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02/03/2020

Cinzel




















Tenho há muito tempo esta fotografia guardada, presente de uma aluna querida que se tornou amiga. "Assim como o cinzel, a caneta", foi o que pensei de imediato, porque o assunto era esse mesmo, a escrita, e o instrumento na imagem é um cinzel. Dentro dele, o corte. A palavra cinzel (que só de si já é linda, sonora, experimente falar em voz alta) deriva de cisellum, que era para os latinos um "instrumento de corte", derivado ele próprio do verbo caedere - cortar.

Nada alivia mais a escrita do que cortar - cortar excessos, rebarbas, nós, sobras, manchas. O que só se consegue depois de tudo ter posto do lado de fora, depois das palavras terem sido vomitadas, jogadas, lançadas, arremessadas contra o papel. Numa entrevista dada ao jornal O Globo por estes dias, a psicanalista Catherine Millot fala sobre a capacidade que a escrita tem de trabalhar em nós o que não conseguimos dizer. Olho para o que escrevo e penso o mesmo. Se eu tivesse de dizer metade do que escrevo, calava-me. Não só porque ao escrever posso pensar e repensar, posso rasgar, guardar, riscar, mas sobretudo porque posso cinzelar o escrito de ponta a ponta, antes de me decidir a compartilhar com alguém.

O poder do cinzel atua todos os dias, e assim, como diria Catherine se usasse essa palavra, trabalha-me a alma. A justa medida de peso e doçura, a precisão exata da inclinação da lâmina. Corto e corto e corto - às vezes, por capricho, deixo um veio aberto, uma ferida sem cicatrizar, uivando em meio ao escuro. Pode ser que volte mais tarde para acompanhar a sua cicatrização, e pode ser que a exponha ao ar, e espere que os cortes abruptos da vida cicatrizem da maneira como quiserem, deixando as marcas que entenderem, criando desenhos e rugas e peles onde lhes aprouver. A vida, na maioria das vezes, sabe melhor do que nós mesmos.

Por isso, ao escrever, começo por não medir palavras, para que saia o que tiver que sair, da maneira mais poluída, infame, desgostosa, raivosa ou desgraçada que for. Sou eu, ali. Inteira e sem cortes, nem mesmo aqueles que farei depois. Espero dar certo algumas vezes.

Não sei se o pior, nesse ato que é a escrita, seja querermos de imediato a perfeição, ou imaginarmos que a alcançamos em algum momento. A agonia de publicar um livro lateja nesse lugar. Por muito que tenha havido processos, até intermináveis, a imperfeição é tão latente e óbvia que dói. Qualquer um gostaria de ter podido fazer melhor, digo a mim mesma, sem ser grande consolação. O importante, nesse ato de lançar ao mundo algum grau de escrita, é despedir-se das palavras e saber que não são mais suas, penso antes de dormir.

Acho que essa talvez seja a minha maneira favorita de enganar-me e não pensar mais no assunto.

13/06/2017

Trilhos


Um aluno entra aflito pela porta do Quinta Palavra hoje cedo. Diz-me Ana, não consigo mais escrever. Não consigo mais ter ideias. Não consigo mais que palavras fluam de dentro dos meus dedos, como você já me fez acreditar. Não, não é bloqueio passageiro, nem tente: é fato dito e consumado. As palavras já não me aparecem de manhã cedo, nem correm (andando já seria bom) na minha direção. Já fiz de tudo, e o fato é um só: tudo o que escreva tem alguém que está escrevendo. Não, não é que tudo já foi escrito. É que tudo está sendo escrito! Alguém, algum lugar, está tendo as minhas mesmas ideias e escrevendo as mesmas minhas palavras. Para que, então, sentar-me e despejar palavras que outro já tem para si?

Peço-lhe que respire, porque tudo isso foi assim como num jato, um acesso de palavra em vez de tosse. Vamos tomar um chá, que é sempre bom pra acalmar ou entusiasmar os nervos. Diz-me não, preciso ir ao banco, e logo depois ao outro banco, e ainda o supermercado e enfim: preciso trabalhar. E sai, igual chegou, aflito e atapetando a calçada com suas palavras.

Claro que me preocupo. Sei como é difícil lidar com a falta, essa coisa que alguns chamam de "inspiração". Quando não encontramos palavras. Quando só se ergue um deserto de nada diante de nós, papel em branco por todos os lados. Só que não é isso.

Gravei a última parte: alguém deve estar escrevendo o que eu mesmo escreveria. Soa-me imediático, digamos assim. Instantâneo. De onde tira ele que alguém escreve as mesmas palavras que ele? Internet, claro, esse recurso que nos permite estar à distância de um olho de absolutamente tudo e todos no mundo. Hoje cedo, veja bem, conversava com Siddartha, que é professor waldorf, ex-menino órfão com necessidades especiais, no distante Nepal. Sequer sonha em conhecer o Brasil mas conversa comigo como se fosse meu vizinho, e eu com ele a mesma coisa. Não é bem um problema, mas continuo achando estranho.

Procuro meu aluno no facebook, essa vitrine de pequenos nadas.

Ninguém pensaria em bloqueio. Ou em desespero. Aflição. Sua atuação é divertida, um pouco cínica talvez... parece descrente destas coisas políticas (afinal quem não), mas ri-se aqui e ali, ouve música, comove-se com frases de efeito e autoria duvidosa. Aliás: tudo isso muitas vezes. Vezes demais, talvez. Várias postagens em menos de uma hora, e uma hora depois a mesma coisa... Agora mesmo (mas não ia ao banco?!).

Eu me pergunto se Santos Dumont teria voado alguma coisa se soubesse que os Wright andavam tendo as mesmas ideias. Se, entre o desenho de uma asa e um pensamento aerodinâmico, fosse checar ao computador se fulano já lhe respondeu o email do orçamento dos parafusos e aproveitasse pra dar uma conferidinha nos likes do face. Sim, imagino que ao longo do processo tenham sabido uns dos outros (Oswald de Andrade passeando pra lá e pra cá entre São Paulo e Paris levaria e traria sem dúvida notícias, no mínimo), capaz que logo até se encontraram e Dumont não deve nem ter tirado o chapéu para cumprimentar. Nem preciso do google pra saber disso. Mas ali, logo no começo, no momento do gérmen da ideia, quando as chispas voavam no espaço sideral sobre sua cabeça e do Demoiselle só se ouvia o farfalhar das asas... Isolamento e solidão são fundamentais. E não saber de nada pode ser bem bom, ainda que sucumbamos a essa mania moderna de "estarmos informados cof cof cof".

