19/06/2011

Na África


Uma invasão de todos os sentidos, e até dos lugares por onde se pisa. Uma terra imensa aberta, e só se quer andá-la toda, penetrá-la até às raízes mais profundas e distantes, aquelas que terminem por revelar o encanto deste ar, deste céu e destes olhares que contemplam. Abrem-se fretas e gretas por todos os lados da alma – para escapar, é preciso ir ao encontro. 

Os próximos posts pretendem fazer isso.

04/06/2011

Hereros - uma exposição


Para entrar nos domínios do povo Herero, é preciso cultivar olhos novos. Olhos de entrar em contato com um mundo que nos desloca da tranquila região de conforto e nos leva por caminhos que nem sabemos quais são nem onde desembocarão. São rios internos que se projetam em rodamoinhos, e é preciso, e é urgente, que exercitemos a arte da entrega. Se não o podemos fazer com o outro em carne e em osso, o outro que se abre em primaveras para nos acolher as mãos estendidas, que ao menos o possamos fazer quando a realidade se apresenta estática, polaroid de perfis controláveis.

As fotografias do pernambucano Sérgio Guerra, expostas no Museu AfroBrasil até julho, são o nosso caminho até os Hereros. Podemos ir ao seu encontro de olhos semi-abertos, espaços internos disponíveis ao impacto de cada imagem e aos pequenos textos que acompanham cada sequência delas, pequenas luzes de um povo que de incompreensível começa a tornar-se familiar com o andar da visita. Podemos ir ao seu encontro com a alma de pé, atentos à vibração de cada olhar entregue à câmara, sem saber que aqui estaríamos, nós, a tantas milhas náuticas de distância dele, absortos nas suas pupilas atentas. Podemos deter-nos em alguns pontos e deixar-nos penetrar pela força crua da nudez das mulheres, homens e crianças dos Hereros. E podemos tudo isso ao mesmo tempo, permitindo que o tempo e a penumbra que reveste o espaço nos abram os portões do entendimento e nos façam esquecer de nós mesmos e das nossas tão pequenas e comezinhas vidas.

Os Hereros dividem-se em vários subgrupos, numa soma total de pouco mais de 240.000 pessoas espalhadas pelo sul de Angola, pela Namíbia e pelo Botsuana. A exposição contempla os povos nas províncias angolanas de Cunene, Namibe e Huíla. Pastores semi-nômades, atravessam os campos sem reparar nas fronteiras do século XIX africano, os bois sempre a seu lado, sua riqueza permeada de intensa e antiga simbologia. Senhores desses pastos desde o século XII, resistentes à escravidão e vítimas de genocídios que viram morrer mais de 80% do seu povo, olham-nos de fora do nosso tempo e forçam-nos a um deslocamento. Representam uma experiência limítrofe do encontro com o inusitado e diferente, com a desacomodação das nossas certezas estabelecidas. É preciso a alma recém acordada, naquele estágio em que ainda não nos lembramos de que o maniqueísmo existe, e com ele o certo e o errado, um estado de virgindade que acolhe e recebe o outro tal qual ele é e é feliz por isso. Só assim a poligamia que é deles pode ser a nossa, os costumes que remontam a 3000 anos podem ser os nossos, os olhares, a cor de terra, os cabelos enfartados de argila podem ser os mesmos que seriam se fossem os nossos. Sentirmo-nos próximos e em igualdade demanda a alma em estado de lua.

Seus costumes não incluem o banho de água, mas de terra esfregada, que os deixa da cor da argila molhada, torneados pelas mãos sábias do elemento dos seus próprios caminhos. Mantêm a sua língua, as suas cubatas primárias que não precisam resistir ao tempo, porque o tempo não lhes resiste. São belos, fortes e imponentes, saídos das lentes de um Verger moderno descobrindo a África. Esquecidos pelo colonizador, fortaleceram-se no seu isolamento. Deslocam-se com rapidez. Atrevem-se a ser o que querem ser, e as suas convenções sociais olham de frente para os elementos e dialogam com eles. Não sei o que se perguntarão nesse diálogo, mas ouço as perguntas que brotam em mim ao olhá-los: como deixar-se abordar pelo outro, permitindo-lhe a marca na nossa carne, sem que nos diluamos nele tão intimamente que já não nos reconheçamos nos nossos espelhos?; que capacidades construir internamente que nos permitam esse olhar, esse toque, esse som que transmuta e transforma, sem que nos percamos e nos tornemos algo que não somos porque nem podemos nem queremos?; como conviver com barreiras que nos permitam a vida sem isolamentos?

Visitar a exposição “Hereros” permite abrir um espaço de interlocução dentro de nós próprios - um espaço de observação do encontro interno com uma realidade que se afasta tanto daquela para a qual achamos estar prontos, que coloca em xeque tanto do que dissemos que seriam nossas regras, nossos acordos, nossa maneira de viver e entender a relação com o outro - que, se tudo não for exatamente como decidimos que a partir de então seria, poderia vir a ser da maneira como os Hereros decidiram que é bom que seja.


