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09/03/2014

O outro nome


Este amor não é um rio,
tem a vastidão do mar

A ti, antes que a ambos nos alcance a morte

Aqui estou, diante das águas do rio que não é o da tua aldeia. Nem sequer o rio onde gostas de nadar, a mergulhares até quase se perder o ar. Só quase: tu não gostas de perder o ar, talvez porque sejas um ser de terra, ainda que em ti se ergam as forças ígneas, e mesmo que tentes delas fugir, elas correm atrás dos teus rastros.

Mas para além disso, sabes o que vejo, eu que fico deste lado de fora d'água, quando nela submerges? Vejo os pesos do teu quotidiano, dessa tua vida que dizes monótona, de números e parafusos e pequenas retortas que antes fossem, mas não são, de alquimista. Boiam ao redor das marcas que o teu corpo deixa à superfície, que são tantas quanto as das enguias a fazerem o mesmo percurso. As tuas espáduas, já te disse há tanto tempo, são peixes alongados a passear nas tuas costas. Talvez mergulhes na água como desejas mergulhar dentro da mulher que ames.

À distância de tantas ondas, olhos postos no barco ao passar, lembro-me dos teus olhos quando fechados. E levanto-me com vagar, porque os anos já não me fazem saltar como mola do lugar em que me escolho sentar. E vou em direção ao café, este desporto nacional que tanto me agrada. Não sei bem (nunca soube) o que pedir à vida, tanto quanto não sei o que pedir agora ao empregado do café que se aproxima de mim com o guardanapo branco pousado no antebraço como uma gaivota. Olha-me solícito, e não sei se o faz de propósito, mas confunde-me o lapso de tempo que existe entre os meus desejos e o seu atendimento. Que mais é a vida do que uma sucessão aleatória de lapsos de tempo, onde eu ora sou esta pessoa sentada à mesa do café, ora o empregado de gaivotas nas mangas a atender com olhos líquidos o espaço vazio da cadeira que ocupei?

Seja a forma ou o tempo de que disponha, não deixarei de ser desta forma de gente que ora se senta à mesa, ora a atende. Esta forma de gente que não se aflige nem se desconcerta com os silêncios teus, inesperados, com as ausências tuas, que não se anunciam, com as distâncias todas que se materializam porque alguém, não importa quem, se esqueceu, e mais nada. O esquecimento é a lembrança adormecida. Esta vida, tu que talvez já tenhas começado a desfazer-te no poente, nada mais é do que o caminho que se abre entre as mãos que servem e as mãos que pedem. Eu tenho em mim dois grandes pares de mãos.

Volto para perto do rio, porque estar perto d'água é como estar perto de ti. E estar perto de ti é o pedido que me faz o coração, e eu, que nada sou a não ser aqueles que me compõem, posso escolher ter-te perto e estar-me perto. Porque estar perto de ti é ter-me perto dos meus pensamentos, como se fosses o pastor e fosses os montes e as campinas que ondulam dentro de mim, à espera. Ainda que não percorras os vales e as colinas desta vida que nos coube, porque desejas o que não temos, alimentas as paisagens que de dedos enlaçados desenhamos na superfície inventada. E são essas as paisagens que todos os dias, pontuais como a sirene do navio a atravessar o rio de banda a banda, se levantam no horizonte da manhã. E é isso o meu bastar-me, e porque me basta e como me basta, sou, basicamente, feliz.

Poderia ficar-me por aqui, e não dizer-te mais nada, porque de certa forma sei que até isto já é mais do que devia, para quem não quer ouvir nem pensar em nada. Apenas ser, e sentir, e deixar-se levar como as folhas que caem no leito do rio, e querem que se acredite que se deixam conduzir sem espreitarem o para onde vão. Mas devo ainda desafogar mais um triângulo da minha alma. Devo acrescentar ainda a esta dose imensa de exposição de carne e sangue e fluidos e densidades, uma coisa.

Penso que o seres dentro de mim feito de tantas letras faz com que esta cidade, hoje, sussurre esse "sou tua" que me embala até a noite já ser alta e já ser amanhã. Esta condição que crias, com as palavras que despertas neste lugar que só tu conheces em mim, esta condição que crias oferece-me o estares em mim, e este estar em ti que escolho mas não imponho e é agora também condição. E é essa a tua presença constante dentro dos versos das minhas linhas: uma candeia acesa, que não sabe onde os teus pés enterram a força da sua vida, mas a ilumina da mesma forma, refletida nestes meus olhos que olham o rio que não é o da tua aldeia, mas é o rio que circula nas minhas veias e, por condição escolhida e aceite, também nas tuas.

