02/03/2020

Cinzel




















Tenho há muito tempo esta fotografia guardada, presente de uma aluna querida que se tornou amiga. "Assim como o cinzel, a caneta", foi o que pensei de imediato, porque o assunto era esse mesmo, a escrita, e o instrumento na imagem é um cinzel. Dentro dele, o corte. A palavra cinzel (que só de si já é linda, sonora, experimente falar em voz alta) deriva de cisellum, que era para os latinos um "instrumento de corte", derivado ele próprio do verbo caedere - cortar.

Nada alivia mais a escrita do que cortar - cortar excessos, rebarbas, nós, sobras, manchas. O que só se consegue depois de tudo ter posto do lado de fora, depois das palavras terem sido vomitadas, jogadas, lançadas, arremessadas contra o papel. Numa entrevista dada ao jornal O Globo por estes dias, a psicanalista Catherine Millot fala sobre a capacidade que a escrita tem de trabalhar em nós o que não conseguimos dizer. Olho para o que escrevo e penso o mesmo. Se eu tivesse de dizer metade do que escrevo, calava-me. Não só porque ao escrever posso pensar e repensar, posso rasgar, guardar, riscar, mas sobretudo porque posso cinzelar o escrito de ponta a ponta, antes de me decidir a compartilhar com alguém.

O poder do cinzel atua todos os dias, e assim, como diria Catherine se usasse essa palavra, trabalha-me a alma. A justa medida de peso e doçura, a precisão exata da inclinação da lâmina. Corto e corto e corto - às vezes, por capricho, deixo um veio aberto, uma ferida sem cicatrizar, uivando em meio ao escuro. Pode ser que volte mais tarde para acompanhar a sua cicatrização, e pode ser que a exponha ao ar, e espere que os cortes abruptos da vida cicatrizem da maneira como quiserem, deixando as marcas que entenderem, criando desenhos e rugas e peles onde lhes aprouver. A vida, na maioria das vezes, sabe melhor do que nós mesmos.

Por isso, ao escrever, começo por não medir palavras, para que saia o que tiver que sair, da maneira mais poluída, infame, desgostosa, raivosa ou desgraçada que for. Sou eu, ali. Inteira e sem cortes, nem mesmo aqueles que farei depois. Espero dar certo algumas vezes.

Não sei se o pior, nesse ato que é a escrita, seja querermos de imediato a perfeição, ou imaginarmos que a alcançamos em algum momento. A agonia de publicar um livro lateja nesse lugar. Por muito que tenha havido processos, até intermináveis, a imperfeição é tão latente e óbvia que dói. Qualquer um gostaria de ter podido fazer melhor, digo a mim mesma, sem ser grande consolação. O importante, nesse ato de lançar ao mundo algum grau de escrita, é despedir-se das palavras e saber que não são mais suas, penso antes de dormir.

Acho que essa talvez seja a minha maneira favorita de enganar-me e não pensar mais no assunto.

09/02/2020

Potyrom

Hoje foi dia de mutirão no Terreiro Pena Vermelha. Dia de mutirão é dia de unidade. Transcende, porque precisa transcender, os limites rasos do tempo e do espaço. Unitas, a palavra latina de onde deriva a nossa palavra unidade, refere-se a tudo aquilo que, se dividido, corre o risco de destruir ou alterar a própria essência. Por isso é tão importante buscar-se uma unidade, mesmo à distância, mesmo na não-presença física: para que não destruamos ou alteremos a essência.

As línguas, como as pessoas e os povos, evoluem. Absorvem coisas daqui e dali, se movimentam e modificam, como seres vivos que são. Ao falarmos, falam em nós íberos, celtas, fenícios, cartagineses, godos, visigodos, árabes, latinos; dizemos cafuné, fubá, cacimba, cachaça, inhame, camundongo, miçanga e zumbi - e resgatamos de longe toda a diversidade africana que nos habita.  Buscamos no mandarim o chá, nas indianas marati e malaiala o bambu e a canja, tomamos emprestados os pires à Malásia e os biombos às terras do sol nascente. Somos feitos de muitos povos, todos eles nossos ancestrais, que honramos mesmo sem saber que o fazemos, ao pronunciar-lhes as palavras. Quem pode duvidar do quanto somos plurais e diversos?

A palavra mutirão é uma palavra tupi. Deriva de potyrom, e este, por sua vez, de , que é mão. Mutirão pede soma: potyrom significa todas as mãos juntas. Não pede pensamentos nem palavras, nem opiniões nem discursos complexos - mutirão pede as mãos que trabalham juntas, e constroem e abrem caminhos e plantam e colhem e semeiam e tornam a colher.