* Ruy Duarte de Carvalho, antropólogo e poeta angolano, falecido em 2010, diz assim, dos pastores do sul de Angola:

Das águas que o rino escolhe
da pedra a que o vento encosta
do unto a que o tempo obriga
dos sais que a estação abriga
do pasto a que o gado aspira
da lua em que o vento vira

                      Não há pastor que não saiba.

Não há pastor que não saia de alguma curva da infância.

01/06/2011

A parte sem o todo

O que me fez pensar no livro foi o título: ”Por uma vida melhor”. Um título assim só diz algo a alguém que precise melhorar de vida. Crianças não costumam ter a sensação de “precisar melhorar de vida”, portanto depreendi que o destinatário fosse um adulto.

Foi sob essa perspectiva que li o primeiro capítulo, introdutório, de ponta a ponta, do tal livro aprovado pelo MEC, o gerador da acirrada celeuma de umas semanas atrás. Reconheci o que a realidade em volta mostra a quem olha para ela, assim como boa parte do que aprendi sobre os processos linguísticos ao longo dos anos. Coisas óbvias: que falar e escrever são atos diferentes; que a maneira como se fala ou escreve depende do destinatário; que toda linguagem é regida por regras, as quais formam as diversas gramáticas internas de uma mesma língua; que toda língua tem variantes, que variam de acordo com seus falantes; que a maneira de falar pode ser um poderoso instrumento de preconceito, inclusão ou exclusão social; que é preciso valorizar todas as formas de fala, entendendo-as como variantes e não como erros; e por aí vai. (Sírio Possenti, na matéria que escreveu a respeito da celeuma, diz que adjetivar de “errada” a fala de um grupo de pessoas seria como adjetivar de “errado” o bico de um tucano, baseado na proporcionalidade entre bico e corpo que rege a maioria dos pássaros.) No fundo, no fundo, só fala errado quem não consegue comunicar o que deseja comunicar, seja por que motivos for.

“Por um mundo melhor” é, de fato, dirigido a um público mais velho, alunos da Educação de Jovens e Adultos, formada por pessoas que já de cara se encontram na linha de exclusão social pela falta de estudo e precisam, muito, imensamente, ver-se diante de um espelho que os reproduza como pessoas capazes e falantes de uma variedade linguística válida, respeitável e correta. Não por bondade, mas porque de fato o é, sendo apenas preciso o respeito ao onde e ao quando, como com qualquer outra variante. Estaríamos todos aliás perdidos se fosse diferente, porque todos estes “portugueses” que falamos e escrevemos não descendem diretamente das palavras de Ovídio ou Virgílio, mas dos soldados no máximo semi-alfabetizados que povoaram a península ibérica com seu “latim vulgar”. Capítulo corretíssimo, o do tal livro, cumprindo ainda a função (bastante conservadora) de instar o leitor a converter todo exemplo da variante “popular” para a escrita normatizada pela gramática padrão da língua – aquela dos pássaros cujo corpo e bico são proporcionais.  

Eu sei bem o que é recortar de um processo comunicativo uma de suas partes - e um livro é um processo comunicativo, assim como uma carta, um artigo, um bilhete, um romance, um poema, ainda que em graus funcionais diversos. Guardo emails de memória porque isso faz bem ao meu coração, ainda que eu inteira saiba que é um trecho, um recorte, uma parte que, a despeito das considerações barrocas de Gregório de Matos sobre o assunto, não corresponde ao todo. Mas isso não me incomoda, muito menos ao resto do mundo que sequer toma conhecimento do que guardo em mim e para mim.

Também sei de perto o que acontece com processos de comunicação interrompidos, truncados ou incompletos, aleijados pelo mesmo defeito da discussão livro-do-MEC: lê-se apenas uma vez, lê-se apenas uma parte, não se entende metade, não se pesquisa (porque não se pergunta), não se estabelece nenhum processo que pretenda entender quem escreve, e parte-se a galope para o julgamento do que se leu – e leu dessa forma alijada de compreensão.  Como diria meu pai: cru e quente. Quando ainda por cima o uso é ideológico (“livro ensina a falar errado como Lula”), eu chamaria as autoridades, nem que fosse por crime linguístico.

O assunto reacendeu-se aqui na minha escrita porque fui chamada a compartilhar o meu processo de criação enquanto escritora num congresso. De zilhões de pessoas bem mais qualificadas do que eu para isso (e não é falsa modéstia, mas a percepção clara da pouca experiência misturada a um certo pudor de descobrir diante dos outros o que até ontem entendia só meu), atrevi-me a aceitar a oferta e pus-me a trabalhar. De uma e outra forma, preciso perceber o que me provoca a sensação de criação, o que me faz de fato criar e o que se antepõe entre mim e o universo da criação. Não é fácil, porque afinal é o meu processo de humanização particular, deparo-me com situações internas que sei precisar resolver... Mas no processo descobri alguns “por ondes” que desconhecia e com os quais consigo relacionar-me saindo da sombra.