Fica bem. E lembra-te de mim.



Imagem: o Forte de São Julião da Barra, em Oeiras. Aquarela de Filipe Almeida
http://tracoslocais.blogspot.pt/
Versos em epígrafe do "Fado perdição", de Maria Duarte.

O amor é uma companhia

O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.


Lisboa amanhece neste 9 de março fria e cinzenta. E ainda assim, a luz impera. De onde tira esta cidade a luz com que sempre amanhece? Saio de casa disposta a olhar com olhos de ver, ainda com a noite de ontem fresca dentro de mim.

Ouvi ontem, como verdade já sabida, que nada é acaso. A mola propulsora de Fernando Pessoa. E de Alberto Caeiro. E de todos esses irmãos que ele se criou para não ser sozinho, e ser o que todos provavelmente somos: muitos dentro de um mesmo envelope.

Fez ontem cem anos do dia triunfal da vida de Fernando Pessoa. E agora que já não é ontem, mas hoje, fecho os olhos. Estou outra vez, e ainda frescos os sentidos porque foi apenas ontem, dentro da casa onde o poeta viveu por 15 anos. Dentro do quarto que habitou, onde escreveu, onde dormiu, onde se postou à janela para ver a rua lá embaixo. Talvez seja esta a mais alta janela da sua casa, e debruço-me nela para ficar mais perto dele. Fico diante da sua cama, encosto-me a ela, sento-me nela. Seu chapéu jaz aí, displicente, como se ele tivesse acabado de sair e o tivesse esquecido, ou como se tivesse acabado de chegar e o tivesse atirado para cima da colcha amarela de chita de Alcobaça. Também está aqui, na parede entre as janelas, a cómoda alta onde esteve, nesse dia triunfal que hoje faz cem anos, um guardador de rebanhos que nunca os guardou, mas é como se os tivesse guardado, porque a sua alma é um pastor. E tanto faz se são fatos ou ficções, todas aquelas linhas que escreveu a Casais Monteiro tantos anos depois. Nesta noite, que porque nada é acaso posso chamar de sagrada, leem-se os poemas deste pastor, depois de sabermos que quem lhes deu vida dedicou-se a pensar muito mais do que este, que agora ouvimos. Desfiam-se as palavras que não são palavras, mas campinas, ventos, ilusões de letras a marcar a substância concreta do mundo. Em silêncio dentro deste quarto, nós que aqui estamos porque nada é acaso, ouvimos o que foi escrito, e a voz melodiosa da Natália Luíza que os lê, sabe o que está a fazer. Ou talvez não saiba, mas faz como se soubesse. O que me leva a ter certeza de que sim: sabe. Dessa maneira caeira de saberem-se as coisas, que é sabê-las porque sentidas, e não porque sabidas.

E aprendi muitas coisas ontem, desse Fernando Pessoa astrólogo que disse a si mesmo sê vários, mas sê inteiro, e que o Paulo Cardoso apresenta tão leve, tão fácil, tão evidentemente. E por querer ser inteiro não podendo ser único, porque somos tudo menos únicos, fingir ser vários para poder ser autêntico. Como nós, mas ao contrário, a fingirmos sermos um só para não nos perdermos entre os vários que vivem dentro de nós - ou para que os outros não se percam nesses vários que palpitam em nós. É mais provável a segunda opção.

A contraparte de dizermos "nada é acaso" está em "tudo é simbólico". E simbólico é que nesse 8 de março estivéssemos nós que estávamos. E as coisas que aprendi, dessa maneira de se aprenderem as coisas que é sentindo-as sem as pensar, são um tropel de cavalos que agora se me impacientam na alma. Não aceitam rédeas nem sela, e nem sequer que eu me aproxime (ainda) para acariciar-lhes as crinas, olhá-los nos olhos, passar-lhes a mão pela maciez forte dos seus músculos lisos. Só posso admirá-los, assim de longe como se olham as paisagens mais secretas da alma. Assim de perto como olho agora, neste instante que se acaba assim que o escrevo, o encontro entre o rio e o mar. E assim como agora neste instante, porque nada é por acaso e tudo é definitivamente simbólico, entrego à fusão destes dois seres, rio e mar, a marulhar conjuras dentro da minha garganta calada, papeis dobrados em quatro, que as ondas vêm receber, com umas mãos que lembram o fado que me estenderam ao nascer. Agora, neste instante, sinto em mim que o amor é (não posso contestar) uma companhia, e não estou só, porque nunca estou sozinha.