Ontem mesmo, a meio de uma aula, quando um outro aluno de repente exclamou "ah! eu tive uma ideia bacana! vou colocar duas personagens num bar, e vou fazê-las ir pro bar de tempos em tempos, e vou fazer elas criarem uma relação entre elas que só rola ali mesmo, no balcão do bar", eu TIVE que logo alinhar um "já viu Cheers?", e ainda me levantar e ir buscar à estante os dvd's empoeirados com um Sam Malone anos 80 na capa. Quem perguntou? Quem é que estava interessado na referência? Quem precisava saber disso? Mania que temos de relacionar eternamente as coisas, só para sabermos que tudo já foi escrito, tudo já foi inventado, tudo já foi feito. Cheer's ficou aqui na mesa e eu torço para que a minha intromissão não retire vontade ao coitado do aluno.

Procure por "tiny houses" no youtube. Centenas de videos ensinam a projetar, construir e resolver como morar em espaços pequenos que nos retirem dos afãs consumistas e nos projetem na direção de uma vida mais simples, mais leve e mais humana. Fantástico. Procure por "viagens em kombi". Zilhões. Qualquer ideia que você tenha, alguém também teve ou tem, e em 5 minutos vai compartilhá-la na rede.

Pode ser muito útil quando você quer fazer uma coisa. Mas é deletério quando você quer ser e viver de forma criativa. Porque o que já está feito pode retirar-lhe forças - as forças que o levarão a tropeçar nos lugares em que outros tropeçaram. Perda de tempo? Longe disso: aprendizado. É do tropeço que nasce o aprendizado. Sem tropeçar, meu amigo, você não descobre de que matéria é feito seu pé, quais os terrenos que lhe são propícios, quais tipos de fungos o atacam e qual tipo de calçado lhe é favorável.

Espero aquele primeiro aluno daqui a pouco. Rejeitou o chá mas não rejeitou o almoço. E agora eu já posso dizer-lhe duas coisas. Uma, que desligue o wifi. Duas, que não confunda criação com originalidade. Criar é tirar do nada: se você estiver cheio do que já foi dito, feito, escrito, vai encobrir a sua própria palavra. A palavra que sai de dentro de você nunca será igual à que sai de dentro de outro. Portanto: ainda que as palavras sejam as mesmas, os textos sempre serão distintos. E os trilhos de trem da foto ali em cima? Sempre linhas retas de ferro indo na mesma direção, abrindo caminhos e picadas onde era mata fechada. É preciso pisar em cima deles e deixar-se levar, tanto faz se alguém já andou por eles ou não. Quem faz a sua viagem é você.

Boa semana pra todos!


Foto: Daniel dos Santos

31/12/2013

A pele das paredes

O ano acaba com a raspagem da pele das paredes. Para que uma nova tinta possa fixar-se. Uso uma espátula, e vou deixando marcas no reboco antigo. Não é toda tinta que sai com facilidade: é preciso energia e determinação. Há trechos que se agarram com afinco, não se deixam retirar. Em outros, a pele de tinta descama-se, em longas tiras, como pele velha de fato, que não resistisse à ação do tempo e se desvestisse de si mesma. As minhas mãos sorriem, quando isso acontece.

As marcas no reboco olham-me através desse tempo longo de silêncio que se constrói entre as paredes que me cercam e eu. As minhas mãos estão ressecadas, o pó de tinta entranhado em cada poro. 

A pele da parede reveste a pele do meu corpo.

Paro para escrever uma palavra aqui, outra ali. Termino uma parede e vou à tinta. Cal de cores que crio sem pensar. As paredes não me dizem da tonalidade que querem. É um exercício de adivinhação e esperança. Vários tons, várias paredes. A pele é imprescindível, escrevo. Nosso ponto de contato com o universo mais interno da estrutura da casa. A pele é o mais profundo, escrevia Valéry. Seu sentido mais extenso. Sua percepção mais nítida. Gosto das marcas do tempo e da vida na minha pele. Pessoas tatuadas em alto e baixo relevo. A pele da parede não tem afrescos. A minha pele tem - não posso retirá-los, são pura obra de arte, recentes e antigos num tempo presente. Como os afrescos da casa de Portinari, escrevo. As estrelas no céu da capela. Acho que amanhã vou a Brodowski, escrevo. Gosto de projetos. Amanhã vou a Brodowski.

É uma responsabilidade e tanto, cuidar da pele-tinta de uma casa. Não sei se estou apta. Olho a tinta da minha própria pele e esboço a dúvida no gesto. Melhor que ocupe as mãos e desocupe o pensamento. Assim como escrever, raspar paredes é um ato de fé. Na própria capacidade de discernir o que é tinta, o que é reboco; o que é pele, o que é alma; o que é próprio, o que não pertence. Qual a medida das coisas. Qual o tamanho das almas. Qual a frequência do toque. Enquanto isso, e nos minutos que inauguro, os pingos de cal grudam o pó da parede à minha pele.

10/12/2013

Cortinas


Acordo cedo. Talvez as tarefas do dia de hoje tenham me tirado da cama, ou talvez eu precisasse amanhecer de olhos abertos. Pra não errar o caminho. Como diz Rubem Alves no documentário Eu Maior, vão nos acontecendo as coisas que não programamos, e por isso chegamos onde chegamos.

Preciso abster-me, neste fim de ano, de prestar muita atenção à mente inquieta que indaga quais os sentidos, se é que os há, nos rumos que a vida toma. Vou deixá-la passar, à mente, e vou deixar passar os rumos também. Atrás fique o que deva ficar, o que não acompanha, os passos em desequilíbrio. Na vida, como no resto, dá-se o que se tem. Constatação óbvia com que às vezes nos entretemos: as justificativas genéricas não se aplicam a situações específicas, e por isso é preciso cuidado com o equilíbrio entre o que se dá e o que se recebe. Não é bom deixar os outros vazios.