Hoje de manhã, o exercício foi partir da função da língua na minha vida. Ressuscitei Antonio Cândido da prateleira dos teóricos, naquele texto sublime em que ele diz que a arte é o que humaniza o ser humano. A linguagem sobrepõe-se em todos os meus mundos - pessoal, profissional, afetivo, social. Mais do que qualquer outra, a escrita é a minha maneira de relação com o outro, meu canal fluídico privilegiado no caminho que me conduz para fora de mim e em direção aos mundos alheios. É-me difícil ler alguma coisa sem olhar de todos os lados, é quase que automático – o que me preocupa, porque os processos automáticos se afastam muito rápido da arte. E é-me difícil o caráter fundamentalmente solitário da escrita. Mas assim que uma nota em forma de palavra me toca, me eleva, estou de volta ao domínio de onde não quero mais sair - o domínio da arte, talvez aquele de onde Drummond saía quando se ausentava do reino das palavras e voltava escrevendo. A palavra é o ser humano em que quero me tornar.

Como a palavra habita todos os instantes da minha vida, e assim faço para que seja, oferece-me bastante trabalho, e a todo instante estou (ou poderia estar) em atividade. Tento, nos últimos tempos, que todos esses momentos sejam intensos no sentido da potência estética que a palavra em mim quer alcançar e, também ultimamente, isso converte-se em dor e em desamparo, uma quase tortura por não saber sempre qual o caminho, e errar por estradas pouco ensolaradas, perder-me no labirinto de uma paisagem sem horizonte até encontrar a saída e perceber-me do outro lado de uma moeda que não tem lados (como se um Alberto Caeiro a correr as cortinas da sua janela, dizendo-se entre parênteses que no entanto ela não tem cortinas). A proteção do mundo dentro de uma redoma de ar.

Talvez o que mais me entusiasme seja perceber a capacidade criadora da palavra em todos, latente, como se a mais democrática de todas as formas. Chegamos ao outro através da linguagem, é nossa enquanto grupo e nossa enquanto indivíduos – e talvez por isso me doa nos ouvidos e nas entranhas dizer que alguém fale “errado”. O que seria dos Patativas do Assaré (e do mundo) se lhes dissessem (e eles acreditassem e se conformassem) que falam e escrevem  errado? Que seu bico avantajado e multicolorido não cabe no universo dos céus, porque desequilibra os corpos alheios, e por isso não podem voar nem chalrar à vontade?

17/05/2011

A propósito da exposição de Paula Rego


Diante dos quadros da portuguesa Paula Rego, diante de seus pesadelos particulares, suas dores feitas cor, seus desesperos e despreparos transformados em imensas telas preenchidas por pastel, não desapareço na sensação imediata de inutilidade da vida prática. Não me culpo nem me angustio pela percepção rápida de que, além da arte, além da tentativa desesperada de dar sentido aos fantasmas visíveis por entre as cortinas fechadas, não há mais nada. A onda a agigantar-se na vida de milhões, arrastando as vidas ao lado das casas, a morte à porta da escola, dentro dela, mais incompreensível e repentina que todas as demais, as pequenas mágoas cotidianas, as minúsculas causas, as mesquinhas preocupações com os prédios que crescem ao redor do próprio umbigo – o que são, todas essas coisas, a não ser o nada vazio que fica quando nos escaparmos deste estado? O que são, além de motivos e pretextos para que caiamos dos monumentos em que nos instalamos?

Ouve-se o grito silencioso preso em cada quadro. A imobilidade cheia de tensão em cada figura agarrada a cada tela. As pernas, os olhares a direito, o meu próprio grito que quer escapar mas não pode. O estado de silêncio imóvel garante: ao virar da esquina, a vida também vira. E todos estamos preparados e de punhal na mão para nos defendermos do passado caso ele queira alimentar-se da nossa saudade. Se nos lembrarmos, o punhal presentifica-se.

Por sorte, muita sorte, imensa sorte, os dias transformam-se em cristais de infinita leveza, com os que se suporta o inesperado, o atrasado, o peso meu, nosso, dos outros. Recriam-se leves, precisos, da exata medida do calor que se faz caminho entre dois. Os mais antigos, os que parecem novos, os que sempre se reinventam e se permitem, os de outros tempos retomados, os dias em que fascinados nos olhamos olhos nos olhos e percebemos o tempo dedicado, a sincronicidade perfeita dos tempos e dos amores todos. Não é preciso encarar as saídas alheias que se inventam para o que dói da vida quanto tudo é diferente, porque de repente ao redor tudo ficou agrupado e foi colhido. É possível desvestir-se das peles previsíveis e permitir novos encontros. Como se o dia fosse uma longa passarela automatizada num aeroporto tranquilo, sem pressa, ninguém em risco de perder seu voo ou extraviar sua mala. Nas paredes, em todas elas e de todos os lados, Paula Rego  ri-se e subverte a ordem que tentei dar ao meu mundo.

