25/06/2010

Aos homens que se escrevem com maiúscula

Saramago não me dá trégua: passei a semana a lê-lo, creio até que se me cola aos dedos, seres autônomos que agora querem brincar de evitar as pontuações padrão. Resisto-lhe um pouco, agarro-me às minhas próprias sombras porque os dias e a escuridão também não me dão trégua, e logo ele volta, com mais um pequeno segredo a que eu não tinha prestado atenção na primeira visita. Com isso, continuo rodeada dos seus livros, aquilo que lhe sobrevive na ausência, como ele quis. Lamento os que não comprei em inúmeras ocasiões e fico feliz porque a ele sim, ao fim e ao cabo, pedi um autógrafo. Olho-o longamente, a esse desenho que forma o seu nome, e dá-me assim uma certeza de coisa toda inteira na página em branco deste livro. Simples e austero, como seu autor. A tinta forte, sem espaço aberto a dúvidas. E embaixo o ano, porque o tempo é o amigo das coisas que se querem lembradas.


Talvez o que não me deixe afastar-me da sua memória seja o tê-lo descoberto, ao longo desta semana, no tamanho da sua integridade pura, da sua absoluta desesperança sem fé em nada a não ser na força do trabalho das suas próprias mãos. Reconheço-lhe traços que se vislumbram na sua carta natal, mas imagino que ele, lá de onde está, se ria ao ver-me por dentro a pensar semelhante disparate. Não creio que ele olhasse para as estrelas dessa maneira. E ele olhava-as. Longamente.


E provavelmente não exista nada de riso em seu rosto ao ver-me pensar ou fazer seja o que for, porque se tudo tiver dado certo e ele tiver ido para onde gostaria de ter ido, está neste momento disperso no éter do não ser, do não tempo, incorporado à substância vital e criadora do universo, e mais nada. Tanto se lhe dará o que eu ache.


Há uma espécie de verdade com maiúscula que me atravessa quando o leio. Uma espécie de grandiosidade do pequeno. Quanto menor ele se apresenta, maior e mais intenso me atinge.


Tenho-o diante de mim em muitas fotografias. Em gestos que se fizeram ternos com o passar dos anos e o encontrar do outro. Mudou a si próprio sem recriminar o passado nem angustiar o futuro – um dia atrás do outro e de cada vez, na sabedoria camponesa sem ambições dos seus pais e avós. O tamanho da vida de um homem que se escreveu a si próprio com maiúscula.


Releio mais uma vez as anotações que fiz sobre a sua vida, interrogo-me sobre algumas das suas ações, quem dera pudera perguntar-lhe de onde lhe veio tudo isso, se da certeza do caminho, se da teimosa decisão de ser austero, grave e incisivo na sua observação da realidade, dessa matéria por trás das palavras que engulo como alimento.

Sinto-o ao meu lado, na pretensão que muitos devem a esta hora reconhecer em si, e acho realmente uma sorte que uns permaneçamos vivos enquanto outros se vão. À maneira de Cícero, que dizia que a memória preservada em veneração e ternura naqueles que sobrevivem faz com que quem partiu seja feliz na morte e quem ficou honrado na vida.


O sentimento ou a necessidade da honra traz-me os que partiram nos últimos dias, e eu conheço. Apresso-me a percebê-los de novo, procurando-os nesse estado sem estado. A memória preservada é tarefa diária, assim como é diário o esquecimento do que importa e é leve o bater das asas dos que partem de nós.

16/06/2010

Digressões à parte



Tenho um aluno (vários, até, mas é este um que me vem à mente agora) cujo pensamento é o que eu chamo de digressivo. Infelizmente tendo de preparar-se para exames que querem perceber até onde o pensamento lógico e encadeado vai, precisa de bastante paciência para fazer frente à tarefa. Mas, justamente por ser digressivo, avança sem dificuldades. Só leva mais tempo. E algumas coisas precisam e melhoram com o tempo – como alguns vinhos, por exemplo.

A digressão, bem diz a própria palavra, leva-nos a passeio. A dissertação demanda conhecimento de causa, provas cabais de que se entende, através de exemplos e de experiências. É coisa séria, enquanto que a digressão é um tanto à toa, como sorvete num dia de inverno, só porque deu vontade.

