27/10/2011

Provas para pinguins

Fiquei particularmente tocada pelo pinguim do cartum ao lado. Enquanto os demais, apesar da expressão atônita, tentam entender o que lhes diz o senhor sentado atrás da mesa, o coitado nem olha pra ele, tão interessado está no seu colega paquiderme ao lado, doido pra puxar uma prosa. A cena seguinte, se houvesse, certamente incluiria um sobrolho franzido (do senhor atrás da mesa) e o pinguim remetido ao fundo da sala, perdão do campo, sozinho ele com o ar em volta. 


Ao final da 4ª classe primária, em 1974, eu estava tal qual o pinguim aí em cima. Para progredir para a classe seguinte, e ingressar no então ensino secundário, era preciso que, metaforicamente, escalasse uma árvore tendo como ferramentas duas nadadeiras, imensa curiosidade e essa vontade de mais conhecer os colegas sentados ao meu lado do que qualquer outra coisa. Já se percebe onde eu fui parar naquela sala.

Os exames de admissão em Portugal, assim como no Brasil, eram fundamentais para o caminho escolar. Se bem me lembro, esse foi o último ano em que aconteceram por lá. Constavam de uma prova de aritmética e geometria que devia ter uma duração de uns quarenta e cinco (longuíssimos) minutos, seguida de uma outra, de ditado e redação (a parte fácil). Terminada essa sessão, o júri se reunia e promulgava a sentença: "mau", "suficiente" ou "bom". "Mau" significava que podia voltar pra casa naquele instante mesmo; os “bons” e os “assim-assim” ficavam e precisavam encarar a prova oral. Suplício completo: uma banca na frente; dois professores perguntando, outros dois tomando misteriosas notas – que em pouco tempo se convertiam em mau, bom ou suficiente. Não me lembro nem das notas nem das perguntas, mas no ano seguinte estava uma classe adiante.

Tínhamos todos 9 anos de idade – um ótimo momento para descobrir que o mundo é uma coisa e você outra. Um desconforto imenso. E enormes aprendizados. Aprende-se rapidamente, por exemplo, a reconhecer que nem todos são pinguins, nem elefantes, nem peixes, nem macacos. Há enguias, há águias, há preguiças, até antas.  Já o que fazer com isso demora um pouco mais. Dependendo da espécie, dura a vida toda.

Aprende-se também a esconder a natureza pinguim: passa-se a gostar de água quente, deixa-se de comer peixe, anda-se de quatro, prefere-se viver sozinho – e depois descobre-se que não funciona. Que quando você é um pinguim, você é um pinguim. Tenta-se outra coisa: viver agora rodeada de pinguins, sem mais nada para atrapalhar. Também não: quanta monotonia, que falta dos lobos do mar, das focas, das aves que o Darwin veio estudar!

Por fim, não resta muito a não ser aceitar a própria condição e crescer como pinguim, nesse andar descompassado e esse ar de estar sempre pronto pra festa. Aquelas coisas que um olhar atento, quando existe, desmente em dois tempos. Aprende-se como vivem os pinguins adultos, sem fazer concessões que lhes limitem os movimentos das nadadeiras. Perdem-se uns pedacinhos delas pelo caminho, nas trombadas com os outros animais que frequentam as águas polares ou dando encontrões nas rochas que aparecem de repente em meio às ondas geladas.

Pinguins desacreditam desses senhores sentados atrás das mesas (também há senhoras, não é uma questão de gênero), que lhes pedem comprovação de que podem e sabem escalar árvores, quando o seu horizonte é feito de águas e não de bosques. Desacreditam que precisem provar o que não é provável (nem importante, acrescentam quando conversam ao se encontrarem numa alegre sessão de natação), e desacreditam mais ainda quando esse senhor sentado atrás da mesa se reúne com os demais da sua espécie e se perguntam uns aos outros como fazer para respeitar o tempo de cada um dessas criaturas simpáticas que lhes coube cuidar; leem e estudam e discutem e meditam sobre o assunto. E chegam à conclusão de que os tempos não são como dantes; que o mundo mudou, e com ele as suas mesas precisam mudar também, pelo menos de lugar, os seus sobrolhos precisam suavizar-se, transvestir-se de outras formas, assim como suas palavras; que a percepção do que é único e irrepetível, aquela que inclui a todos, trará a beleza exuberante das nadadeiras para junto da força possante das trombas. Assim que, porém, chegam à floresta, sentam-se à mesma mesa, olham para todos com os mesmos olhos e esquecem-se de que decidiram deixar o sobrolho de lado. A mesa, a árvore, a testa enrugada e as palavras antigas e habituadas pesam demais. E é preciso uma força sobre-humana, daquele tipo que nos faz levitar depois de um tempo, para dizer: "agora, ninguém mais fará a mesma prova".