Ontem mesmo, num dos últimos grupos de Escrita Criativa do ano, falávamos de Rubem Alves. Depois de ler um de seus textos, decidimos escrever por associação de ideias, e o ponto de partida foram cortinas. Como uma gota em meio ao nada, uma lágrima que resiste a cair, nem sei se minhas companheiras perceberam, mas as pernas me faltaram. Qualquer coisa à toa, como essas cortinas esvoaçantes na memória, pode me tirar a sensação de ter pernas, e a vantagem é que vou ficando treinada em subir e descer delas. Todos os companheiros de escrita deste ano foram inestimáveis em oferecer-me substâncias, momentos e processos de manter-me em cima das próprias pernas. Sou-lhes grata, nem sabem quanto.

Dessa associação de ideias surgiu o texto que segue abaixo, e que aqui faz as vezes de um convite a que os textos de todos se façam presentes, assim, livremente, sem necessitar que exista sentido. Por associação de ideias, sem compromisso, a não ser com o fluxo da palavra e dos corações em estado de aberto.


"Quando as cortinas da vida se fecharem para Rubem Alves, uma porção de anjos sorridentes estará à sua espera do outro lado. 
Não foi ele quem disse que morrer é estar do outro lado do caminho, mas bem que poderia ter sido. Estar do outro lado do caminho, de vez em quando, seria uma boa distração para quem está do lado de cá das cortinas.
Do lado de lá poder-se-ia, por exemplo, tingi-las com as cores que as nuvens devem ter do outro lado - cores mais etéreas, penumbra mais palpável, menos vincos, menos dobras. Do outro lado do caminho, as cortinas devem ser todas de tecido levíssimo, para que o céu não caia sobre quem ainda não as abriu.
Os santos conseguem atravessá-las, a essas cortinas, quando ainda estão do lado de cá. Deve ser fruto do profundo desprendimento que desenvolvem com os pores do sol, as árvores e a vida deste mundo. Gosto de pensar em desprender-me, mais do que pensar em desapegar-me. Os santos não dão às coisas do mundo a mesma importância que os mortais comuns damos; ficam mais leves, mais transparentes e levitam e flutuam pra lá, e logo depois de volta pra cá. Quando voltam, são capazes de proezas que nós, que não estamos aptos a passear no umbral com tanta naturalidade e franqueza. Como Santa Teresa de Jesus, com o seu "Nada te turbe, nada te espante, solo Dios basta". A minha memória anda perdida atrás das suas próprias cortinas, não consigo lembrar-me do poema inteiro.
Quando Rubem atravessar a cortina, com certeza levará um susto. Talvez espere uma coisa, desconhecida e aterradora, ou desconhecida e iluminadora, e verá que não há nada que já não tenha visto. A verdade é que Rubem anda, há anos, espreitando o outro lado da cortina e trazendo-nos notícias. Só que não sabe disso, e nós apenas intuímos que assim seja."


Feliz terça feira!


03/10/2013

Concha, mar e brisa

"A brisa do mar revolto dentro da concha aberta dos meus dedos": não há nada, em toda a minha vida, que me preencha com a verdade que têm as palavras. Tateiam-me por onde eu passo, oferecem-se nas mãos estendidas dos outros, que às vezes sequer percebem a oferta generosa que me fazem. É preciso que lhes agradeça.

Como concha, mar e brisa, esse presente de três palavras que acabo de receber neste instante, e tão simplesmente. Tenho treinado meus olhos para que não lacrimejem onde e quando não devem, porque as palavras fazem isso com eles, especialmente palavras úmidas, tecidas, inflamáveis; palavras que entram como avalanches dentro de mim e passeiam sem decência pelas minhas  mais internas concavidades. Despertam tatos, lugares do coração, do estômago, das veias, da pele. E os olhos querem transbordar a qualquer custo, porque é preciso deixar sair essa água toda que as palavras fazem catapultar dos meus abismos. Serão saudades da praia, da areia do mar, do calor do sol? Não, é mais fundo do que isso, são motivos que nem mesmo têm memória.

Mas não podem meus olhos lacrimejar - estou quase no final de uma aula. Se ainda fosse a meio dela, poderia até acontecer, porque haveria tempo para digerir. Prometo-me escrever assim que acabe (aqui estou em cumprimento ao prometido), para poder viajar em paz logo mais, sem ser sacudida pelas ondas desses mares que desaguam das palavras. Quero ser rio, hoje, e não mar.

Quando escrevo, automática e espontânea, "a brisa do mar revolto dentro da concha aberta dos meus dedos", não penso. São as palavras que me pensam, são as palavras que me guiam, nessa vida própria que têm e me revelam, a mim mesma, o que a tanto custo tento descobrir pensando. Não preciso, basta que escreva. E mesmo não sendo lida, e quando lida não compreendida, e quando compreendida não abraçada, as palavras permanecem, porque a sua essência é a permanência.

14/09/2013

Entre o antes e o depois

Alguns dos últimos textos deste blog foram contaminados pela raiz daquilo que os fizeram nascer, uma quantidade um tanto acelerada de pensamentos emaranhados. Gênese e forma desdobraram-se em direções múltiplas, e cada desdobramento processou-se como novos feixes de pensamentos superpostos sobre a mesma coisa. Chamei "ideia" a essa coisa, esperando estar de fato dentro de um campo de possibilidades abertas. Quem sabe consigo apreender o gato de Schrödinger em sua condição binária.

O primeiro desdobramento andou em direção a esse gato - explico com as minhas próprias e provavelmente incompletas palavras. A proposta de Schrödinger constata que as ondas de matéria diferem das ondas eletromagnéticas e das ondas sonoras. Enquanto que a equação mecânica de Newton permite que localizemos com exatidão um objeto, a equação de Schrödinger permite que cheguemos a uma pluralidade provável de estados em que o objeto pode estar. Se não podemos observar o objeto diretamente, teremos de supor que o objeto, segundo Schrödinger, se encontra em todos os lugares em que a probabilidade diz que pode estar. Essa constatação faz emergir a ideia de superposição de estados da matéria. A experiência com o gato é uma metáfora perfeita. Coloca-se um gato e um vidro de veneno dentro de uma caixa opaca, à qual se liga um mecanismo de possibilidade de quebra ou não quebra desse vidro de veneno. Dependendo do funcionamento do ativador do mecanismo (e tudo isso muito bem explicado em http://www.youtube.com/watch?v=wRp2AEccks4&feature=youtu.be, num oferecimento do amigo Aléssio), o gato poderá estar vivo ou morto. Enquanto a caixa permanece fechada, e portanto a condição do gato alheia à minha consciência, esse gato está vivo e morto ao mesmo tempo. O meu olhar é que legitima de fato a morte ou a vida do gato. Consequentemente, o instrumento de quebra do estado de superposição (que é o estado quântico da matéria, aquele com o qual interagimos ao jogar dados, moedas, cartas) somos nós; os agentes do mecanismo da decoerência somos nós.