Quando eu cheguei, já estava o mutirão fechado (porque tudo o que se faz junto precisa de abertura e fechamento, para não deixar ninguém à deriva ou à toa), mas a sua presença, dessas mãos todas em unidade de trabalho, ecoava por todos os lados. Os que estiveram de corpo e alma presentes, e os que estiveram em alma, dando sustentação e força às mãos físicas que puderam estar - todos se respiram nesta mata que nos diz "cheguem, cheguem mais, estamos à vossa espera".

Neste domingo de Lua Cheia, não poderia haver nada de mais importante para fazer. A mata canta feliz e a chuva tamborila no telhado. Como dizemos sempre que trabalhamos: somos gratos, Senhor, por quanto nos dás.


22/09/2019

Tempo a não perder


Aprende-se com Quitéria a arte de dizer das coisas o que elas são. Sem complacência. Seu único olho vê mais da vida do que os dois que teve. É ela quem diz, e acrescenta: na época em que tinha dois olhos, os caminhos apareciam dobrados. 

Quitéria perdeu a vista direita numa distração que quase lhe custou a vida. "Mas vê tu", diz ela, "não teria aprendido a olhar as coisas pelo lado de serem vistas se de outro jeito fosse, por isso te digo que tanto faz o tamanho da desgraça. Cada uma que chega é pra mostrar o que não se sabe, ninguém tem motivo pra reclamar de estar vivo".

Há um desencanto morno na fala de Quitéria, como quem viu muito da miséria humana em ação. Não a miséria de não ter o que comer ou o que vestir, mas a miséria de ser menos do que se pode ser. A miséria de ser mesquinho, sobretudo. 

Quitéria não guarda muitas ilusões sobre os seres humanos. Por experiência própria, sabe que as pessoas tendem à displicência, e essa ela não perdoa. "Vocês não durariam um dia na caatinga", diz sem sorrir. "A primeira bala perdida já os atingiria – como vos atinge o primeiro pensamento daqueles que invejam, debocham, desconfiam, desprezam. É preciso andar de sentidos abertos, e evitar o que é pra ser evitado".

Não há falsidade no entorno de Quitéria. Há humor, e muitas vezes ela ri, uma risada que soa por dentro como cristal estalando debaixo de sol quente. Não é o riso alegre e leve do povo da Bahia, nem o riso paciente e amoroso dos velhos curvados. Quitéria ri o riso de quem acaba de morder um jiló amargo, e olha para o reino humano ora com relutância, ora (mais frequente) com extraordinária falta de paciência.

“Recado dado, tarefa cumprida” é a sua missiva. Quando mal-entendida, ou quando as suas palavras são levadas pouco a sério, ou quando a pessoa está tão perdida dentro de si que sequer consegue escutá-la, Quitéria dispara. Nessas horas, é capaz de pegar a sua cartucheira e batê-la no chão, com a força que colocaria numa espada caso a tivesse. Assim como anuncia a sua chegada com o cheiro de pólvora recém queimada e o estampido de 50 balas cortando metálicas o espaço, assim rodeia a falta de inteireza alheia com a secura agreste do couro.

Quitéria está entre aqueles que me vigiam. Chegou quando eu fiquei pronta para conhecê-la. Fosse antes, teria sido reduzida a pó. Quitéria não se ajoelha, Quitéria não usa máscaras, não propõe a guerra e vem de peito aberto. Se aquilo que a recebe não está à altura, tem as armas prontas, e dispara sua Palavra na direção do coração do outro, certeira como um bisturi afiado. Quitéria se enfurece, numa espécie de fúria santa, com aquele que já sabe, e ainda assim erra. Se tem algo que Quitéria não perdoa é o pouco caso com aquilo que é obrigação de gente.

Conhecer Quitéria não é caminho raso, nem rápido. Ela não tem pressa. Tem urgência quando é de se ter, mas não pressa. Está pouco preocupada em que se goste ou não dela; aliás, acho que ela prefere que não se goste, para que não sejam corações amolecidos que a guardem. Prefere a construção lenta, e por isso se desdobra lenta – encara quem a teme, quem a respeita e quem a admira com o mesmo olhar e a mesma altivez. Não é dada a explicações, é dada a dizer o que as coisas são. A outra parte, diz ela, é tarefa do ouvido de quem ouviu. E o tempo se encarrega do resto, e Quitéria sabe, e por isso não se apressa. Cronos e Kairós são a mesma coisa dentro dela. O que muda é a certeza inabalável que tem de que a vida está aqui para ser vivida, feita, amassada e assada como pão, e por isso digo que não acalenta ilusões. Sabe dos limites que pode um ser humano, sabe o quanto não se muda ninguém, mas sabe também que a decisão interna provoca revoluções. E por isso urge: "para quando, a tua mudança?" E a pessoa responde: "é verdade, fui ingênua". E Quitéria responde: "Não foi, tu foi é besta".