Excerto de "O amor é uma companhia", Alberto Caeiro in "O pastor amoroso".
Fotografia: Ana Mata
Palestra da Paulo Cardoso e leitura dos poemas de "O guardador de rebanhos" na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa.

Na cn

Assim como





Fez ontem
Ontem t
Lis

08/03/2014

A cidade feita de luz

Na cidade mais bonita do mundo há uma quantidade assombrosa de recantos que é preciso explorar. Porque pode-se passar à porta, ou diante dela, e achar-se interessante. Mas se não se entra, com a paciência e o sossego característicos desta capital, e uma dose de entusiasmo explorador marítimo, perde-se. E assombro perdido é assombro perdido.

Praça da Figueira, número 7. Vimos desde o Cais do Sodré à procura do lugar. Antes, é preciso comer as últimas castanhas assadas da estação, beber um café que nunca se bebe no Martinho da Arcada, os dedos encostados ao mármore que viu nascer quem sabe um guardador de rebanhos, e vir pela Rua da Prata acima. É preciso desviar das tentações feitas de bustos de Camões e Camilos Castelos Brancos, dos pequenos Afonsos Henriques com vestes templárias espalhados pelas lojas numa súbita paixão nacional pelo primeiro rei de Portugal. Atravessamos a praça que já foi mercado e aterrissamos em pleno Hospital das Bonecas. O burburinho da cidade submerge no lado de fora.

Aqui, a vida é brincadeira. Brincadeira a sério, como são as verdadeiras. Inaugurada em 1830, a Ervanária Portuguesa da dona Carlota em pouco tempo começou a receber as coitadas das bonecas acidentadas das miúdas que por lá passavam ou por ali viviam. Dizem que vinham com as mães e as avós ao mercado, e ficavam encantadas com as roupas de boneca que a jeitosa da dona Carlota fazia, sentadinha à porta da ervanária, entre um cliente que queria tília e outro que perguntava se havia lúcia lima e o outro ainda que chegava apressado para buscar a sua encomenda de amieiro negro. São lindos, os nomes das ervas.

Hoje é a Marta que está ao balcão. Trago a Rosinha, que coitada perdeu a cabeça. Boneca mais querida de casa, prometi que a traria ao hospital. A expectativa é grande. A Marta abana a cabeça: "Coitadinha...". Olha para mim com um olhar compungido (enquanto o filho adulto ao lado não sabe se ri se chora) e diz: "Olhe: ela vai precisar ficar internada". Pergunto-lhe se vai demorar muito tempo e ela diz-me espantada: "Mas, minha senhora... isto é um caso muito sério! Há de ficar aqui conosco por pelo menos um mês!". 

Fico a pensar na coitada da minha filha que acredita que os achaques de boneca são mais fáceis de tratar que os de gente. Engana-se, e nem sabe disso. Especialmente quando se perde a cabeça, e o mundo obviamente destaca-se da sua ordem costumeira, tanto faz se bonecas, se gente. Não é coisa de poucos dias, e não se tem certeza de como se ficará. Digo-lhe que está bem, o que é que se há de fazer, são as coisas da vida, veja lá se conseguem dar-lhe um jeito ao cabelo, já agora... E ela concorda: "Realmente, este cabelo está a precisar passar por uns cuidaditos... Deixe estar que há de ficar como melhor puder ser!", e começa a preencher a ficha da doente. Ao finalizar (precisa de todos os dados, e eu sequer sei o tipo sanguíneo da Rosinha...) instrui-nos: "Vejam, aqui está o telefone (aponta um número no papel), podem telefonar a informarem-se como ela está. Só é preciso que digam o número da cama"  - e aponta outro número, que qualquer incauto chamaria de ordem de serviço, para logo depois ser expulso dali aos pontapés. A Rosinha, que jazia deitada de olhos fechados em cima do balcão, seguiu para a enfermaria, mas não sem antes se despedir de mim, que entretanto quase me vi a encher os olhos de lágrimas. Até porque o respeito pela internação fez esperar os outros clientes da loja, donos da tal paciência, por quase trinta e cinco minutos. Sem queixas nem perguntas, num silêncio que parecia remetê-los às próprias agruras com a saúde dos entes queridos.