Até dia 5 de junho, na Pinacoteca do Estado, Praça da Luz, 2 - São Paulo.

02/05/2011

Cartas ao tempo que foi

Escrevo-te com décadas de atraso, quando já não podes ler as linhas que te dedico. Já não estás entre nós, dirão alguns, mas eu sinto-te tão perto quanto na tarde que acabou de se tornar presente, assim que encontrei agora mesmo a carta que me escreveste e da qual eu sequer me lembrava.

Esqueci-me de tanto ao longo dos anos. Por isso as cartas se tornaram elementos imprescindíveis da reconstrução do passado, e por tê-las guardado e porque foram escritas por ti, sabem dizer as coisas que, com décadas também de atraso, agora posso entender.

A passagem do tempo, que me dizias ser uma fera completamente imbatível, interpõe-se entre nós de maneira cáustica e definitiva, a ausência sempre grossa e dura entre o onde estás que ainda não me pertence e o onde estou que sei teres abandonado sem espaço e tempo para dizer adeus. Ou até logo, para que soe menos inexorável.

Se existias, perguntavas-me tu. E eu tinha tão pouca idade, como saberia dizer-te a ti, que já chegavas à curva do mesmo caminho de Caeiro, se existias? Se eu mesma tão pouca certeza tinha de qualquer coisa existir de fato? Como eu própria. Como aquilo que se materializava no espaço desconstruído entre nossos corpos.

Todos os adjetivos que me davas naqueles anos pesam-me na balança, desequilibrados pelo outro prato que se construiu nestes 30 anos de distância entre aqueles dias e os de hoje, tantas dimensões a se interporem, um coração que parou numa mesa de operação e um outro que não sabia ficar-se à espera.

Depois é sempre tarde. E eu não acreditei. E continuo sem saber como tornar verdade o que é verdade, e saber-me chegar e sair, penetrar e diluir a partir dessa verdade tão nua, tão crua e tão real. Saber que depois é sempre tarde.

Penso nas coisas intemporais tais quais as vias e me dizias: o mar, o calor sob o sol ou o rumor das fontes, e vejo-te inclinado e pesado sob a tua bengala, tropeçando nos móveis da tua biblioteca feita de paredes de livros empilhados, deitados uns sobre os outros, construindo paredes de metáforas pedaços de Marrocos conchas da Cataluña vento das praias de Cascais e sombras e perdas e saudades. Vejo-te à mesa em que te sentavas, a pequena lâmpada iluminando mortiça a tua cabeça toda branca, os cabelos que já não eram tantos em desalinho de poeta que pensa, os óculos que te caíam por baixo dos olhos inquietos, a mão trauteando as palavras que te vinham à mente ao ler o teu Pessoa, que fizeste com que fosse nosso e logo em pouco tempo meu. Vejo-te com tanta clareza, mas não me lembro do que me dizias, quando ao chegar me acenavas e abrias os teus braços e dizias algo. Que era sempre feito das mesmas palavras e eu não lembro quais.

Onde estava eu, que não te prestei a atenção que merecias? Onde estava, ao fugir assustada com a intensidade do que me propunhas, e passei depois anos e anos e anos à procura de uma intensidade assim no mundo? Como se fosses tu a ergueres o teu dedo e a decretares o meu destino, encontro tantas fugas no meu próprio caminho.

Nossos encontros feitos de letras, e de versos, e de silêncios densos e valiosos, com o sol poente de Lisboa tingindo as paredes de um quarto de hotel que se tornou o paraíso só por causa das palavras que usavas e mais nada. Nossos encontros sempre de letras, na biblioteca da editora em que te trancavas e de onde só saías quando sabias que eu chegava, sem me dizeres nada, e eu percebendo tudo isso nos olhos de quem, como tu, estava à espera do horário da saída, e o tempo não passava.

Agora que posso escrever-te, não podes ler-me, nem podes perceber que o tempo, fera enegrecida, transformou-me naquilo de que estavas à espera, tudo nas palmas das tuas mãos e sem teres onde guardar.

Quando leio que dizes que chegamos à borda da absoluta sinceridade, eu fecho os olhos de dor de não lembrar-me dessa espera tão incerta, aqui prensada nesse papel que já amarelou de cansaço e que se torna tão real, tão palpável, por trás destas letras que me deixaste de herança, e que decido tornar a guardar na mesma pasta. Certamente voltarei a elas, e sentirei a tua presença morna tal qual a sinto agora. E nesse dia não vou mais lamentar, mas perceber que o tempo que se esgota é aquele que nos preenche, e que a distância, e os anos, e tudo o que nos separa daquilo que pudemos ter sido e não fomos, é o que nos constrói na aceitação cotidiana do que afinal nos tornamos, e que eu devo às palavras que depositaste em mim, ainda que não me lembre nem saiba me repetir quais foram.