Indulgência e displicência são palavras que Quitéria não usa, ao contrário de Vó Chica, que em seu amor macio e doce nos leva pela mão à compreensão das coisas. Quitéria está em outro lugar. Considera que já aprendemos, de tanto ouvir a sábia Chica. E cobra. Dura e prontamente. "Não veio ainda? Não fez ainda? Continua a mesma coisa? Para que fazer perder meu tempo então? Se tu não muda, não vou ser eu que vou te fazer mudar."

Trabalhar com Quitéria é ter a segurança de que nada ficará encoberto, sem revisão. Muito pouco ela deixa passar, e quando deixa é porque mais adiante vai laçar, quase rindo de eu ter achado que ela teria passado sem ver, ou (pior) que não tivessem importância as coisas que têm. Por isso, se algo Quitéria me ensinou foi a agir sem ter todas as explicações, e a saber na pele que hora de correr é de correr, e hora de enfrentar é de enfrentar. "E preste atenção", diz ela que não quer as coisas pela metade, "a hora não é eterna: se não se aproveita o degrau do tempo, perde-se a escada inteira".

Quitéria é atenção plena, é raio faiscando o ar, é trajeto certeiro de bala. Não erra o alvo porque não se distrai, e não se distrai porque pagou com a vida a própria distração. Por isso seu amor nos atinge em cheio. Porque ela sabe. Ela sabe o que é titubear. O que é relutar. O que é esse campo traiçoeiro da ingenuidade, que nos faz imaginar que o que não muda, mudará, que o que não tem, terá, que o que nos machuca um dia nos amará. "Acorda", diz Quitéria, "e vai se olhar no espelho. Vê se quem te olha do outro lado é quem você quer ser do lado de cá. Não adianta trocar o espelho, o que adianta é trocar dentro de ti o que não te vale a pena". Quem com ela conversa, espera ao final um até logo, algum sinal de despedida. Quitéria frequentemente se esquece das regras da boa convivência, dos protocolos da civilidade. A pessoa pisca, e Quitéria já se foi. O que tinha a fazer foi feito, não há mais tempo a perder.

16/09/2019

Comunidade-terreiro

Vó Chica tem formas muito suas de indicar caminhos. Não é bem paciência com os outros, mas antes um respeito imenso pela forma como cada um escolhe viver a própria vida. Isto é: bem antes de pensar em ser paciente, a impressão é de que observa e busca o momento e lugar exatos em que existem olhos e ouvidos abertos.

Viver em comunidade-terreiro demanda esses olhos e ouvidos abertos. Nesse grupo de pessoas que se reúne numa busca espiritual comum, há um lugar a alcançar que não é individual, e nem coletivo. É um lugar onde a harmonia e o fluxo da vida se manifesta pelo encontro de todos com um todo indefinível. Esse todo pode ser indefinível, mas se materializa em ritos, ritmos, preceitos, ordenações. O ritmo ordena a nossa forma no espaço e no tempo, e os preceitos, como bem diz Rudolf Steiner, nos dão as forças necessárias para permanecermos vigilantes. Estar vigilante é estar atento, antes a nós próprios que aos outros. É vigiarmos nossos pensamentos e nossos sentimentos exteriorizados, as emoções. É vigiarmos as nossas palavras, e logo depois nossas ações. É permearmos de consciência cada um pedacinho de nós, sem que com isso precisemos gastar tempo e esforço, porque a disciplina do ritmo abre portões gigantes para que um fluxo se instale. Sem a disposição para aqueles olhos e ouvidos abertos, nem valerá muito a pena pertencer a uma comunidade-terreiro, porque o esforço parecerá excessivo e o fardo pesado demais a carregar.

Vó Chica ri-se quando digo do quanto é importante lembrarmos que vivemos todos sobre o mesmo chão, o mesmo planeta. Diz-me assim: "Filha, é claro que é importante. Mas mais ainda é vocês se lembrarem que aqui é lugar de passagem, e que outros depois virão, e também para eles será uma passagem. Não se esqueçam de que estão aqui, mas não são daqui. O que ficará não se chamará mais "meu corpo", e será casca, casca verdadeira. O ser que pulsa, e que é eterno e impermanente ao mesmo tempo, estará solto, e logo quem sabe se em outro chão. Este chão, como qualquer outro que seja passagem, pode tornar-se prisão ou campo fértil. É preciso conseguir separar, no pensamento, umas coisas das outras, e saber, sem conseguir explicar como, por onde andar e como, a que dar a valor e quando, o que fazer sem que ninguém lhe diga nada. Sem essa disposição, será difícil perceber por onde caminhar.