A catraca da bicicleta, nessa foto que meu filho Súria acaba de mandar da longínqua Brighton, mostra-me o mesmo. Tenho uma série de seis possibilidades distintas de encaixe para a corrente que não está lá; portanto, tenho como que seis correntes superpostas, invisíveis, diante dos meus olhos. Assim que uma delas se destacar das outras, e fizer uma das coroas rodar, eu passo a "saber" qual das coroas está em funcionamento. Até então, todas estavam no mesmo campo superposto de possibilidade de movimento. No momento em que a corrente "escolher" uma das coroas, quebra-se a tal da "magia quântica". O segredo deve ser permitir que a corrente mude outra vez de coroa, e se restabeleça o universo magístico no instante em que piscamos os olhos e a corrente definidora desaparece (o que me faz imediatamente pensar na Umbanda, pensamento que faço parar agora para desdobrar mais tarde; decoerência em ação).

O fato dessa foto chegar agora, justamente quando me detenho e escrevo sobre o universo da possibilidade múltipla (multiversos?), é quase que uma comprovação dessa mesma possibilidade múltipla. Como se a foto chegasse sob efeito da superposição de pensamentos que se processam, e que fazem com que o que penso aqui e o que ele pensa lá, que provavelmente nada tem a ver com o que penso aqui, possam encontrar-se num mesmo lugar e tempo. Mesmo que eu não saiba exatamente por que e em que momento essa foto saiu de seu computador para viajar até o meu, onde a vejo neste agora. E ainda que ambos, espaço e tempo, sejam virtuais, aqui dentro desta caixa iluminada na qual digito as palavras que exprimem o que penso.

Imagem: Súria Ribeiro


21/10/2011

Aos amigos librianos



A cada ano, mais. Passa-se o tempo e eu descubro mais um libriano na minha vida. Estou completa e cada vez mais rodeada de librianos - talvez devesse fazer algum tipo de terapia e entender o porquê. Filhos (três!), um companheiro de vida, vizinhos, amigos, compadres, alunos, amores - até minha caixa de supermercado predileta, a Thaís, descubro ter feito aniversário dia 15 de outubro! É um desfilar e nunca mais acabar dessas criaturas que, embora por vezes indecisas, primam pela diplomacia, pelo bom gosto, por uma espécie simples de simpatia cativante, pela sensibilidade. Ainda que, às vezes, a embotem, ou guardem, ou ruminem, ou sublimem (não faço ideia do que aconteça, mas tanta sensibilidade esfuma-se de repente por entre os silêncios que se avolumam). Tanto libriano assim em volta me dá ensejo a comer bolos dos mais diversos sabores em pouco mais de 20 dias, o que se traduz em quilos na balança – coisa de libriano, já se vê, interferir assim, sem dó nem piedade, em balança alheia.

Muita coisa depende de seu ascendente: sim, não, talvez (eis que me atacam as dúvidas do meu objeto de reflexão). Porém, estes librianos à minha volta têm em comum o serem delicados, encantadores nessa capacidade incomum de seduzir quem está ao seu redor, gentis, solícitos, bonitos, sorrisos que desmontam. Os manuais de astrologia dizem que amam o belo, e eu só posso concordar, porque carregam diuturnamente seu senso estético aonde quer que vão – mas o que de mais belo existe entre tudo o que é belo que amam, é a harmonia, o equilíbrio, imagino até que a simetria. Tudo aquilo que justamente lhes custa, que lhes dobra a alma, porque antes fosse fácil assim: não é. Essa fixação na harmonia, às vezes, leva-os a se esquivarem à contenda que se anuncia, creio – e para quem quer frontalidade podem tornar-se um desespero. Mas só às vezes.

Librianos famosos: muitos. De Sting a José Mayer, passando por Will Smith, Mat Damon, Fernanda Montenegro e Lobão. Quem consegue não se deixar seduzir?! E este aqui, que me desceu da prateleira às mãos, e que teria feito anos dia 19, se vivo fosse. A libriana ao meu lado arrepia-se quando lhe digo que sim, que o respeito, leio até com prazer, mas não me excita os neurônios nem me estimula os outros centros de onde surgem a maioria dos meus prazeres. Outros librianos sim, é fato, mas não este. De qualquer forma, e porque não gosto de recuar diante da adversidade, pus-me a ler, bem entretida aliás, hoje pela manhã, “Para viver um grande amor”. (No fundo, no fundo, meu pensamento estava mais ocupado em descobrir como é que se sobrevive a um grande amor).

Pensava entretanto no tema de outra crônica, uma que me acompanha há semanas, sobre as coisas que nos perseguem por muito que fujamos delas e a maneira como o destino tem a capacidade de nos atropelar logo depois das curvas... Talvez Vinícius (de Moraes, o próprio) pudesse ajudar-me, ele que diz que o cronista está condenado a ver-se vez por outra às voltas com a escassez de motivos, e por isso “levanta-se, senta-se, lava as mãos, levanta-se de novo, chega à janela, dá uma telefonada a um amigo, põe um disco na vitrola, relê crônicas passadas em busca de inspiração – e nada”. Nada mesmo. Nada pelo menos que me ajude a avançar na direção da divagação que pretendia. Descubro ainda outra frase sobre o ofício de cronista: “ingrato, prosa fiada”. Suspiro e quase desanimo; em dias de mais ficção que crônica, prefiro aquela sensação do ficcionista de ser levada “a tapas pelas personagens e situações que, azar dele [meu, no caso], criou porque quis”.