A J.A.L. (1925-1987)

25/04/2011

O 25 de abril de Eric Blaich

Diz-me a minha tia Luisa que é sinal de velhice, isto de andar a contar histórias de quando se era pequeno, mas invariavelmente, assim que o calendário se aproxima do dia 25 de abril, acontece-me. Pior do que tudo, ganho neste dia uma capacidade de perceber ligações entre tudo e todos, e aquelas que não existiam, só porque hoje é 25 de abril, passam a existir. Entre tudo o que vivi, o que li, o que ouvi e o que senti, não tenho como separar fatos de desejos, estes de vontades, e ainda estas daquilo que podia ser mas talvez não tenha sido, sem que isso chegue realmente a importar alguma coisa. Portanto, assim que me deparo com este dia no rol dos de todos os anos, fico assim – nem um dia se passou, e todos os que vivem ao meu redor são catapultados para dentro de um enorme vaso de cravos.

Este ano em particular, decidi resgatar as fotografias das Caldas da Rainha, cidade que me acolheu no dia em que nasci. Nem preciso delas, mas é bom conferir. Fecho os olhos e vejo o prédio da biblioteca no Parque. O lago esverdeado e os cisnes nadando em suas águas tensamente paradas. Os meus dedos escorregando para dentro da água tépida e escura do começo do verão. Os imensos plátanos a abafar nas suas folhas o calor das horas quentes. O meu pai a jogar tênis. As minhas tias a prepararem uma festa na garagem da casa da minha avó, grandes flores de papel colorido e umas almofadas que ficaram no pensamento sem eu saber-lhe o porquê. Eu a tentar dar a volta por cima ao balanço enorme do pequeno parque que parecia tão grande, sem saber que existiria anos depois um Cirque Du Soleil que teria feito suspirar cada uma das minhas terminações nervosas. Algo disto as fotografias captaram, mas para o resto só tenho a minha memória de confiabilidade peculiar.

As Caldas são revolucionárias: a 16 de março do mesmo ano que marcaria a Revolução dos Cravos levantava-se o quartel da minha cidade. A Intentona das Caldas levou o Regimento de Infantaria que lá estava sediado em direção a Lisboa, disposto que estava a derrubar o Estado Novo já tão velho. Sem companhias, foi sustado às portas da capital portuguesa. Mas assim ficou: o primeiro movimento em direção à liberdade. Canhestro, talvez. Apressado e com uma noção péssima de timing – pode ser. Mas é dessa matéria que os sonhos são alimentados. Dos doidos que correm à frente para mostrarem aos outros que o caminho é possível.

Fui acordada na madrugada do dia 25 de abril de 1974, pouco depois das 4 da manhã, por uma mãe de olhos brilhantes e gravidez anunciada. “Somos livres”, dizia-me ela sabendo que eu a entendia. Não só o somos como o podemos dizer, e viver, e dar, e viver mais uma vez e assim seria até o mundo acabar. Podemos ir pelas estradas, já manhã clara, em direção ao mar e na companhia da Alice, que insistia em erguer um punho fora da janela e cantar e gritar às árvores que passavam que sim! somos livres! Indivizível, indiluível, intraduzível, inesquecível.

Com os nove anos de idade que tinha, descobri-me dois dias depois sentada no muro que rodeava a escola primária em que estudava, ocupada a ensinar aos meus colegas, cujas mães não faziam o que a minha fazia, a “Grândola Vila Morena” e o “No pasarán”, repreendida em pouco tempo pela minha professora, apavorada com o que o comunismo faria a todas aquelas apetecíveis criancinhas.

Ao longo dos meses que se seguiram, viagens ao Alentejo, a descoberta de um país na festa de encontrar-se com pernas, braços e sobretudo vozes, procurando aprender a andar e a saber como desfazer-se de anos de tristeza e devastação. Exatamente por isso, encantador, esse país. Um ano depois, na Espanha ainda franquista, meu pai seria (perigosamente) intimado a explicar o slogan que criara para oferecer o destino turístico ao país vizinho: “Portugal, tan nuevo y tan cerca”.

Devo a minha mãe, e a meu pai de outras formas, uma maneira de olhar as pessoas que se movimenta no espaço e no tempo, e lhes acolhe os erros, as fraquezas, os deslizes, as traições. Aceito-as com dificuldade, sim – mas os meus olhos olham a maneira como estão, certos de que aquilo que são muda - esconde-se, foge, amesquinha-se, endurece-se, cria limos e crostas e, de repente, descobre uma função auto-limpante e voilá: shinning as new! Inevitavelmente, olhando de longe, a vida é uma escada que sobe –tinha toda a razão a minha avó quando me dizia isso, mesmo nos momentos mais duros que lhe apresentei na ingenuidade tola da juventude. A vida é uma escada que sobe – e por isso, deduzi sozinha anos depois, mais vale aproveitar cada degrau, porque nada permite que desçamos.