Viver em comunidade-terreiro significa perceber a flor seca e dar-lhe água, a poeira ao canto e buscar a vassoura, o vaso quebrado e cuidar de que haja outro. Sem que sejam precisas palavras nem ordens. Numa comunidade-terreiro, caminha-se para outros lugares. Busca-se a ordem precisa e a limpeza exata. Não por elas, mas pela necessidade de beleza e ritmo que a própria vida ao mesmo tempo oferece e pede. Numa comunidade-terreiro vive-se a possibilidade de olhar para si mesmo de forma diferente, experimentar formas distintas de lidar com o outro e com a tarefa da vida. Numa comunidade-terreiro, não se está apenas por si, mas pelo outro que acorre em aflição e angústia. Junto aos que nos guiam e a nós se oferecem em trabalho de puro coração, podemos esquecer-nos de nossos pequenos corações e ingressar nesse coração maior que é o coração de Deus.

Numa comunidade-terreiro, existe o silêncio. Assim como a gargalhada e a piada alegre, o momento solene e as lágrimas nos olhos. Mas o silêncio interno, esse que permite que ouçamos "o ressoar das planícies no vazio", como diz Sophia de Mello Breyner Andresen, ou "a consciência atenta que dos confins do universo me decifra e fita", esse silêncio não tem palavras que o descrevam, e vive pleno em cada oração, em cada canto, em cada sintonia de aproximação aos mundos espirituais. Com esse silêncio, vive dentro de nós a entrega, e a possibilidade de deitar-se ao comprido diante de Deus e dizer-lhe aqui estou, toma-me em tuas mãos e ajuda-me a ser uma pessoa melhor.

Vó Chica mergulha em água salgada os potes de louça que cada um preparou, em um desses vários ritos que servem para nos estabelecermos melhor em nosso caminho de autodesenvolvimento. Pede, logo a seguir, que cada um retire o seu, e com esse gesto entrega a cada um de seus filhos e filhas um instrumento para concretizar sua união com o mundo espiritual. Como ela mesma disse, não é Deus ou seus Orixás que precisam da louça, mas nós. E também a intenção precisa ser nossa. Nessas horas, ressoa um infinito amor dentro do meu peito, e os véus se descerram e há uma trilha extensa entre nós e esse lugar do cosmos a que damos o nome de Oxalá, e que responde por todos os caminhos da Fé. 
- Quando ela faltar, diz Vó Chica antes de partir, - essa confiança que tudo contém, entrem no silêncio do coração de Oxalá, o silêncio que vive dentro do pote de louça, vossas intenções guardadas na mais pura intenção do coração.

09/06/2019

Pentecostes de Oxalá

O ano é 1296 e a vila é Alenquer. O dia é como o de hoje, 50 dias passados da Páscoa. Dia de Pentecostes. A rainha de Portugal, Isabel, já então apelidada de santa pela sua dedicação a minorar a fome dos pobres, convence seu marido D. Dinis a uma festa bastante particular: um dos mais pobres há de receber a coroa e o lugar do rei, passando a presidir um Império. 

A festa do Divino Espírito Santo, mais do povo do que da Igreja, é a festa onde todos podem ser coroados, onde se distribui a abundância da época da colheita do hemisfério norte: pão, carne e vinho povoam as ruas de todas as freguesias açorianas, tabuleiros de pães correm as ruas de Tomar, festas em honra aos mistérios do Espírito Santo, o Divino, espalham-se por todos os lugares por onde passaram portugueses, das ruas de Boston aos caminhos à beira mar de Florianópolis. O Divino faz-se presente.

Isabel pensava numa oferenda, certamente. Invocava a intervenção divina para resolver o problema da sucessão ao trono. Seu marido preferia o filho bastardo, o que redundaria em mais uma guerra ibérica. Fazia-se necessário manter a sucessão através de Afonso, filho de ambos, e que viria mesmo a ser o rei Afonso IV. Isabel, como já fizera em outros momentos, dirige-se a esse lugar do invisível e pede. Oferece. Isabel era uma rainha piedosa. Desconfio que não haja criança portuguesa que não tenha ouvido a lenda dos pães transformados em rosas quando interpelada pelo rei sobre onde ia e o que levava. D. Dinis passou à história como forreta e a Rainha Isabel foi canonizada em 1625. Isabel distribuía pão a quem não tinha, peregrinava a Compostela, e, já viúva, recolheu-se ao convento de Santa Clara de Coimbra, lá mesmo onde se inventaram os famosos pastéis, de onde saiu apenas uma vez mais na vida.