O pensamento digressivo, útil até dizer chega ao fazer literário, é um empecilho digno de zerar nota em qualquer vestibular que peça uma dissertação ao proponente a aluno universitário. A digressão acompanha muitas das melhores peças literárias que andam por aí há muitos séculos, enquanto que a coesão lógica solicita tudo ao raciocínio e muito pouco à arte. Ou produz jóias raras, como muitos sermões de Vieira, mestre em convencer pelo poder da lógica em perfeita cadeia. Mas isso é para criaturas iluminadas como o padre barroco, e não para os comuns dos mortais.

O que é uma pena, acho, rodeada que estou de seres que se nutririam mais das digressões da vida do que de seus encadeamentos racionais. Uns, porque impera-lhes a lógica, e poderiam divertir-se com as cores e os sons da arte que ainda não distinguiram em si, ainda não deu tempo, quase que acabaram de renascer para o encantamento da Palavra. Outros, porque o aperto do mundo lá adiante, o abismo embaixo dos pés que querem mas não conseguem atravessar a  voo, o desespero de ir e querer contra o ir e o não querer - poderia aliviar-se numa digressãozinha que tirasse o peso de cima dos ombros e o fizesse levitar como uma bolha de sabão.

Com o tempo, as laudas, as páginas, o recebimento por caracter-sem-contar-espaços-que-pena familiarizei-me com a escrita e hoje tanto enveredo pelos campos verdes da digressão quanto pelos céus luminosos da argumentação. Gosto e me divirto com ambos, é uma sorte que não seja sempre tudo a mesma coisa. Mas quando me imagino às portas do futuro de antes, e vejo passar diante de mim de novo todas as cores de todos os países e pessoas do mundo, não sinto nenhuma vontade de ouvir outra vez aqueles que me diziam que era preciso ser lógica, e precisa, e assertiva, e cheia de bom senso.

Haveria de preferir, como de fato preferi, enveredar por todas as figuras de linguagem, torná-las meus vícios, desentocá-las a todas das profundezas dos seus refúgios, encontrá-las no escoramento dos poetas que mais amo. Dissertações, naquele tempo, imagino que me colocassem frente a frente com o pouco que conseguia ver através do muro que me separava do que viria a ser, e o sentimento que tudo isso me trazia de frustração e profunda incompreensão.

Espero poder ajudar este meu aluno (e os demais, que se lhe colam na minha lembrança) a não se deixar invadir pela lógica mundana a ponto de perder a sua capacidade de digressão; ajudá-lo a alinhavar-se racional e sobriamente, conseguindo divertir-se com isso, e sabendo que tudo é sempre muito mais do que parece e nada pode ser jogado fora. Se com isso ele conseguir entrar na faculdade que tanto deseja e para a qual não mede esforços, terá sido um prazer e uma alegria somados.

15/06/2010

A vértebra

Creio ter conseguido, finalmente, delimitar o espaço exato do nascimento de uma crônica. Entre a 3ª e a 5ª vértebras torácicas, o que não é assim um ponto realmente exato mas assim é a vida, nem tudo o que parece ser o é de fato e é bom que nos acostumemos sem demora a isso. Mas de qualquer forma um espaço feito de incomum amálgama de agonia e êxtase. Uma necessidade imperiosa dentro de um recipiente feito de um tipo de vontade que se dissolve violenta em si mesma.

A dúvida entre a vértebra exata está na posição que o corpo assume ao escrever, e não nas palavras em si. Depende muito mais do lugar onde se escolhe escrever, que por sua vez está muito mais ligado àquilo que dentro decidiu dizer. Se de lado ou se sentada, a vértebra em questão altera a sua posição em relação ao eixo que considero, que é o da minha percepção de onde estão céu e terra. Dependendo, portanto, desse eixo, muda a sensação da vértebra por onde se escapa, às vezes num suspiro, a crônica.

Não importa: perceber nesta manhã que é de uma vértebra que as crônicas se sopram de dentro para fora foi deveras surpreendente. As crônicas desvanecem-se no ar, dissolvem-se num átimo porque é da sua natureza. Iluminam por um segundo os milagres pequenos do dia a dia e infiltram-se no nosso cotidiano coração sem que depois nos lembremos disso. Desaparecem em meio aos nossos ossos e quase nos esquecemos de que nos existem. Se não me apresso e agarro esta que me sai agora, fica-se perdida para sempre.