Os que se vão, especialmente os que viveram muito, dizem-me a mesma coisa. Que a vida vale a pena, mas se, e apenas se, a nossa alma não ficar pequena. (Pessoa tinha razão, toda ela, só é preciso lê-lo nas duas direções e considerar também os momentos pequenos das almas, aqueles em que, por dedução, muito pouco vale a pena.)

Tudo vale a pena, se a nossa alma não se amesquinhar diante das possibilidades do mundo. Se a nossa alma permanecer inteira e íntegra e grande e sempre e a todo momento preenchida por ver o outro parte de si própria. Se a nossa alma puder ver em cada ser o pulsar da vida toda - até nas coisas mais duras, nas mais concretas e nas mais lentamente transformadas. Como as pedras que um senhor, nesta Demétria tão afastada daqueles tempos e daquele país, agrupou e espalhou ao seu redor antes de se despedir do mundo. Eric Blaich viaja nesta madrugada pelos espaços siderais, acompanhado por toda a silenciosa humanidade que conferiu ao âmago dos seres com os quais conviveu. Os seres-pedras e os seres-tintas voam a seu lado, sorriem à sua passagem, alcançam-lhe a visão do que semeou, plantou e colheu na sua longa vida. Assim como ecoa no espaço que me separa das Caldas uma revolução que me garante a certeza da liberdade do mundo, ecoam no espaço, brilhantes como límpidos cristais, as dádivas que Blaich espalhou pelos amplos caminhos da sua vida. Feliz viagem, Blaich.

Ana Vieira

(Em cima: Biblioteca do Parque D. Carlos I, nas Caldas da Rainha
Abaixo: "Rio Enz", de Eric Otto Blaich)

10/04/2011

Pannychia


Dentre os vários livros deixados por Calvino, Psychopannychia chamou a minha atenção há uns meses atrás. Essa porção de letras pareceu-me saborosa: os dois y destacando-se no todo, os dois n a meio, o crepitar dos ch alimentando o resto... Antes de pensar no que fosse, desenhei-lhe a forma manuscrita, pus-me a pensar em que pensaria ele ao decidir que esse desenho no papel seria o título de seu segundo livro. Mas logo a mente (que engana) mais a razão (que tudo quer explicar) me atrapalharam nesse devaneio. O “pânico da alma”, que talvez se insinue a uma primeira e desinformada vista, logo se desfaz ao localizar Calvino no tempo – avançam sobre nós as paisagens que seus sequazes trilharam divulgando a nova fé, enche-se de neblina o horizonte da paixão huguenote, perseguida, execrada e assassinada em noites das quais São Bartolomeu é apenas um exemplo. Almas em pânico, aquelas?!

Descubro entretanto um dicionário: inglês-latim online. Oferece tudo (ou quase), o bendito: a primeira derivação, a segunda, a grega, se a houver, e ainda a raiz primeva rastreada em direção ao indo-europeu. Não bastasse, localiza vocábulos derivados dessa raiz (e das outras, se eu quiser) em pelo menos 20 línguas com derivação semelhante; ao escolher uma delas, ganho de bandeja uma lista de tudo o que derivou da derivação inicial. É um assombro. Eu penso, clico e o mundo revela-se palavra.

Vejo que não, que psychopannychia nada tem de pânico, mas, ora vejam, de vigília – mais especificamente, “vigília da alma”. Gostei da ideia: nada de ter a alma em pânico, antes vigilante. Calvino ficou assim, cutucando-me com seu título, atiçando-me a curiosidade para saber o que achava ele mesmo dessa história. Muitos saberão bastante sobre protestantismo, mas eu católica apostólica romana a minha lusitana infância inteira (com direito a uma salve rainha incomodando meu ser infantil que não achava nada interessante aquela história dos filhos degredados de Eva suplicando neste vale de lágrimas...), não sei de nada mesmo. Apesar das aulas a preparar, dos livros que comprei a ler, do relatório a escrever, da última mania em forma de série seduzindo-me ali da caixa da 3ª temporada... vou ocupar-me com este assunto de última hora, que provavelmente há de ser importante daqui a algumas horas, ou dias, ou semanas, quando a minha alma se for deitar. Coisa que a mesma jamais fará, se for considerar o que diz Calvino, já que a alma não se deita, nem dorme, nem se apaga, nem se extingue. Nem hoje, nem no dia da morte de seu invólucro.

Calvino opôs-se aos aniquilacionistas: aqueles que creem, por bíblicos a + b, que as almas dos perdidos estariam não só perdidas, mas seriam extintas para todo o sempre. Não acreditam que um deus cristão misericordioso pudesse deixar almas ardendo no calor dos infernos, por isso antes a chamada “segunda morte” após a física, o aniquilamento sem volta. O inferno seria como a condição de pré-nascido, portanto inexistente, porque ainda não existiu, e por isso mesmo não existe (!). Lutero, antes dele (e, depois dele, dele discordando), garantiu o “estado inconsciente dos mortos”, todos eles aguardando no não-saber, no não-viver o dia do Julgamento Final – não em vigília, mas em sono total. Calvino não acreditava nisso – para ele, estaremos todos vigilantes esperando o fim dos tempos.