As oferendas, desde que o tempo é tempo, reconhecem que a origem do que temos é divina. Ao apresentar qualquer elemento como oferenda, antes mesmo de pedirmos alguma coisa, reconhecemos que aquilo que oferecemos não é nossa criação. Se estivermos conscientes disso (e o problema é que metade do que fazemos é na inconsciência, quando não na ignorância), fechamos os olhos e baixamos a cabeça, em reconhecimento à origem divina de tudo o que nos rodeia, e de nós mesmos. Na gênese de qualquer forma de oferta ao mundo espiritual, sejam palavras, sejam cantos, sejam frutas, flores, festas, viagens - o que fazemos é reconhecer profundamente a nossa própria existência não terrena. 

Neste dia de Pentecostes em particular, Isabel está presente outra vez, lembrando-nos de que o que temos é de todos; que todos têm a sua própria coroa, onde vem pousar a pomba da paz. Entre os símbolos do Divino Espírito Santo estão a pomba e a coroa. Oxalá, orixá da criação do mundo, da sabedoria dos anciãos, da ligação entre Céu e Terra, ostenta a sua coroa e no alto de seu cetro, o Opaxorô, pousa a mesma pomba.

Jesus, em sua época, recolheu-se ao deserto durante 40 dias como forma de se preparar para o seu destino; após seu retorno crístico, manteve-se junto aos apóstolos e apóstolas por mais 40 dias. Após finalizar a sua missão terrena, em seu nome aqueles que o seguiam recolheram-se ao cenáculo. Prepararam-se para a chegada dos frutos, e estes vieram dentro de imagens, nos símbolos do fogo e do ar. Línguas de fogo e forte vento. Pentecostes nos lembra da necessidade de nos prepararmos para o encontro com o divino, esse encontro íntimo que é no fundo o encontro conosco mesmos. 

Podemos abrir-lhe a porta descuidadamente, passar por ela sem lhe prestar atenção, sequer perceber o que a atravessa e entra em nós. Ou podemos dedicar-nos, fazer silêncio e ofertar todo o nosso ser, reconhecendo a nossa existência para além deste veículo que nos transporta na Terra. Neste fogo e neste vento, na pomba que voa e pousa em nossa coroa, nosso mais elevado centro energético, caminham juntas a liberdade e a responsabilidade. O que fazer com ambas, só cada um com cada um.

Imagem: Nicholas Roerich (Rússia, 1874-1974)

19/05/2019

Estar acordado

(Ao amigo querido que anda a embrenhar-se pelos territórios vastos da origem das palavras. Um prato cheio, posso dizer-lhe, cheio de boas tentações, e sustos pelo meio. Ao longo de anos nesses campos, sei que encontramos as palavras que nos respondem quem somos e onde estamos. E, às vezes, isso pode não ser tão agradável quanto pareça à primeira vista. Se, por um lado, as palavras nos fazem sonhar, por outro pôem-nos a sangrar.)



A palavra de hoje, vigília, foi pedida há alguns dias. Para que fosse praticada, e com consciência, que é o que nos deveria mover de um lugar ao outro nestes tempos. Saber o que se faz. Vigilia é o oposto de estar a dormir. A sua raiz latina gira em torno do prestar atenção. Aquele que está em estado e atitude de vigília é aquele que está acordado, que cuida, que vigia. Pela origem mais antiga, no indo-europeu - weg, chega-se ao ser ativo, ser forte. A mesma raiz deu também origem à palavra que nos faz rápidos, vivos e velozes: -velox.

A Casa de Umbanda que tenho a honra de dirigir está, durante as próximas semanas, em atitude de vigília. Todos os dias, às 13h e durante meia hora, as pessoas reúnem-se para exercitar o estar acordado, ativo, em posição de cuidado. Com consciência e com disciplina, dia após dia somos chamados a esse treino que, por arte de mágica, se estende ao resto das horas do dia. Nem sempre vêm todos, nem sempre se está confortável. Um dia após o outro, como deve ser, tentando ser melhor que ontem e pior que amanhã.

O mundo espiritual, e a vivência religiosa, permitem dessas coisas. Que se treinem atitudes e posturas na direção de um mundo novo, e isso modifica o aqui e o agora, a relação que tenho comigo mesmo e a relação que cultivo com o outro. A Umbanda, e acredito que todas as religiões, é para ser vivida todos os minutos do dia. Modificar quem somos, melhorar aquilo que fazemos nem sempre é fácil; na maioria das vezes, é bom ter ajuda.