Vinícius oferece ainda, em meio às crônicas desse livro, poemas que "visam amenizar um pouco a prosa: dar-lhe, quem sabe, um 'balanço' novo" (libriano, ele, será?!). Uma terceira possibilidade, essa de poeta: aquela que exclama a pulmões plenos que o "único patrão" da poesia “é a própria vida: a vida dos homens em sua longa luta contra a natureza e contra si mesmos para se realizarem em amor e em tranquilidade”. Luta contra si próprio para alcançar o amor e a tranquilidade?! Não posso deixar de sorrir: é claro que nasceu a meados de outubro!

Mesmo considerando as diferenças astrológicas que nos unem, vejo as três possibilidades em ação, lá e aqui. Dão-me trabalho, a mim, com o seu desdobrar cotidiano – um trabalho bom, daquele tipo que entorpece as pontas dos dedos a ponto de precisar mergulhar as mãos em água quente, mas que ao mesmo tempo espreita por trás do espelho, para flagrar o momento exato em que os olhos mudam porque se encontrou o caminho (qualquer caminho) a seguir.  Eu, que costumava dividir-me em apenas duas, o que já era tarefa suficiente, descubro-me três em mim dentro da escrita, três formas diferentes, cada uma num formulário distinto de requisição; formas que me aliciam, cada uma com suas melhores armas; que me seduzem e embromam, altas horas da madrugada. Como se afinal tudo isto valesse mesmo a pena ser escrito. Ao menos para dar os parabéns a quem faz aniversário por estes dias.

15/09/2011

Anatomia

O melhor de tudo é quando alguém nos inspira. Quando alguém se insinua e nos provoca. Quando alguém nos seduz e incendeia.

O texto abaixo é fruto de uma inspirada provocação sedutora assim. Ganhei-a hoje pela manhã (a inspiração), resposta a uma que mandei, que nem se pretendia tanto. Veio na forma de um pequeno filme com música. Vi, ouvi – e troquei de pele, precisei criar palavras que me reconformassem. Se alguém quiser seguir o que me fez começar, ouça e leia em voz alta, com a melodia como referência. (E se depois quiser compartilhar o que sentiu, eu vou agradecer, e meu correspondente também, porque lá de longe ele cria ondas e sincronias onde parecem apenas existir corpos paralisados.)

De Ludovido Einaudi (considere a versão sem a repetição, comece a ler a partir do 3o acorde e use fones se tiver!)


Anatomia - ou das estruturas que compoem os seres vivos

a Palavra, salvação. reelaboração diária, no desenho das letras, no som das palavras, no embate, no gargalo estreito, no despedaço. através da alma, demoradas num dos ventríloquos, translúcidas diante dos olhos fechados. enclausuram-se e abrem espaço e quando se descolam outra vez, é o mundo radiante à minha volta.

a Palavra, proteção. a minha e a alheia. as que me vêm de longe e sobrevoam os mares, as que me vêm de perto sem sobrevoar nada e estão mais longe, inalcançáveis, inacessíveis. respiro, em alívio, pela Palavra viva entre nós, seja qual for. nada outra coisa importa. um som, um ah, um brotar de sentido por entre as coisas escondidas do corpo, aquilo que o ouvido ouve e o coração estremece. e torna sozinho.

a Palavra, mergulho. no levantar das próprias cinzas, a nova Palavra. montanhas e ilhas e minha vida em silêncio. o vento e os mares e as curvas ensurdecem-me, e eis que me devolvo à Palavra. entro pelos caminhos turvos das minhas veias, faço-me água dentro do sangue, transubstancio-me naquela que sou antes disto agora. sou um estado novo.

a Palavra, reencontro. o sentido do estar, agora, sendo. as areias quebradas quando me recolhem.  passam por mim e sequer as sinto. sou a perspectiva do alto. as rochas de que sou feita são apesar do vento tempestade vulcão vivo dentro de mim, cercada. e quero fugir fugir fugir fugir nesse teclado piano, cada tecla uma nota, cada nota um som, cada som um tom a mais no meu dia eterno.

a Palavra, refúgio. as Palavras amplas, construídas no interior do oxigênio, pelas mãos que se abrem e abraçam o tejo o mar os açores a praia estendida um cravo a serra alhambra as vielas a lua um quarto de hotel o riso um parto uma avó em terço os livros os dedos uma morte - as eleições de uma vida reunida nas Palavras, ossos construtores, nas Palavras, sustentação de pé dentro do meu ser líquido indestrutível diante da tempestade. rocha em todas as línguas e formas que podem escrever-se as rochas as pedras  a beira da loucura à beira da paixão presa inconsolável da fonte que não se cala não se dá não se pede não se fecha não se dobra não se abala não renuncia nunca. a ser Palavra.

(O filme? Era este:


07/09/2011

A escrita e o pastel

Passo hoje o dia mergulhada na escrita. Dos outros, não minha, mas da mesma forma maravilhada e plena. O tema, a poesia. O subtema, a sua vivência. O subsubtema, na escola. Perfeito.

Denise, que conheço há pouco mas parece muito, é a promotora e culpada deste feriado passado assim desta forma, trabalhando quase que pelo absoluto prazer de o fazer, descobrindo mais um tanto de coisas enquanto parece que a ajudo no que precisa fazer. Não é bem assim: dá-se daqui, recolhe-se logo ali. E entre um papel e outro, tempo para isto que faço aqui: dar-me sentido a partir da escrita.

A meio do dia, vamos almoçar. Descubro que conheço uma das cozinheiras, mas não daqui, deste restaurante do Seu Luís que sempre que chego pergunta por toda a família, sabe até metade do nome dos meus filhos! Até há alguns meses atrás a Clarisse (invento-lhe o nome, não lho perguntei) trabalhava na pastelaria do Mercado Municipal, aquela que é a primeir à entrada e a melhor, diga-se de passagem. Não resisto e vou dar-lhe um abraço, porque há tempos que a pastelaria não vê meus pés e nem eu a ela. Só conversamos uma vez, mas foi tão marcante que ficou.

Assim que me sentei no banquinho e pedi um ovo empanado (que é muito melhor que pastel), ela sorriu e foi lépida buscar o dito cujo. Voltou e ficou sorrindo à minha frente, certa de que, como eu estava sozinha, devia precisar de companhia e conversa. Perguntei-lhe se gostava de trabalhar ali, disse-me que sim. Que fazia pouco tempo, mas que estava gostando, muito. E porquê? Porque gosto muito de escrever.