Canso-me rapidamente das leituras teológicas, tantas idas e vindas e voltas e tornas. Não tenho nada contra elas, é que o que eu quero é entender a palavra e não me sentir demasiado ignorante. Os primeiros parágrafos do livro de Calvino interessam-me – seria ele um Padre Vieira lá no seu tempo e espaço? Descubro que acredita-se que tenha proferido cerca de 4000 sermões (!), ainda que deles só se conservem 1500; aos 30 anos já tinha a cabeça grisalha, o corpo magro; comia pouco, dormia menos, mas nada disso lhe retirava o enorme esforço intelectual a que se dedicava (com o consequente gasto, imagino, de energia). Saúde? Frágil: artrite, cálculos renais, gota, hemorróidas, e profundas, frequentes e extensas enxaquecas, a que seu biógrafo atribui sua fama de irascível. Associava a prodigiosa memória que tinha a uma poderosa capacidade de observação. Morreu aos 55 anos, rodeado de seus discípulos. Interessante, este Jean Calvin.

O querido dicionário me encandeia (palavra bonita, em linha direta das candeias que alumiavam as noites esfomeadas do Alentejo): “pan-nychis”, do grego, significa “passar a noite sem dormir”. Logo imagino (achando que li isso em algum lugar, o que pode até ser verdade, mas mais provavelmente não o é) que talvez Pã sofresse de insônia, e que talvez por isso tivesse decidido inspirar medo e pânico aos outros, só para se divertir à custa alheia no meio dessas noites sem dormir. O certo é que nós todos, insônios de plantão, podemos, para não nos repetirmos, conversar logo mais sobre a nossa pannychia, e aposentar de vez a sempiterna insônia.

Enquanto isso, nossas almas vigilantes vagarão pelos tempos dos tempos, alertas quanto ao fim, às vezes em pânico ao descobrir o quão longe está o que até ontem parecia ao nosso lado. Talvez o pânico, se equilibrado e enquadrado, nos mantenha acesos, alertas, coesos conosco mesmo. Nada que nos paralise, mas que nos espete a agulha fina do incômodo e nos faça avançar e ficar mais perto do fim. A parte inevitável da vida.



Ainda Pannychia... coisas interessantes para ver, ou ideias que dão pano pra mangas...

Um ritual pannychidos – um réquiem para as almas mortas, Igreja Ortodoxa Grega

Mais coros bizantinos, para quem tiver gostado

E por fim o dicionário!

03/04/2011

É preciso ler os poetas debaixo d'água

Não é minha a frase do título, mas calhou-me ouvi-la ontem de manhã, e ficou assim, a bater-me no cérebro até agora, noite fechada e silêncio completo em tudo. Acordo com essas sete palavras à flor da pele, e de tão enrugada sei que estava de fato debaixo d’água, tentando decifrar tudo o que flutua embaçado à minha volta. Acordo num pulo, saio da água e o que escorre do meu corpo são palavras, as dos poetas que estavam no mar que me submergia. As palavras do dia de ontem sobressaem-se e escorrem com mais rapidez – o magma incandescente invadiu-me a noite, e são os relâmpagos que me acordam, o corpo de repente sem mãos sossegado pela batida das palavras. Procuro o lugar em que este pânico obtuso se implantou dentro de mim, mas o que resulta é uma desconstrução aflita do que ainda não foi. A culpa de tudo isto tem nome e sobrenome: Luis Serguilha.

Luis Serguilha não é um poeta comum, nem está perto de o ser. Com a bandeira da própria estética levantada, mantém-se fincado à proa, seja lá que ondas o atinjam pelos flancos. Fala de cavalos sonâmbulos como se os alimentasse diariamente, e os cavalgasse sem rédeas nem sela, sentado só na fissura de si mesmo. Não é fácil lê-lo, nem deveria sê-lo – não lhe é fácil o escrever-se.

Na rápida visita que fez a Botucatu, Luis desassossegou e acelerou – propôs leituras várias a partir dos textos nas mãos, invadiu sem decência e sem decoro os frutos alheios, deu-lhes cores, entranhas, posições no espaço diferentes das que se mostraram. Num jogo, sugeriu o texto por detrás do texto, dentro do texto, a comer-se pelo texto afora. Mastigou as próprias sílabas até chocar os ouvidos cansados e convidá-los com urgência ao desligar de todos os geradores de energia pensante.

É urgente agradecer a quem plantou o Luis esta manhã em nossa cidade, a brandir um livro cor de sangue nas mãos como se da sua própria âncora de salvação se tratasse. Uma âncora leve a fazer-se pesada, só para que não nos enganemos e pensemos que a cicatriz se fechará sem dor, antes que retiremos de dentro da ferida o punhal com que a abrimos a cada dia. É urgente agradecer-lhes, porque o desassossego é fértil, mas precisa ser provocado; é útil, mas precisa ser lembrado; está aí fora sempre, mas é preciso quem o convide a entrar. Ontem, houve quem o convidasse – assim aconteça mais vezes.