21/10/2011

Aos amigos librianos



A cada ano, mais. Passa-se o tempo e eu descubro mais um libriano na minha vida. Estou completa e cada vez mais rodeada de librianos - talvez devesse fazer algum tipo de terapia e entender o porquê. Filhos (três!), um companheiro de vida, vizinhos, amigos, compadres, alunos, amores - até minha caixa de supermercado predileta, a Thaís, descubro ter feito aniversário dia 15 de outubro! É um desfilar e nunca mais acabar dessas criaturas que, embora por vezes indecisas, primam pela diplomacia, pelo bom gosto, por uma espécie simples de simpatia cativante, pela sensibilidade. Ainda que, às vezes, a embotem, ou guardem, ou ruminem, ou sublimem (não faço ideia do que aconteça, mas tanta sensibilidade esfuma-se de repente por entre os silêncios que se avolumam). Tanto libriano assim em volta me dá ensejo a comer bolos dos mais diversos sabores em pouco mais de 20 dias, o que se traduz em quilos na balança – coisa de libriano, já se vê, interferir assim, sem dó nem piedade, em balança alheia.

Muita coisa depende de seu ascendente: sim, não, talvez (eis que me atacam as dúvidas do meu objeto de reflexão). Porém, estes librianos à minha volta têm em comum o serem delicados, encantadores nessa capacidade incomum de seduzir quem está ao seu redor, gentis, solícitos, bonitos, sorrisos que desmontam. Os manuais de astrologia dizem que amam o belo, e eu só posso concordar, porque carregam diuturnamente seu senso estético aonde quer que vão – mas o que de mais belo existe entre tudo o que é belo que amam, é a harmonia, o equilíbrio, imagino até que a simetria. Tudo aquilo que justamente lhes custa, que lhes dobra a alma, porque antes fosse fácil assim: não é. Essa fixação na harmonia, às vezes, leva-os a se esquivarem à contenda que se anuncia, creio – e para quem quer frontalidade podem tornar-se um desespero. Mas só às vezes.

Librianos famosos: muitos. De Sting a José Mayer, passando por Will Smith, Mat Damon, Fernanda Montenegro e Lobão. Quem consegue não se deixar seduzir?! E este aqui, que me desceu da prateleira às mãos, e que teria feito anos dia 19, se vivo fosse. A libriana ao meu lado arrepia-se quando lhe digo que sim, que o respeito, leio até com prazer, mas não me excita os neurônios nem me estimula os outros centros de onde surgem a maioria dos meus prazeres. Outros librianos sim, é fato, mas não este. De qualquer forma, e porque não gosto de recuar diante da adversidade, pus-me a ler, bem entretida aliás, hoje pela manhã, “Para viver um grande amor”. (No fundo, no fundo, meu pensamento estava mais ocupado em descobrir como é que se sobrevive a um grande amor).

Pensava entretanto no tema de outra crônica, uma que me acompanha há semanas, sobre as coisas que nos perseguem por muito que fujamos delas e a maneira como o destino tem a capacidade de nos atropelar logo depois das curvas... Talvez Vinícius (de Moraes, o próprio) pudesse ajudar-me, ele que diz que o cronista está condenado a ver-se vez por outra às voltas com a escassez de motivos, e por isso “levanta-se, senta-se, lava as mãos, levanta-se de novo, chega à janela, dá uma telefonada a um amigo, põe um disco na vitrola, relê crônicas passadas em busca de inspiração – e nada”. Nada mesmo. Nada pelo menos que me ajude a avançar na direção da divagação que pretendia. Descubro ainda outra frase sobre o ofício de cronista: “ingrato, prosa fiada”. Suspiro e quase desanimo; em dias de mais ficção que crônica, prefiro aquela sensação do ficcionista de ser levada “a tapas pelas personagens e situações que, azar dele [meu, no caso], criou porque quis”.