Saímos de lá com a alma a precisar de ajuda. Viramos à direita, e outra vez à direita, e chegamos às Portas de Santo Antão, de onde a "Ginja sem rival", da sua minúscula porta, firme e forte desde 1870, nos chamou sem precisar de insistência. Gosto deste gosto lisboeta de gostar das coisas velhas, satisfazer-se e orgulhar-se delas, e mantê-las iguais e idênticas entre um século e outro. O pequeno copo ali à porta, em pé e ao sol, restabeleceu as forças, indo buscar lá aos fundos da memória a sensação de outras épocas.

E continuamos nas andanças. Para esvaziar a cabeça dos problemas das demais cabeças, sejam elas de pessoas, sejam elas de bonecas. Não há, afinal, grandes diferenças, e o que é preciso é paciência, sossego e uma cidade como esta, cheia de luz, de pedras e de esquinas. Uma cidade a ensinar-nos que, para encontrar a primeira, basta aceitar as segundas, e confiar que as terceiras surgirão a cada momento, dispostas a levar-nos exatamente ao lugar para onde devemos ir. 


25/04/2010

O sonho que, unido, jamais será vencido


Alfacar é uma pequena vila perto de Granada, na Espanha. Pouco mais de 4000 habitantes, casas antigas cheias das sombras e do sol andaluz, rodeada de enebros, alcornoques e madroños – árvores com sotaque castelhano em terras que já foram mouras, as últimas da península a capitular à reconquista católica. Seus campos testemunharam os últimos passos de Federico García Lorca e daqueles que caminhavam com ele. Todos fuzilados pela falange franquista no caminho que leva de Alfacar a Viznar. No fim de 2009, um juiz espanhol, de sobrenome Garzón, abriu o processo de exumação da vala comum em que se supôs durante anos estivessem seus restos mortais. Não se encontraram, e persistiu a sensação de que a família já o teria feito, e Lorca estaria, apesar de tudo, enterrado em Granada.
Há mais de uma coincidência entre aquele dia em que soaram vozes de morte perto do Guadalquivir e o dia de hoje. 1936 foi o último ano de Lorca e hoje comemoram-se 36 anos da Revolução Portuguesa. Ele, vitima da ditadura franquista; ela, rompendo as correntes da ditadura salazarista que perdurou por longos 41 anos no país vizinho. Segunda coincidência: ontem, em Madrid, grandes manifestações trouxeram às ruas a mesma Espanha dividida da década de 70 - a Falange de um lado, os movimentos populares de outro. O motivo tem raízes fundas e profundas, raízes feridas e mal cicatrizadas, semeadas no coração da Guerra Civil e do governo de Francisco Franco. O mesmo juiz Garzón é o motivo, e o seu (mais uma vez) movimento de iluminar e tentar redimir o passado, exumando campas para encontrar os desaparecidos políticos. Responde neste momento a um processo por prevaricação enquanto funcionário público que contraria os interesses do estado, por tentar levantar informações e dados sobre casos anistiados. Há mais manifestações que o apoiam por toda a Europa, mas esta, de ontem, sacudiu com ardor as principais vias da capital espanhola.
Hoje, dia 25 de abril, toca o telefone às 6 da manhã. Já o dia vai adiantado do outro lado do Atlântico, e eu sei que ouvirei a senha de todos os anos: “25 de abril...”, à qual responderei sem demora, como é costume, “Sempre!”. “O povo é quem mais ordena” vem logo a seguir, num Ary dos Santos imortalizado na letra da música que Lisboa entoará logo mais, agrupada na manifestação que se preparou e que descerá, como sempre, pelas avenidas que imortalizam a Liberdade. Há 36 anos que o país entra em festa neste dia, ainda que haja quem não goste, ainda que haja quem se ressinta, ainda que haja quem quisesse tudo muito diferente – o dia da Liberdade resiste teimoso e ganha todas as ruas e vielas, desdobra-se numa profusão de cravos vermelhos em todas as lapelas.
Este “sempre” deste ano tem, porém, um gosto diferente. Há um Garzón a quem ser solidário, e há a escalada conservadora fazendo vítimas por todo o continente. O “sempre” de outros anos respondia pela celebração, pela gratidão de se poder gritar “a terra a quem a trabalha”, “o povo unido jamais será vencido” e por podermos olhar nos olhos de outros que também se lembram de que a utopia é possível e viveu entre nós. Mas este ano esse “sempre” volta a assumir o tom do “no pasarán” de Dolores Ibarruri, um “no pasarán” que ecoou e se agitou em centenas de faixas pelas ruas de Madrid ontem, 24 de abril de 2010, quantos anos depois da Pasionaria o ter gritado pela primeira vez. “Sempre”, hoje, porque há quem queira esquecer com mais força do que queria esquecer-se antes, porque há quem queira que não nos lembremos com mais força do que queria antes, e porque há quem sucumba ao medo de dizer aquilo que precisa ser dito, muito mais do que precisava ser dito antes, ainda que pareça, ainda que seja e ainda que se repita impossível. Por isso, antes de fechar os olhos para preparar o dia de amanhã - 25 de Abril: sempre.