Foi-se na direção de outros fregueses que entretanto chegaram e eu fiquei-me com a dúvida do que teria mesmo a ver uma coisa (vender pastel) com a outra (escrever). Voltou logo depois, mesmo sorriso, mesma disposição de prosa. Arrisquei a pergunta. “E o que é que você escreve aqui?”.

“Ah... os pedidos dos clientes!”, respondeu com um sorriso alargado, cheio daquelas águas de quem sonha com o fim da seca, ou com a própria cama depois de meses a fio na boleia de um caminhão. Meu sorriso foi diferente - e voltou hoje, acrescentado, quando lhe vejo de novo os olhos claros e a poesia toda que pavimenta seu caminho. Sem que ela saiba, dessa forma que só a poesia tem de permear a vida das pessoas, sem aviso, sem notificação, quase sem sentido e certamente sem pressa. A Denise gostou da história – quem sabe passa a fazer parte do seu texto!

29/07/2011

A crônica

Foi durante um almoço num dia desta semana. Um rapaz simpático chegou-se à minha mesa e perguntou-me por que o ritmo das minhas crônicas tinha diminuído; incomodava-o essa redução, porque ele gostava de abrir seu dia com uma passada por este blog, e sem novidades isso perdia o sentido.  Além de (meio sem jeito) lisonjeada, disse-lhe que era uma boa pergunta, e prometi-lhe uma resposta ainda por estes dias, porque não era óbvio e batia mais fundo do que ele podia imaginar. Não podia responder-lhe rápido como gostaria. Como com todas as encomendas, a responsabilidade parece-me bem maior, pode ser que o resultado desagrade, fique aquém do que se esperava... enfim: justificativas que digo, a quem me procura querendo escrever, que não é preciso (nem conveniente) oferecer.

Fui ver as estatísticas de leitura do blog. Instrumento interessante, mas aflitivo, sobretudo quando se consulta. Após um dia de muitas leituras, um outro em que quase ninguém entra. E quem entra? Será que leu? Ou foi por acaso, num zapping blogístico de quem não tem outras coisas a fazer? E se leu, aborreceu-se? Fez-lhe bem? Decidiu nunca mais voltar... ou virá todos os dias? E o comentário, que não escreveu? Foi porque não se atreveu? Ou porque não ficou com vontade de dizer nada? Ai...

Mas as minhas preocupações estatísticas hoje são com o que eu publico, e não com o que os outros leem. Frequência, quantidade, coisas muito mais objetivas de medir do que qualidade. E vejo que, de fato, em junho foram seis crônicas, em julho esta é a segunda... Tem razão o leitor de se chatear com o assunto, deve ser deprimente abrir-se o tal do blog, como se de livro se tratasse, e descobrir que as páginas a seguir à última que se leu estão em branco. Quase uma fraude.

Mas há um motivo, e eu explico. Depois de uma semana inteira em oficina de crônica, lendo, escrevendo, discutindo, comentando, rindo, respirando e mastigando crônicas, tornou-se mais fácil perceber a ausência que o ambiente crônico tem tido em mim. O tempo mudou de espaço e lugar desde que, de repente, se abriu uma ponte em direção a lonjuras narrativas. A crônica é breve, efêmera, rápida, quase inconsequente. As narrativas mais longas, que demandam reflexão e uma espécie particular de planejamento, são objetos que se organizam; os contos, os romances, reescrevem-se vezes sem conta, absorvem, abrem crateras na alma, subjugam o dia a dia, penetram pela vida toda como seres com ação e pensamento próprios e capacidade invasiva autônoma. Difícil (ao menos para mim) sair do fluxo da narração, tão ficcional como eu própria, e tornar-me leve, aérea, sutil como uma pluma a quase perder-se no espaço – e ser crônica, e ser 1ª pessoa.

Ainda por cima, a minha alma está mais aguda do que crônica – aliás, está empenhada num movimento exaustivo que a liberte das dores e dos desejos crônicos, e com certeira agudez caminhe e avance em direção ao que será. Essa alma menos crônica quer o que é profundo e interno, o que é longo e introspectivo, o que avança pelos terrenos da ficção a plenos pulmões, de formas que a crônica jamais poderia ser, hoje, aqui. 

Escrever assim, como vem acontecendo nas últimas semanas, causa-me uma inquietação interna que não sossega ao final de uma página – não: paro porque estou cansada e preciso dormir, comer, beber, atender aos compromissos alheios e com hora marcada, esses que vêm roubar-me à escrita e devolver-me ao mundo, depois de horas mergulhada num outro espaço, com outros seres e outras dores.

E sinto saudades, é claro que sinto, do descompromisso diário da crônica. Que não articula personagens, não elabora cenários, não estuda e inverte pontos de vista, focos narrativos. Ou de repente o faz, e ri-se por dentro, porque a crônica ainda por cima é rebelde e não aceita regras constrangedoras. Faz-se da minha fala breve e da reflexão curta, mas também da saudade longa que se sente das coisas que fugiram de nós sem que sequer as tocássemos, e não sabemos se somos felizes porque o toque quase se deu (e só isso já é tanto!), ou se porque sentimos saudade, e saudade é uma forma de felicidade. A crônica faz isso: suspende-nos dentro dela mesma, faz-nos girar em torno de uma indagação, e, a mim,  dá-me a liberdade de, se eu não quiser, não chegar a lugar algum. Ainda que seja à resposta da pergunta amável de um leitor atento.


01/06/2011

A parte sem o todo

O que me fez pensar no livro foi o título: ”Por uma vida melhor”. Um título assim só diz algo a alguém que precise melhorar de vida. Crianças não costumam ter a sensação de “precisar melhorar de vida”, portanto depreendi que o destinatário fosse um adulto.