Vinícius oferece ainda, em meio às crônicas desse livro, poemas que "visam amenizar um pouco a prosa: dar-lhe, quem sabe, um 'balanço' novo" (libriano, ele, será?!). Uma terceira possibilidade, essa de poeta: aquela que exclama a pulmões plenos que o "único patrão" da poesia “é a própria vida: a vida dos homens em sua longa luta contra a natureza e contra si mesmos para se realizarem em amor e em tranquilidade”. Luta contra si próprio para alcançar o amor e a tranquilidade?! Não posso deixar de sorrir: é claro que nasceu a meados de outubro!

Mesmo considerando as diferenças astrológicas que nos unem, vejo as três possibilidades em ação, lá e aqui. Dão-me trabalho, a mim, com o seu desdobrar cotidiano – um trabalho bom, daquele tipo que entorpece as pontas dos dedos a ponto de precisar mergulhar as mãos em água quente, mas que ao mesmo tempo espreita por trás do espelho, para flagrar o momento exato em que os olhos mudam porque se encontrou o caminho (qualquer caminho) a seguir.  Eu, que costumava dividir-me em apenas duas, o que já era tarefa suficiente, descubro-me três em mim dentro da escrita, três formas diferentes, cada uma num formulário distinto de requisição; formas que me aliciam, cada uma com suas melhores armas; que me seduzem e embromam, altas horas da madrugada. Como se afinal tudo isto valesse mesmo a pena ser escrito. Ao menos para dar os parabéns a quem faz aniversário por estes dias.

20/10/2011

Dia de co-memorar

Sabe um daqueles dias em que dá vontade de, como todos os grandes poetas deste nosso ocidente, de Homero a Milton, de Camões a Shakespeare, invocar a grande musa e por-se a trabalhar? Depositar nos seus invisíveis braços a carga que não sustentamos, eliminarmos toda preocupação com processo, resultado, sentido - e simplesmente pormo-nos a trabalhar?

Pois hoje é um desses dias. Porque nada me sai a contento. De nada consigo ou arrepender-me ou congratular-me, e esse é o estado de indefinição que, muito possivelmente, mais me inquiete, de uma forma que não domino e sequer desejo. Ouço ranger e estalar, como se casco de navio enferrujado, cada uma das minhas vértebras e costelas: desacomodam-se para dar passagem a um espaço de alma que estava ali, recolhido, ensimesmado, contente de caber no canto que lhe parecia reservado. Até descobrir que não. Que é mais. Que não se contenta com esses mililitros cedidos. Por mais que se alongue, torça, estique, corra: nada.

Por isso o lembrar-me das musas: para ver se encontro alívio. Antes delas, evoco Mnemosyne – aquela que vem em socorro para que eu não me esqueça, a deusa da memória por excelência. Porque a tendência a esquecer está impiedosamente ligada ao limite do que somos. Ao esquecer, perdemos humanidade, subtraímo-nos daquilo que viveu em nós e não lhe damos crédito. E o passado cola-se às nossas costas, agarrado às asas que não conseguimos despregar.  Mnemosyne, uma das Titânides, nasceu da união entre Urano e Gaia; com Zeus, teve as nove musas – todas elas filhas assim da memória.  A cada invocação a qualquer uma delas, de Calíope a Érato, de Euterpe a Tália, o que pedimos é a graça de sermos capazes de lembrar, de forma atenta, de tudo aquilo que vale a pena, antes de que tudo deixe de valer a pena.

Co-memorar faz com que nos lembremos juntos de que é preciso lembrar. Re-cordar, nesse sentido que essa palavra poderia ter, e fazer com que novas cordas se estabeleçam entre o que já foi e o que agora é. Partícipes de um passado feito império e que apenas o esquecimento poderá destruir, é urgente que saibamos da finitude do tempo, mais do que da sua relatividade, e que invoquemos Mnemosyne, comemorando esse passado que reúne os feixes de uma mesma trança.