03/04/2010

Fotografia nova na parede da sala


Assim que me deram esta fotografia da baixa lisboeta, antevi as saudades que me provocaria assim que a colocasse na parede de casa. Vista de cima e a preto e branco, a cidade de Lisboa atinge-me muito mais fundo, porque contemplo-a em silêncio, não há nada visível da modernidade claustrofóbica que a atingiu, e eu posso beber da fonte que gosto, difícil de encontrar com os pés no chão. O quadriculado exato pombalino agrada-me mais assim, pelo contraste com os bairros castiços, à direita e à esquerda; Alfamas e Mourarias e Bairros Altos a atiçar o passado mourisco da cidade que tinha sete colinas, e as perdeu submersas em prédios todos iguais.

Uma sede de modernidade faz com que o tempo ande, o que é bom, mas impede que o passado se demore, o que não é tão bom. Como não estou sempre nesta cidade, e como ela faz parte do meu passado, sinto-lhe mais a parte negativa do que passou, à espreita atrás da porta das remodelações. Segue-se a traça original do desenho dos prédios, porque o orgulho do passado majestoso sobrepõe-se a tudo neste país em crise, mas é uma traça que difere sutilmente daquilo que era. Pode ser que sejam os materiais que se usam, as novas técnicas de construção  etc e tal. O fato é que o Cais das Colunas já não é o que era, que pena, quando andava em obras eternas que motivavam piadas e mais piadas e que agora se calaram porque perderam o sentido. Ou o Cais do Sodré, limpo e cheio das máquinas que nos facilitam a vida ao vender bilhetes em tantas línguas, enquanto nos fazem perder o ritmo do tempo que era o nosso, e que talvez pudesse continuar a sê-lo e quem sabe não seria a crise doutro tamanho e dimensão.

Lisboa provoca-me sensações ambíguas, provavelmente porque viva muita viva dentro do passado que lhe construí na memória. E dificilmente alguma coisa iguala a memória.

Isso faz-me pensar na memória seletiva que  se criou em mim e que se esquece contumazmente daquilo que parece não valer a pena lembrar, ainda que valha. À minha volta, lembram-se de muitas formas de eu mesma que eu nem sei existentes em mim. Começo realmente a ficar preocupada, porque por todos os grupos e por todos os lugares a situação repete-se, o que denuncia uma cronicidade que talvez venha a se transformar em distúrbio, se é que já não o é efetivamente. Lembram-se de momentos invulgares, aventuras que parecem saídas de um volume de ficção, anedotas em que me vejo refletida como se fosse outra, basicamente porque não me lembro, mas imagino até que assim possa ter sido, já que outros se lembram com tanta fidelidade e estranhamento quando os olho, com o meu próprio estranhamento de que seja de mim que falam.

Lisboa, hoje na parede de casa, um cacilheiro à vista no pedaço de Tejo que o fotógrafo imortalizou, há de lembrar-se eternamente. Sigo o percurso das ruas que gosto de calcorrear com a ponta do meu dedo e, se fecho os olhos, vejo-me lá. Sinto a brisa do Tejo antes de chegar ao Terreiro do Paço, e viro à direira numa ruazinha onde sei que vou encontrar omeletes acompanhadas por montanhas de batatas fritas, como gostaria um Kit Carson que aqui aportasse anacronicamente. À distância, divirto-me em percursos que posso inventar. Não há barulho nem fumaça de carros, nem sombra das eternas obras que não acabam de remodelar uma e outra vez esta praça. Além de ser das maiores da Europa, é a mais emblemática porta de entrada desta cidade, e ainda esquizofrênica como nós todos - não sabe se se chama Terreiro do Paço ou Praça do Comércio, e responde aos dois apelos feliz da vida por poder ser duas enquanto é só uma.