Foi sob essa perspectiva que li o primeiro capítulo, introdutório, de ponta a ponta, do tal livro aprovado pelo MEC, o gerador da acirrada celeuma de umas semanas atrás. Reconheci o que a realidade em volta mostra a quem olha para ela, assim como boa parte do que aprendi sobre os processos linguísticos ao longo dos anos. Coisas óbvias: que falar e escrever são atos diferentes; que a maneira como se fala ou escreve depende do destinatário; que toda linguagem é regida por regras, as quais formam as diversas gramáticas internas de uma mesma língua; que toda língua tem variantes, que variam de acordo com seus falantes; que a maneira de falar pode ser um poderoso instrumento de preconceito, inclusão ou exclusão social; que é preciso valorizar todas as formas de fala, entendendo-as como variantes e não como erros; e por aí vai. (Sírio Possenti, na matéria que escreveu a respeito da celeuma, diz que adjetivar de “errada” a fala de um grupo de pessoas seria como adjetivar de “errado” o bico de um tucano, baseado na proporcionalidade entre bico e corpo que rege a maioria dos pássaros.) No fundo, no fundo, só fala errado quem não consegue comunicar o que deseja comunicar, seja por que motivos for.

“Por um mundo melhor” é, de fato, dirigido a um público mais velho, alunos da Educação de Jovens e Adultos, formada por pessoas que já de cara se encontram na linha de exclusão social pela falta de estudo e precisam, muito, imensamente, ver-se diante de um espelho que os reproduza como pessoas capazes e falantes de uma variedade linguística válida, respeitável e correta. Não por bondade, mas porque de fato o é, sendo apenas preciso o respeito ao onde e ao quando, como com qualquer outra variante. Estaríamos todos aliás perdidos se fosse diferente, porque todos estes “portugueses” que falamos e escrevemos não descendem diretamente das palavras de Ovídio ou Virgílio, mas dos soldados no máximo semi-alfabetizados que povoaram a península ibérica com seu “latim vulgar”. Capítulo corretíssimo, o do tal livro, cumprindo ainda a função (bastante conservadora) de instar o leitor a converter todo exemplo da variante “popular” para a escrita normatizada pela gramática padrão da língua – aquela dos pássaros cujo corpo e bico são proporcionais.  

Eu sei bem o que é recortar de um processo comunicativo uma de suas partes - e um livro é um processo comunicativo, assim como uma carta, um artigo, um bilhete, um romance, um poema, ainda que em graus funcionais diversos. Guardo emails de memória porque isso faz bem ao meu coração, ainda que eu inteira saiba que é um trecho, um recorte, uma parte que, a despeito das considerações barrocas de Gregório de Matos sobre o assunto, não corresponde ao todo. Mas isso não me incomoda, muito menos ao resto do mundo que sequer toma conhecimento do que guardo em mim e para mim.

Também sei de perto o que acontece com processos de comunicação interrompidos, truncados ou incompletos, aleijados pelo mesmo defeito da discussão livro-do-MEC: lê-se apenas uma vez, lê-se apenas uma parte, não se entende metade, não se pesquisa (porque não se pergunta), não se estabelece nenhum processo que pretenda entender quem escreve, e parte-se a galope para o julgamento do que se leu – e leu dessa forma alijada de compreensão.  Como diria meu pai: cru e quente. Quando ainda por cima o uso é ideológico (“livro ensina a falar errado como Lula”), eu chamaria as autoridades, nem que fosse por crime linguístico.

O assunto reacendeu-se aqui na minha escrita porque fui chamada a compartilhar o meu processo de criação enquanto escritora num congresso. De zilhões de pessoas bem mais qualificadas do que eu para isso (e não é falsa modéstia, mas a percepção clara da pouca experiência misturada a um certo pudor de descobrir diante dos outros o que até ontem entendia só meu), atrevi-me a aceitar a oferta e pus-me a trabalhar. De uma e outra forma, preciso perceber o que me provoca a sensação de criação, o que me faz de fato criar e o que se antepõe entre mim e o universo da criação. Não é fácil, porque afinal é o meu processo de humanização particular, deparo-me com situações internas que sei precisar resolver... Mas no processo descobri alguns “por ondes” que desconhecia e com os quais consigo relacionar-me saindo da sombra.

Hoje de manhã, o exercício foi partir da função da língua na minha vida. Ressuscitei Antonio Cândido da prateleira dos teóricos, naquele texto sublime em que ele diz que a arte é o que humaniza o ser humano. A linguagem sobrepõe-se em todos os meus mundos - pessoal, profissional, afetivo, social. Mais do que qualquer outra, a escrita é a minha maneira de relação com o outro, meu canal fluídico privilegiado no caminho que me conduz para fora de mim e em direção aos mundos alheios. É-me difícil ler alguma coisa sem olhar de todos os lados, é quase que automático – o que me preocupa, porque os processos automáticos se afastam muito rápido da arte. E é-me difícil o caráter fundamentalmente solitário da escrita. Mas assim que uma nota em forma de palavra me toca, me eleva, estou de volta ao domínio de onde não quero mais sair - o domínio da arte, talvez aquele de onde Drummond saía quando se ausentava do reino das palavras e voltava escrevendo. A palavra é o ser humano em que quero me tornar.

Como a palavra habita todos os instantes da minha vida, e assim faço para que seja, oferece-me bastante trabalho, e a todo instante estou (ou poderia estar) em atividade. Tento, nos últimos tempos, que todos esses momentos sejam intensos no sentido da potência estética que a palavra em mim quer alcançar e, também ultimamente, isso converte-se em dor e em desamparo, uma quase tortura por não saber sempre qual o caminho, e errar por estradas pouco ensolaradas, perder-me no labirinto de uma paisagem sem horizonte até encontrar a saída e perceber-me do outro lado de uma moeda que não tem lados (como se um Alberto Caeiro a correr as cortinas da sua janela, dizendo-se entre parênteses que no entanto ela não tem cortinas). A proteção do mundo dentro de uma redoma de ar.

Talvez o que mais me entusiasme seja perceber a capacidade criadora da palavra em todos, latente, como se a mais democrática de todas as formas. Chegamos ao outro através da linguagem, é nossa enquanto grupo e nossa enquanto indivíduos – e talvez por isso me doa nos ouvidos e nas entranhas dizer que alguém fale “errado”. O que seria dos Patativas do Assaré (e do mundo) se lhes dissessem (e eles acreditassem e se conformassem) que falam e escrevem  errado? Que seu bico avantajado e multicolorido não cabe no universo dos céus, porque desequilibra os corpos alheios, e por isso não podem voar nem chalrar à vontade?