11/10/2011

Do ventre, ao berço - esgotado

Surpresa das surpresas. Com vontade de dar um presente a uma amiga que engravidou, vou em busca do livro que escrevi há tempos - tempos que perfazem já mais de uma década! Sou informada pela editora de que esgotou. Ou seja: não há mais. Sensação estranha. “Do ventre ao berço - em casa” foi escrito durante a gravidez da filha que se foi. Meses de frio no porão da casa do Zé, o mar de Cascais a reboar nas paredes - usei seu computador por horas a fio, imprimi, corrigi, rasguei e voltei a escrever. Entre a sua escrita e o dia de hoje tenho na minha pele a marca luminosa de cinco partos, que vieram juntar-se aos dois que deram origem ao livro. Sete pontos de nascimento entre o céu e a terra.

Muitas histórias suculentas se criaram à sombra das páginas desse livro; muitas pessoas se agruparam em torno de uma forma de nascer que ganhou espaço e conquistou terreno – parece que o livro ajudou a pavimentar esse caminho. Alegro-me, porque a minha maior vontade, e o verdadeiro impulso desse livro, foi o desejo imenso de que outras mulheres tivessem a experiência transformadora de se darem à luz. E não de apenas dar à luz.

Pus-me a ler, agora há pouco, o tal livro, num dos exemplares que felizmente tenho em casa. Demoro a reconhecer-me – como acontece com outras coisas que escrevo, não consigo lembrar-me de quando escrevi aquilo.

Creio que o feito deve-se ao milagre da publicação. Texto publicado, texto esquecido – mudou de mãos, de dono, de olhos: não me pertence mais. Cada livro dado por pronto significa espaço livre no meu território de memória. Um alívio dos sentimentos que não entendo, dos renasceres que deixam de pertencer-me. Outro dia, nova alvorada.

Perguntam-me ao telefone se quero pensar em nova edição – ou seja: voltar ali, àquilo que foi dado como terminado, e ligar mais uma vez os motores. Ver se sobrou combustível, limpar as velas envelhecidas, encerar as superfícies, aprofundar a vazão por onde correm as coisas.

Pode ser que sim. Agora que o leio, percebo-lhe (tanto!) os buracos, as crostas, as varizes que precisam ser puncionadas para que o sangue possa correr liberto. Assim mesmo, nu e cru. Não me faria mal reviver o passado e acrescentar-lhe o que não está escrito. Avaliá-lo nesta distância que se criou entre ele e eu. O tom mudaria, acredito – ilusões que se perderam, outras que se criaram; parapeitos da vida que não frequento mais, porque meus cotovelos procuraram outros lugares de apoio.

Vou precisar invadir os orifícios da minha memória, conclamar a deusa mnemônica a que me guie. Que não me deixe perder no horizonte os aprendizados, ajudando-me a enfiá-los a todos num colar de pérolas inesgotáveis, brilhantes e leitosas como só o são aquelas que se criaram à custa do sacrifício da ostra. Sofrer, não quero. Mas também não me ausento se for imperioso.

02/10/2011

Óculos sinceros

Perguntam-me se sou sincera quando escrevo. Sorrio (e lembro-me do mestre Pessoa, certo de que o único a sentir verdadeiramente era o seu próprio mestre, Caeiro. Depois dele, ninguém há que saiba o que verdadeiramente sente.) Mas não me perguntam se sinto, e sim se sou sincera ao escrever (ainda que, convenhamos, sejam as duas perguntas a mesma coisa). Ouço, lá ao fundo da minha memória, um dos meus professores de latim, talvez do 8º ano. Exortava-nos a sermos vasos de barro perfeitos e finos – vasos sem rachaduras que a cera tentasse ocultar: vasos sine cera. Vasos sinceros. Ao longo dos anos, descobri que a explicação nada tem de muito certo, mas ainda assim gostei e mantive-a na memória.

