitura e a descobrir por onde anda esse sujeito que ajudou a adolescente Esmeralda a colocar em forma de livro a sua vida dentro do crack, leitura que compartilhei com muitos alunos que ainda hoje se lembram dos seus relatos cáusticos e ásperos. Demoro a chegar ao final. E o final é na verdade o princípio, aquilo que gostaria de dizer a quem está, como Gilberto, de partida: “para viver experiências, sempre estamos nos despedindo de alguma coisa de que gostamos”.

E para garantir que eu não me esqueça de levar a mensagem adiante, antes mesmo de agarrar em um dos cadernos que povoam a minha mochila, retrocedo duas ou três páginas e quem me sorri do outro lado na negra tinta de gráfica é o poeta Sergio Vaz, em mais uma surpresa que vem me nutrir este início de Advento que apenas inicia. É com apreço, com encanto, com admiração que gosto desse homem. O seu sorriso largo, que não está na foto mas na minha memória, vai atravessar-me, tenho certeza, o dia inteiro.Um sorriso de Morte e Vida daqui a pouco, um Severino feito tarde de chuva que não veio, uma voz a levantar-se na planura da vida pra gritar tão alto, de cima da laje da sua/nossa/de todos Cooperifa, que quase consigo ouvi-lo daqui, tão longe da agreste periferia paulistana:

No caminho do crer e não crer
Vivo na dúvida do milagre
Entre as brumas da uva e do vinho
Sou eu quem destila o vinagre.

Caminho no chão em busca do céu
Num fogo e água que não tem fim

Porque
Não me esforço para acreditar em Deus
Esforço-me para que Deus acredite em mim.