A vigília é uma dessas ajudas. Um chamado para parar e estar atento. Prestar atenção aos seus movimentos, às suas ansiedades. Escolher desligar-se das comuns obrigações e simplesmente estar. Lembrar-se de estar. Até forçar-se a vir. Encontrar o tempo de juntar-se a si mesmo para caminhar na direção de ser uma pessoa melhor - mais aberta, mais alegre, mais solidária, mais afetuosa, menos julgadora, menos preconceituosa.

Nesta vigília que nos foi pedida, dizem-se orações e cantam-se canções. Não é preciso mais do que isso, porque a intenção é abrir os canais do coração, cultivar essa paz que tanto queremos.

Gandhi dizia que a oração dita em voz alta faz abrir-se o coração. Por isso, as vigílias dizem orações. As vigílias cantam. As vigílias contemplam. Abrem o centro cardíaco do nosso ser à vivência do que não é palpável. Pedem-nos disciplina, abertura e entrega; preparam o futuro, e aqueles que podemos vir a ser.



16/03/2019

Se Deus é Onipotente e Onipresente, por que precisamos dos Espíritos para chegar até Ele?

Na tarefa de educador, ouvir perguntas é indispensável. Podemos preparar uma magnífica aula, mas ela depende de quem está junto, de quem tem sede de conhecimento, de quem tem curiosidade e a expressa. Ninguém dá aula para o vazio. Alunos que dormem em sala de aula estão alheios, falta-lhes curiosidade? Pela vida, certamente que não - quando podem, conversam pelos cotovelos! Têm as suas indagações internas, suas angústias, seus medos, sua necessidade de saber. Conseguir equilibrar aquilo que se quer dizer com aquilo que quem está presente quer e precisa ouvir é talvez a maior tarefa de qualquer educador. Abrir espaços para perguntas é uma atitude interna que demanda ter interesse pelo que o outro quer dizer e quer saber. Na verdadeira educação, os limites engessam, foram feitos para ser expandidos e movidos de lugar.

A pergunta que dá título a esta postagem foi feita por escrito durante um espaço-tempo de aprendizagem sobre Umbanda. É um desafio, responder a perguntas não programadas. Mas é justamente aí que novo conhecimento pode surgir, nutrindo a todos. Vale para qualquer aula, especialmente quando se entendem os espaços de aprendizagem como espaços de troca, de pesquisa, de dúvida e de busca de respostas.

Então vamos a ela: "Se Deus é Onipotente e Onipresente, por que precisamos dos Espíritos para chegar até Ele?". É uma incrível pergunta, do tipo que faz pensar, pedir auxílio por respostas que não sejam as prontas. O melhor de tudo é que elas, as respostas, vêm, intuições com cheiro de sálvia fresca, um adocicado de tabaco perfumado com alfazema e alecrim bem ao fundo. O Espírito de Vó Chica é um primor nessas horas.

Se Deus é Onipotente e Onipresente, significa que tudo pode e em todo lugar está. Inclusive dentro de nós, ao nosso redor, dentro dos nossos amigos, dos nossos inimigos, daqueles que gostamos mais e daqueles que detestamos. Se tudo pode, pode comunicar-se conosco, e pode também querer que nós nos esforcemos para nos comunicarmos com ele. Na sua infinita sabedoria, esse Deus (que podemos chamar de muitos nomes, de Consciência Cósmica, Fagulha Inicial e um enorme etcetera) está contido e contém ao mesmo tempo. Difícil abarcá-lo, difícil perceber a sua presença (que pressupomos), a sua atuação, o seu lugar. A trilha da evolução abre-se diante de nós em nossa condição terrestre cheia de limitações, e todos precisamos, aqui e ali, de auxílios para caminhar por ela,

Os Espíritos que se dispõem à tarefa de nos auxiliar são seres em evolução que, por livre e espontânea vontade ou aceitação, se oferecem para nos auxiliar nesse caminho. Não são propriamente intermediários desse Deus que tudo contém e em tudo está contido - ou o são também, visto que Deus os habita e é habitado por eles. A sua tarefa maior é oferecer-nos ajuda para nos encontrarmos dentro do burburinho que somos, o que equivale a encontrarmos dentro de nós o próprio Deus vivo. Com a sua ajuda, seus exemplos, seus conselhos, suas recomendações; com seus banhos de ervas, seus pedidos de acendimentos de velas, seus passos energéticos - o que os Espíritos fazem é nos ajudar a entrar em sintonia e equilíbrio conosco mesmos, para que possamos perceber e sentir a presença de Deus.