Sinceridade tem a ver com pureza – com ser franco, leal, simples, verdadeiro, que não oculta ou usa disfarces, malícias, dissimulações. Aquele que é sincero nada teme - caminha de peito aberto, de sorriso iluminado, de alma constituída por partículas que brilham no encontro com o outro. Olha-se para dentro dele como se olha através das paredes de um vaso sem rachaduras nem embustes. É o que é.

Passei anos com uma vontade imensa de usar óculos. Lá pelo 3º ou 4º ano, decidi que uns antigos óculos, herança das caixas do sótão da minha avó, haveriam de ser-me muito necessários, e passei semanas usando-os (sem lentes), muito aliviada por finalmente poder escrever com mais propriedade, como se deve, como os escritores de verdade: de óculos. Enquanto isso, toda a minha família, novos e velhos, usava óculos; a miopia foi daqueles acidentes genéticos aos quais fui poupada, sem entender porque esse e não outro.

Escuros, tive vários. A cada um, a felicidade de olhar para eles e o desconforto de olhar através deles - ter a certeza de que meu interlocutor não me via através dos meus olhos, como é que se mantém uma conversa com alguém no escuro de umas lentes postas?!

Finalmente, passada a barreira dos 45 anos, uso óculos. Tenho a vista e outras coisas cansadas. Lembro-me de todas as armações que vi em tantas e tantas feiras de velharias por todos os lugares por onde passei. Sem atentar para o fato de que o tempo inevitavelmente agiria a meu favor, deixei-me levar pelos encolheres de ombros dos outros, acrescidos às vezes de impaciência, e não comprei qualquer armação que fosse – para que, se não as vais usar?

Não deveria ter-lhes dado ouvidos – hoje, não encontro nada que me agrade. Posso encomendá-los do outro lado do oceano, feliz da vida pela pechincha dos mercados livres que abrem as suas portas pela janela da internet, posso imaginar que sim, estes sim!, comprá-los e... em pouco tempo perdê-los.

Mas hoje a caixa de correio reservava-me uma surpresa. Há meses avisada, já tinha desistido dos óculos que meu filho me prometera, aflito com a minha fixação por armações estilo Oscar Wilde, prevenindo que eu as encontrasse e, pior, lhas mandasse arrematar em qualquer feira londrina. Abro a caixinha e, junto com as inevitáveis contas para pagar, que é só o que eu vou buscar ao correio, um pacotinho amassado, bendito plástico bolha a permitir que as coisas viajem aos trambolhões.

Reconheço a letra do remetente, abro-o exultante e paro pra olhar os pares de óculos que ele me manda. Sim, pares: um para ler, outro para andar de carro ao sol – ouviu-me certamente reclamar do efeito dos raios no asfalto.

São óculos diferentes do que eu esperava, confesso. Olho-os por um bom tempo, e, de repente, reconheço-os sem nunca os ter visto antes. Chegam-me de um tempo distante, um dos que guardei em algum lugar, um pedaço de vida que sem querer deixei para trás.

Muitas coisas se engrandeceram em mim, desde esses óculos até hoje; outras se amesquinharam; outras desapareceram, engolidas pelo passar dos anos, outras se transformaram em detalhes incômodos que preciso varrer para fora da minha alma. (Uma amiga me diz que a história que lhe conto a faz imaginar-me num caminhão fechado na próxima mudança que planejo – e não no caminhão aberto em que cheguei da última parada em que estava.  O caminho aberto pelos meus pés parece, com estes óculos, ter se espremido através dos espinhos. Algumas rosas. Muita secura. Uma paisagem lunar. Coisas como essa é urgente que reinvente.)

Este meu filho lembra-se do que eu sou quando era antes; retoma-me nas suas mãos, as mesmas que deixaram suas impressões na haste desses óculos, e conta-me do que eu também me constituo e às vezes esqueço.  Lembra-me sobretudo que eu sou muitas coisas ao mesmo tempo, e sem as ser a todas elas deixo de ser quem sou. Pode ser uma labuta, para mim e para os outros, mas doutra forma não sou – e mesmo sendo talvez menos cansativo, é mais triste, e é, sobretudo, menos sincero.