Diz-me a minha tia Luisa que é sinal de velhice, isto de andar a contar histórias de quando se era pequeno, mas invariavelmente, assim que o calendário se aproxima do dia 25 de abril, acontece-me. Pior do que tudo, ganho neste dia uma capacidade de perceber ligações entre tudo e todos, e aquelas que não existiam, só porque hoje é 25 de abril, passam a existir. Entre tudo o que vivi, o que li, o que ouvi e o que senti, não tenho como separar fatos de desejos, estes de vontades, e ainda estas daquilo que podia ser mas talvez não tenha sido, sem que isso chegue realmente a importar alguma coisa. Portanto, assim que me deparo com este dia no rol dos de todos os anos, fico assim – nem um dia se passou, e todos os que vivem ao meu redor são catapultados para dentro de um enorme vaso de cravos.

As Caldas são revolucionárias: a 16 de março do mesmo ano que marcaria a Revolução dos Cravos levantava-se o quartel da minha cidade. A Intentona das Caldas levou o Regimento de Infantaria que lá estava sediado em direção a Lisboa, disposto que estava a derrubar o Estado Novo já tão velho. Sem companhias, foi sustado às portas da capital portuguesa. Mas assim ficou: o primeiro movimento em direção à liberdade. Canhestro, talvez. Apressado e com uma noção péssima de timing – pode ser. Mas é dessa matéria que os sonhos são alimentados. Dos doidos que correm à frente para mostrarem aos outros que o caminho é possível.
Fui acordada na madrugada do dia 25 de abril de 1974, pouco depois das 4 da manhã, por uma mãe de olhos brilhantes e gravidez anunciada. “Somos livres”, dizia-me ela sabendo que eu a entendia. Não só o somos como o podemos dizer, e viver, e dar, e viver mais uma vez e assim seria até o mundo acabar. Podemos ir pelas estradas, já manhã clara, em direção ao mar e na companhia da Alice, que insistia em erguer um punho fora da janela e cantar e gritar às árvores que passavam que sim! somos livres! Indivizível, indiluível, intraduzível, inesquecível.
Com os nove anos de idade que tinha, descobri-me dois dias depois sentada no muro que rodeava a escola primária em que estudava, ocupada a ensinar aos meus colegas, cujas mães não faziam o que a minha fazia, a “Grândola Vila Morena” e o “No pasarán”, repreendida em pouco tempo pela minha professora, apavorada com o que o comunismo faria a todas aquelas apetecíveis criancinhas.
Ao longo dos meses que se seguiram, viagens ao Alentejo, a descoberta de um país na festa de encontrar-se com pernas, braços e sobretudo vozes, procurando aprender a andar e a saber como desfazer-se de anos de tristeza e devastação. Exatamente por isso, encantador, esse país. Um ano depois, na Espanha ainda franquista, meu pai seria (perigosamente) intimado a explicar o slogan que criara para oferecer o destino turístico ao país vizinho: “Portugal, tan nuevo y tan cerca”.
Devo a minha mãe, e a meu pai de outras formas, uma maneira de olhar as pessoas que se movimenta no espaço e no tempo, e lhes acolhe os erros, as fraquezas, os deslizes, as traições. Aceito-as com dificuldade, sim – mas os meus olhos olham a maneira como estão, certos de que aquilo que são muda - esconde-se, foge, amesquinha-se, endurece-se, cria limos e crostas e, de repente, descobre uma função auto-limpante e voilá: shinning as new! Inevitavelmente, olhando de longe, a vida é uma escada que sobe –tinha toda a razão a minha avó quando me dizia isso, mesmo nos momentos mais duros que lhe apresentei na ingenuidade tola da juventude. A vida é uma escada que sobe – e por isso, deduzi sozinha anos depois, mais vale aproveitar cada degrau, porque nada permite que desçamos.

Tudo vale a pena, se a nossa alma não se amesquinhar diante das possibilidades do mundo. Se a nossa alma permanecer inteira e íntegra e grande e sempre e a todo momento preenchida por ver o outro parte de si própria. Se a nossa alma puder ver em cada ser o pulsar da vida toda - até nas coisas mais duras, nas mais concretas e nas mais lentamente transformadas. Como as pedras que um senhor, nesta Demétria tão afastada daqueles tempos e daquele país, agrupou e espalhou ao seu redor antes de se despedir do mundo. Eric Blaich viaja nesta madrugada pelos espaços siderais, acompanhado por toda a silenciosa humanidade que conferiu ao âmago dos seres com os quais conviveu. Os seres-pedras e os seres-tintas voam a seu lado, sorriem à sua passagem, alcançam-lhe a visão do que semeou, plantou e colheu na sua longa vida. Assim como ecoa no espaço que me separa das Caldas uma revolução que me garante a certeza da liberdade do mundo, ecoam no espaço, brilhantes como límpidos cristais, as dádivas que Blaich espalhou pelos amplos caminhos da sua vida. Feliz viagem, Blaich.
Ana Vieira
(Em cima: Biblioteca do Parque D. Carlos I, nas Caldas da Rainha
Abaixo: "Rio Enz", de Eric Otto Blaich)