A tarefa é portanto nossa. Já se foi o tempo em que íamos à igreja porque a família inteira ia, em que rezávamos porque a tradição era assim e o movimento do todo nos auxiliava nesse direcionamento para o Divino. Hoje, as pessoas buscam uma relação com Deus porque querem, porque faz sentido, porque algo as impulsiona nessa direção. Depois desse desejo primeiro, impulsionador do querer, o que há pela frente é dedicação e trabalho. Deus está à nossa espera, mas dificilmente o rio muda seu curso para satisfazer a nossa pequena necessidade. Será mais fácil nos movimentarmos em sua direção para o encontrarmos e nos podermos banhar em suas águas serenas, conscientes do quanto somos nós os responsáveis pela nossa própria evolução. E aos Espíritos, seremos gratos, por se disporem a nos ajudar, generosos, humildes e retos.

13/03/2019

Quaresma e Umbanda

A noite no terreiro, quando a cidade dorme e silencia, é permeada pelas velas acesas no congá. Como presenças divinas que são, lembretes tremeluzentes da luz que existe dentro de nós, transmitem a calma e a paz necessária à reflexão profunda. Muletas?, questionam alguns. Vó Chica diz que não: velas são intenções firmadas, tornadas visíveis nesse mundo de matéria em que vivemos, iluminações de nós mesmos fora de nós. Por que negar sermos o que somos?

Neste tempo de Quaresma, o recolhimento do congá parece assumir outro aspecto. Vó Chica sorri quando penso essas coisas: ela sabe da minha formação católica, e não se incomoda nem um pouco com a maneira como transpira em mim o ser do espírito, livre de nomes que eu dê. E diz mais uma vez: para que negar ser o que se é? São Francisco, a seu lado, aspira o primeiro ar da manhã, e de repente os passarinhos cantam lá fora e me acordam de vez. Dia e noite, noite e dia, o mundo avança.

A Quaresma, sai ano entra ano, é questão que divide/incomoda/inquieta a religião umbandista: devem celebrar-se (ou não) os ritos cristãos dentro da Umbanda? Há templos que não atendem durante esse período, linhas de trabalho a quem algumas casas não abrem as portas de atuação, criam-se penitências de vários tipos - como religião congregadora, é natural que a diversidade impere, e assim como há casas que celebram a quaresma de forma bastante católica, também as há que se distanciam das práticas de outras religiões. Com o passar do tempo, essa flor que o Caboclo das Sete Encruzilhadas fez brotar na mesa farta e ampla das religiões do mundo, vai criando espaços próprios, livres e abertos à profissão da fé de cada um. É bom que estejamos atentos à nossa vontade de cartilhas e manuais, que nos apontam caminhos mas que correm o risco de nos aprisionar dentro deles e não conseguirmos mais ver a realidade. O cultivo da consciência, amparado pelo estudo e pelo conhecimento, é quem realmente nos liberta.

A Quaresma vive no ano litúrgico cristão como um tempo de busca da reconexão com o Cristo, de forma mais intensa do que durante o resto do ano, preparando a vivência pascal, da ressurreição e da materialização do Cristo Cósmico como regente da Humanidade. Esse tempo é celebrado em todo o planeta, porque é a todo o planeta que a essência divina do Cristo se liga, ainda que varie de nome.

Dentro dos preceitos católicos vivem várias práticas, mais ou menos antigas, que visam esse reconectar-se; a vivência das cinzas, por exemplo, como purificação, como percepção da transitoriedade, como aceitação da nossa condição humana terrena e finita. As cinzas relembram-nos que somos pó e ao pó voltaremos, e nos convidam a perceber se o que fazemos, pensamos, dizemos e sentimos entre um pó e outro vale a pena e nos aproxima ou não de quem somos em essência.

Há várias maneiras de fazer esse movimento, e a liturgia umbandista, que depende e varia de casa para casa, vale-se de muitas coisas. Seja neste tempo ou em outro, é preciso escolher momentos de recolhimento, de "olhar para dentro" para conferir o caminho trilhado. Por um lado, recolocar  no lugar correto o que tiver se desviado. Por outro, organizar as necessárias correções de rota, à luz dos aprendizados do tempo. A Quaresma presta-se a esse movimento.