A propósito da oficina conduzida pelo poeta português Luis Serguilha, na manhã do dia 2 de abril de 2011, na Secretaria Municipal de Cultura, em promoção da ABEM. Agradecimentos especiais à Vera Ravagnani, à Carmem Lúcia da Silva e ao Osni Ribeiro.

30/03/2011

Vidros lavados

Começou com a súbita vontade que me atingiu hoje, de forma extemporânea e urgente, de limpar todas as janelas de casa. Há meses que isso não acontece – nem eu tenho essa gana sintomática, nem as mesmas são limpas. O motivo é simples, ou pelo menos a desculpa: as crianças ganharam de presente canetas de escrever em vidro, e estão todas as janelas decoradas (estavam, a bem da verdade, porque agora eu já passei por elas) com flores, fadas, borboletas, gnomos, estrelas e árvores com balanços.

Mas isso já tinha semanas e mais semanas, e o que sobrava de espaço estava tomado por teias de aranha e seus eloquentes resquícios, dedadas, marcas de bolas que se desviaram do rumo pretendido. Por isso, dispus-me a tornar todas as superfícies transparentes, desejando muito ser como a minha avó, que criava vidros imperceptíveis aos meus olhos de menina. Mas eu não sou a minha avó, e já percebo daqui, de onde estou, uns trechos embaçados.

Era já noite, quando esta vontade súbita chegou. Deixei as luzes de fora todas acesas, como se fosse dia de festa, para poder ver na contraluz os lugares em que, completamente livre de outras coisas, já vive essa minha urgente transparência.

Deixei as cortinas abertas. Gosto delas; muito, até – espécie de barreira que corta o olhar do outro e me oculta quando quero. Mas hoje deixei-as abertas, o respirar da Demétria sossegado vencendo os minutos noturnos. Cortinas diminuem a intensidade com que a luz de fora atinge o dentro, desbota as cores dos tecidos, corrói as duras madeiras de lei que fazem os móveis mais queridos desta casa. Gosto de cortinas, pela proteção, o acalanto, o ninho silencioso que criam ao redor nas noites frias.

Uns meses atrás, outra súbita urgência fez-me fazer as cortinas com que sonhei meses a fio, numa influência clara da coleção de catálogos Laura Ashley herdada. Umas, ganharam pequenas flores; devolvem-me à atmosfera da sala de uma austiniana Elizabeth em pleno Hampshire. Outras, severas, num vermelho escuro de sangue coagulado, lembram-me as da sala de Miss Marple - também ela tinha uma espaçosa janela de vidros grandes na sua sala, seu posto de observação, e também à atenta velhinha as cortinas diminuíam o tamanho da sala. A diferença é que isso era para ela um problema, e para mim é solução: tornam-na do meu tamanho, escurecem as luzes que acendo e recriam o éter de que gosto quando alguém abre o piano e toca.

Isso, na sala. Na cozinha não há cortinas – não porque se engordurem, ou sujem, mas porque as janelas olham em várias direções, e, assim, quem cozinha, descasca, tempera, lava ou seca pode olhar em volta, ver o verde que rodeia e apascenta os olhos nos intervalos da vida lá de fora. Foi pensado, tudo isso, quando nos debruçamos sob a planta desta casa. Porque, quando se cozinha, dá-se vida ao que cogita dentro, num santuário silencioso e solitário. Da cadeira da cozinha onde me sento agora, vigilante às janelas limpas e com o fogão apagado, vejo todas, de todos os lugares, e sinto-me rodeada por tudo o que já foi e tudo o que agora é, duas formas da mesma coisa, numa absurda e concreta diferença.

As janelas limpas e abertas, hoje, provocam um movimento inverso, de clareza e semelhança. Quero poder olhar para elas e através delas, ver a escuridão da noite lá fora, porque já apaguei as luzes e agora são só os reflexos azulados da noite a entrarem pelas pupilas da casa. Cheiram bem, as janelas – a limão, porque o pus na água com que as lavei, e um leve traço de álcool, para o brilho que quis perseguir mas tanto fugiu que desisti.

Não sei como estarão amanhã, mas espero que tanto elas quanto eu mantenhamos o cheiro a limpo e o jeito de quem não estranha o vento que bate, o sol que reflete, a luz que atravessa. Não corro as cortinas para impedir que os vidros fiquem sozinhos do lado de fora, entre elas e a noite que avança, sem poderem ver que eu os olho e os percebo. As estrelas que vejo no céu da minha cama brilham mais por detrás do brilho do vidro. Mas não são elas, percebo, mas o próprio vidro, que afinal consegui que brilhasse como brilhava sob as mãos da minha avó.