Por mais que tente recuperar aquelas duas palavras que de repente davam início a um turbilhão de pensamentos em absoluta desconexão entre si, não consigo, frustro-me, irrito-me e digo a mim mesma que a idade está chegando e eu perdendo a memória.
Mas não é nada disso. É claro que a idade está chegando, seja ela qual for, mas a memória está onde sempre esteve, apenas menos interessada em guardar números e endereços. O problema é da natureza da crônica e da minha incapacidade de lhe localizar o ponto de saída de mim e entrada no mundo.

Mas agora esse é um problema resolvido, e assim que acordar de novo a meio da noite, com as ideias preciosamente alinhavadas dentro de mim, basta-me ajeitar a vértebra no lugar e deixá-la recolhida, em silêncio e penumbra como se gostam os partos, como uma asa ainda sem despregar, guardando os segredos dos voos sem queda das palavras. E, ao acordar de fato, depois de ter voltado a dormir, lembrar-me de descolar do meu corpo a minha vértebr-asa com cuidado, já com o papel e o lápis na mão, chamando-me de volta à vida com um sorriso de triunfo e conseguimento.

14/06/2010

Das feridas que não cicatrizam



Recebi hoje uma mensagem de uma amiga de um tempo longe e de um lugar também longe, a que não respondi. Quer saber de mim, a Helena, há anos que não sabemos nada uma da outra, e ela me conta que a última vez que me rastreou pelos amigos do passado estava eu em meio à dor de assistir à morte de um filho. Eu não sei como consigo dormir sem lhe responder, sem lhe dizer que ela tem razão quando com seu email elimina o espaço entre o dia em que enterrei a minha filha e o dia de hoje, tantos anos depois. Mas não consigo dizer nada, a lembrança mergulhou-me num silêncio inquebrantável. Vou dormir com a resposta pendurada na soleira que se levantou entre o dia de hoje e o dia de amanhã.
A resposta é feita da aguda certeza de existirem feridas que não fecham nem cicatrizam. Parecem fazê-lo, acomodam-se serenas à nossa volta, enganam-nos na sua quase invisibilidade, fugindo aos nossos olhos e às nossas mãos. Protegem-se do mundo para que sobrevivamos, e criam uma pele, que quase nos parece verdadeira proteção, mas é feita só de brumas.
De tempos em tempos, essas feridas sangram. Doem como se fossem novas, talvez até mais, porque o tempo que passa se lhes junta a cada ano. Vivem depositadas nas dobras mais profundas dos nossos desertos, rasgam-se com facilidade se atingidas. Reaparecem à superfície, reacendendo sem piedade as antigas dúvidas, as mesmas culpas, a falta de ar, a inspiração que queima o pulmão como ferro ardente.
Fazem-se inexistentes aos olhos alheios, porque sabem que devem sê-lo, porque é preciso que não sejam presentes, para que os outros sobrevivam à nossa dor. Dor alheia aflige porque não se lhe conhece tamanho nem fim. Dói mais a quem não a sente na pele, porque quem a sofre nasce e se faz para tê-la dormindo ao seu lado sempre.
Por isso essas dores confundem. Porque não há como falar delas, às vezes sequer olhá-las. O máximo que se consegue é sussurrar-lhes que sosseguem, que toda noite chega ao fim e todo horizonte amanhece, escondendo a escuridão da noite que se seguirá.
Talvez pudessem ser todas elas óbvias e evidentes, as dores, se a vida lhes garantisse a visibilidade do que é considerado e respeitado. Se em noites longas como esta, em que o sol demora demais e o adjetivo tenebroso vem a calhar, houvesse tempo suficiente para que todos os fantasmas passeassem com tempo e espaço pela nossa porta. Se houvesse uma voz que soubesse e nos fizesse saber que sabe.

13/06/2010

Cherovias e alfarrobas

Com a desculpa de terem germinado as sementes de cherovia que plantei na horta há várias semanas, decidi entrar na internet à procura das suas qualidades nutricionais, apesar da pia de louça e da roupa para guardar, do corredor com as caixas que eu ia arrumar agora de manhã, a confusão de cobertores pela sala pós-noite de filmes, o almoço que em algum momento será necessário comer.