Na sua pessoal preparação para a Páscoa, Jesus retirou-se durante quarenta dias para o deserto, sendo tentado diversas vezes por espíritos que se empenhavam em levá-lo para outro destino que não o seu. Podemos imaginá-lo olhando o seu destino, com a coragem que demanda, colocando as coisas em seu devido lugar, dentro e fora dele. As tentações fortalecem-no, como podem fortalecer-nos as nossas, se tivermos coragem suficiente para percebê-las como tais e fazer-lhes frente. Redobrar a vigilância? Fazer penitência? Individualmente, como cada um quiser. Do ponto de vista de uma comunidade de Umbanda, o que se redobra é a necessidade de acolher e ser acolhido, de escutar e ser escutado, de amparar e ser amparado. É nesse lugar, do Amor e do Afeto, que se firma e funda a fé, e é a ele que retornamos, em profunda reverência, gratidão e busca do exercício pessoal necessário. Por isso, hoje, em muitos terreiros,os trabalhos são mantidos, porque talvez seja este um momento de maior necessidade, e por isso mesmo demande mais ação, mais abertura de coração, mais mãos estendidas. Cuidados? Sim, com certeza - com o próprio pensamento, as próprias ações, com as vibrações com as quais nos permeamos, as companhias que escolhemos, as distrações que aceitamos, os caminhos que escolhemos para o nosso dia. Vó Chica, que definitivamente não se prende aos nomes que damos às coisas espirituais, me assegura que estes quarenta dias são um bom período para nos olharmos mais a fundo, mais no cerne, percebendo-nos como seres espirituais sujeitos à temporalidade do corpo físico, necessitados de um campo de disciplina que nos ajude a não perder tempo. Só isso já nos fortalece no cultivo da humildade. da aceitação e da entrega.

Imagem: https://steemit.com/life/@blessme/helping-hand

11/03/2019

O ronco e o raio


Vó Chica, quando olha para dentro dos olhos das pessoas, vê coisas que os nossos olhos comuns não veem. Às vezes, até, mudam a forma externa para que se pareça mais o que se vê com o que se é de verdade, sobretudo quando tentamos a todo custo esconder aquilo e quem somos. Outro dia, a conversa dela dizia mais ou menos assim.


"Filha, você precisa prestar mais atenção nas coisas à sua volta, e olhar para elas da maneira correta. Senão, você acaba não vendo nada por querer ver tudo de uma vez só. É sempre um passo de cada vez - um, e depois o outro. Não ajuda nada andar a dar pulos com os dois pés ao mesmo tempo. É como um rio, que começa é riozinho, e depois é que vai engrossando, engrossando, até chegar ao fim. E no meio desse tempo, o que é que ele faz? Ele corre, ele se deita sossegado parecendo que nem se mexe, ele salta por cima das rochas de nosso pai amado Xangô, ele lambe as beiradas das matas, vai se espreguiçar nas areias das curvas longas que faz, quando já cansou de ser rio e quer ser mar.

Pois então, olhar as coisas tal qual elas são. Igual esse céu aqui por cima de nós (e Vó Chica põe a sua mão calejada de anteparo nos olhos, e eu estranho, porque é de noite, estamos debaixo de teto, mas Chica vê tudo e longe, e eu vejo junto com ela esse telhado que e repente se transformou em amplidão de sidério). Esse céu, olha lá, filha. Tem vez que ronca e vez que relampeia, não é? E você escuta o que, filha? O ronco ou o raio? Se for querer escutar o raio e ver o ronco, não vai conseguir saber de coisa nenhuma.

Para cada coisa da vida é preciso o sentido correto. Se é de ver, é com os olhos. Se é de escutar, é com os ouvidos. E tá um mais certo do que o outro? É claro que não! Cada coisa se percebe com aquilo com que pode ser percebida. E a vida fica mais fácil quando a gente se humilda assim e se curva diante de Nosso Senhor Pai Oxalá, e pede a bênção e a inspiração pra fazer as coisas do jeito que ele mesminho pensou, antes de nós estarmos aqui. Se fez o raio pra ver, pra que é que nós vamos querer escutar? E pois ainda tem pessoa que quer ver, e se tumultua tudo, e à família também, porque quer que as coisas sejam do seu jeito, e não do jeito que são.

E eu falei em humildade, filha, porque não tem coisa melhor. Quem cultiva a humildade, colhe paciência e aceitação. E quem tem paciência e aceita as coisas sabe muito bem quando que é dia de gritar e quando que é dia de calar, e não fica gastando a vida à toa batendo cabeça nas portas que só vão abrir é mais de tarde, quando o sol se põe e a vigilância do povo adormece. Aí sim, filha: aí é hora de agarrar a maçaneta da porta e abrir igual vendaval.

O que eu mais quero, filha, é que você fique bem perto das coisas divinas, porque foram elas que me ensinaram a ser quem eu sou, que é o que eu já era antes de vir pra esse mundo e sair dele. É tudo mais simples do que você às vezes pensa, e o mais é a espera, que pode ser dolorosa, se for combatida, mas pode ser descanso, se for acolhida dentro dos braços como se fosse um recém-nascido, igual esses que a gente colhe assim que escorrega da Mãe."