24/02/2011

Distorções ideológicas


Tive um professor querido de História, muitos anos atrás, que me explicou de forma exemplar o que é ideologia. Ideologia, dizia ele, é o seguinte: você passa muitos e muitos anos (por exemplo) odiando ler, repudiando tudo o que seja matéria impressa; num certo momento, percebe a importância da leitura, e passa entusiasmado ao estatuto de leitor contumaz. Porém, o mundo lá fora, que tudo observa, permanece com o você antigo, aquele que não gostava de ler, e por mais que você diga, prove, leia!, nada convence ninguém de que você mudou, que as coisas mudaram, que agora não só você reconhece o valor e o prazer de ler, mas lê o dia inteiro. Ideologia é isso: a permanência de uma determinada forma de pensar a respeito de uma realidade que,entretanto, já mudou e não é a mesma. Hoje eu sei que ele se apoiou nas reflexões de Marilena Chauí, mas na altura essa explicação me cativou.

O pensamento ideológico tem uma missão importante, ainda que inconsciente: convencer o resto do mundo que a mudança não aconteceu. O pensamento ideológico sai às ruas enérgico para comprovar, constatar, convencer e provar o que lhe parece óbvio: você não lê e não gosta de ler. Os fins, aqui, justificam os meios, e por isso a liberdade é irrestrita para camuflar, distorcer, omitir ou corroer fatos e informações. Vale tudo, porque há uma missão em jogo, há uma luta em campo que não é racional, mas absolutamente passional. O ser humano tem problemas com a desacomodação e a mudança – por isso, mais fácil garantir que nada mudou e que podemos continuar reclamando, eternamente, das mesmas coisas. Ainda que não existam mais. A sorte é que, como agora você gosta e lê, sabe disso e não se incomoda tanto. Até entende, quem sabe se magnânimo...

Os caminhos do pensamento ideológico são muitos, e todos estamos à sua mercê. O email que circula há algum tempo pela internet, com uma redação de uma aluna da UFRJ, pretensa ganhadora de um prêmio concedido pela UNESCO entre outros 50000 estudantes, é uma prova fantástica deste assunto. Ora vejam:

O email em questão conta que Clarice-alguma-coisa, aluna do último ano do curso de Direito da UFRJ, ganhou um prêmio concedido pela UNESCO, pela sua redação sobre o fim da pobreza e da desigualdade. Segue-se o email com o texto na íntegra, e ao final solicita-se que se encaminhe adiante, e assim “aos poucos vamos acordar este Brasil!”

Convém saber que o texto da estudante não ganhou o concurso, mas foi selecionado, com outros 100 textos, para integrar uma publicação da Folha Dirigida em parceria com a UNESCO (ou vice-versa, para não me acusarem de distorção!). Foram 42.000 estudantes, e todos eles brasileiros universitários, porque o concurso, que dá a impressão de ser mundial, aconteceu apenas no Brasil. A publicação tem a data de 2006-2007, e está disponível no site http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001576/157625m.pdf.

A intenção da UNESCO não foi destacar o bom uso da língua, a clareza na exposição das ideias, a articulação equilibrada, a coesão trabalhada. Talvez, se fosse, a estudante de 26 anos tivesse uma nota razoável, apesar de não ser um texto exemplar e de, dependendo do ponto de vista, ter as qualidades necessárias a uma prova de ingresso à universidade e não as que se presumem necessárias a uma já-quase advogada.

A intenção foi justamente dar relevância a boas ideias que combatam e a pobreza e a desigualdade, conforme reza o título da publicação, e não a habilidade para “construir belas frases com palavras simples”, como elogia anonimamente quem coloca o texto em circulação. É claro que vemos e percebemos da realidade aquilo que a nossa percepção e história pessoal informa; é claro que a pluralidade de opiniões é a garantia da nossa democracia. Mas choca-me que a UNESCO consiga entender representativas da realidade brasileira as ideias expressas pela estudante, por muito irrepreensível (e não é) que seja seu texto. Se ainda penso que é uma aluna de último ano de Direito, mais me espanta e incomoda. E quando vejo que é aluna de uma universidade federal, pior ainda.

"Abundância de falta de solidariedade" e "exagero de falta de caráter" (para não passar do primeiro parágrafo) são expressões fortes demais para caracterizar um país onde precisamos de muitos e muitos dedos de muitas mãos para contar exemplos justamente do contrário. Eu sei (e por isso aquela introdução no início deste texto) que dificilmente se constrói um discurso ideologicamente livre, mas há limites, e uma estudante de último ano de Direito deveria ter construído, ao longo do seu tempo de estudo, a capacidade de olhar em volta com os olhos abertos. Seu texto está repleto de lugares comuns e chavões como aqueles que ouvimos repetidamente, que elegem o Tiririca como exemplo acabado do congresso que acaba de ser eleito, ignorando os tantos e tantos deputados capazes e honestos que povoam a Câmara. Joga-se o bebê, a água do banho e a própria bacia. Bastante fácil levantar bandeira por revoluções e reformas estruturais, sem perceber as que estão em curso, e que permitiram, inclusive, que a autora do texto chegasse a seu último ano de um curso de Direito do calibre do curso da UFRJ, "vítima" dos investimentos fantásticos que o Governo Federal fez nos últimos 8 anos no ensino superior público.

O texto de Clarice tem, no entanto, um aspecto positivo, e a sua circulação irrestrita e distorcida pela internet idem: são bons exemplos do que é preciso fazer com textos lidos no ambiente virtual. Por um lado, desconfiar, a partir do exercício do pensamento crítico e da análise da realidade, da veracidade dos fatos que veiculam, confrontá-los e confirmá-los buscando outras fontes; por outro, descobrir a imensa riqueza democrática que esse mesmo espaço virtual carrega em si, acessível por caminhos que lhe são próprios e peculiares e que precisam ser aprendidos e explorados nos últimos anos da educação básica, justamente porque são isso mesmo: básicos. As nossas salas de aula estão repletas de alunos que usam a internet e o universo virtual diariamente, de forma limitada mas muito intensa. Faltam-lhes recursos que lhes permitam dominar as ferramentas de pesquisa, faltam-lhes capacidades para poderem encontrar, nessa gigantesca caixa de Pandora, aquilo que necessitam e aquilo que ainda nem sabem que existe. Quem sabe possamos contribuir para que as próximas gerações de alunos da UFRJ consigam desenvolver textos mais articulados, maduros, reflexivos, inteligentes e bem escritos. O lucro será de todos.