Mas meu motivo é nobre: cherovias são plantas muito nutritivas, e eu preciso de argumentos que convençam a minha família das suas virtudes, nas próximas sessões de qualquer-coisa-com-cherovia-para-comer. A minha avó deve estar feliz, lá onde estiver, vendo-me não só a querer comer cherovias, como ainda a plantá-las com bastante decisão e persistência. Nada no passado preveria semelhante futuro.

Encontrei muitas referências à tal planta – muitas fotos, todas logo dizendo, com a força que tem uma imagem, o quanto uma cherovia é uma perfeita cenoura (só que um pouco grande, talvez) mas da cor do nabo; o cheiro parece-se com o do anis, mas só de leve, e disso eu lembro bem (a foto tem seus limites), porque enjoava só de senti-la cozinhando lá longe na cozinha. Assim como me lembro do seu gosto de cenoura velha: dois detalhes que omitirei à minha família quando se der a apresentação. O que vai demorar, porque acabo de descobrir que demoram a crescer e a poder ser colhidas. Demorar significa, aqui, meses. Muitos. E talvez não as tenha plantado na melhor época do ano. Enfim, logo veremos.

A sua consistência farinhenta semelhante à da batata deve ter contribuído para o seu incrível consumo pela Europa. Foi base da alimentação da Ibéria durante séculos, e hoje faz parte daquelas características que os movimentos de valorização do particular regional desejam celebrar – já ouviram falar do Festival da Cherovia da Covilhã?! Movimentou na sua 5ª edição uma cidade inteira, com festividades que se estenderam por 4 dias, tudo em torno do um tanto desconhecido porém decantado tubérculo.

Com a chegada das batatas, as cherovias, ou xerovias, ou pastinacas (tudo nome aceitável) perderam a sua importância. Os ingleses vegan comem-nas aos quilos, dando-lhes o nome de parnsip. Graças a eles, descubro que têm um valor nutricional superior ao das cenouras, e encontro muitas e muitas receitas preparadas com o tubérculo, todas até parecendo interessantes. Acabei de abrir uma subpasta na pasta “Receitas” com todas elas, à espera do dia da colheita!

Entusiasmada com esse reviver das antigas tradições, lembro-me das alfarrobas e vou à procura de mais informações – o tanque, a louça, o almoço não se incomodam de esperar mais um pouco. A farinha de alfarroba é competente substituta do cacau; resulta da moagem das sementes que nascem nas vagens e a minha avó também a usava, porque era muito, mas muito mesmo, mais barato fazer um bolo de chocolate com alfarroba do que um bolo de chocolate com cacau. Há campos e campos de alfarrobeiras por todo o Algarve, em Portugal, e era uma diversão voltar de lá com o carro atulhado de vagens escuras e duras. E eu gostava de ficar inventando versos que tivessem essa palavra encantada (alfarroba) e outras que eram as minhas preferidas (como amplidão... lá tem palavra maior?!).

A alfarroba é na verdade bastante diferente do cacau - não tem gordura, nem glúten, nem cafeína, nem nenhum outro alcalóide, sendo portanto a planta mais-que-imperfeita para quem queira passagem para Pasárgada. Ainda assim, parece mesmo chocolate.

Mas o melhor estava por vir. Alfarroba vem do árabe al-kharub, e o que eu mais gosto é dessa vogal aspirada com cheiro de deserto. Não consigo entender porque se transformou nesse nosso “f” que a nada aspira. Dela deriva a palavra “quilate” – o leve peso de uma das suas sementes, usado pelos árabes para vender e comprar diamantes e rubis (peso, e não pureza, como indicam os quilates do ouro, o que não vem agora ao caso).

Poucas gramas de algo que se torna muito valioso: 20 sementes de alfarroba são a mesma coisa que quatro gramas de diamante. Uma parte ínfima de matéria valiosa, minúsculos cristais como os rebentos da cherovia, que agora iluminam o meu dia da cor do som aspirado das palavras árabes. Agora sim, o tanque, a louça, o almoço, os cobertores custam menos. Meu dia, que pesava poucas gramas, pesa agora muitos quilates!