Os elétricos, neste meu sonho fotográfico, são dos antigos e deslizam pelos seus trilhos, às vezes com um barulho de freios que dói nos ouvidos e que hoje, embora mal se ouvisse, seria chamado de poluição sonora. Atrás do chiado que não se ouve, escuto as asas das gaivotas que pousam na estátua de D. José I, indiferentes à azáfama citadina. As pedras desta praça testemunharam o fim último da ditadura - vem-me à memória, que já se sebe seletiva, um Salgueiro Maia a libertar Lisboa do último baluarte salazarista e, como estou longe, posso imaginá-lo sem perdas a cavalo pela Avenida Infante Dom Henrique, ferraduras num prenúncio de enterro do que já está morto mas se esqueceu de fechar os olhos. Mas também elas, as pedras, se permitem a indiferença aos carros que passam sem olhar para os lados, buzinas em riste contra os transeuntes que não têm por onde atravessar, e nem se perguntam se haverá razões.

Viro as costas da mão ao rio, e demoro o meu indicador na esquina do Martinho da Arcada. Decido levantar-me, já me doem os joelhos, para ir em busca do Livro do Desassossego, encontrar no poeta que não mora mais no café a paz que não encontro no meu reflexo no vidro da foto. Sei de antemão o infrutífera que será a minha busca, e por isso mesmo esse livro.

26/03/2010

Dia de chuva em Lisboa

Saio à rua para distrair-me, das assombrações que batem à porta. Faz frio e chove – uma chuva miudinha e persistente; a tentação de andar sem guarda chuva é grande, e eu não lhe resisto. Depois, vejo que péssima ideia, porque estou encharcada de um jeito sutil, miudinho tal qual esta chuva que cai e se entranha até aos ossos sem que eu perceba. Lisboa é assim: deixa-se andar, a sol ou a chuva, sem que se percebam de antemão os problemas. Depois, quando chegam, é praticamente sempre tarde – as caravelas já se foram, os heróis estão enterrados, deixaram-nos a sós com os seus despojos de vida. Museus abarrotados de coisas que já não são nossas, porque estamos longe de ser aqueles que fomos. Na verdade, foram outros que o foram; não passamos de cópias mal feitas daqueles que queríamos ter sido.

Vou até à estação e apanho o comboio. O Cais do Sodré continua no mesmo lugar e pela mesma calçada de sempre subo pela Rua do Alecrim acima. Passo os olhos pelo Camões, que lá continua também no mesmo lugar, mas mais limpo do que me lembro. O meu destino é o Chiado, onde me quero sentar para ver se, desdizendo a memória seletiva que cada vez mais percebo em mim, me lembro de como era.

Sento-me na mesma cadeira que Pessoa talvez tenha ocupado muitas vezes e deve ser a sua inspiração que me faz pensar em ir almoçar ao Martinho da Arcada, espécime raro de restaurante que sobrevive aos séculos, lá embaixo no Terreiro do Paço - mas lá começou a chover outra vez e eu fico-me por aqui.

Gosto de estar aqui, no Chiado, em missão contemplativa das horas a passar. Não sei por quanto tempo, Pessoa também não o sabia, e o que vejo difere bastante daquilo que ele via. Isso se olho pra fora, porque aqui dentro é diferente. Os que estão aqui sentados, nas mesmas cadeiras de palhinha e às mesmas mesas de mármore, parecem parados no tempo, porque a modernidade fica sentada lá fora, fotografando a estátua que fizeram em bronze, imortalizando algo que já não é mais e não passa de uma anedota que não vale a pena. A mania das glórias passadas é um dos passatempos preferidos dos lisboetas. E os turistas logo se encantam com a superfície, e esquecem-se de ir pelas vielas escuras e pelas calçadas sem fama.

24/03/2010

De Lisboa, uma destas noites

As Portas de Santo Antão, ao lado do Rossio, abrigam uma das mais antigas e populares casas de espetáculos de Lisboa, o Coliseu dos Recreios. A poucos passos lá está o teatro Dona Maria (com um incrivelmente bem representado Édipo Rei para o qual, por mais que apele, não consigo bilhetes...), edifício sério e nobre, tão pintado de fresco que até parece falso. O Coliseu abriu as portas na Lisboa de 1890 com a intenção de ser um espaço acessível ao povo, com preços baixos e espetáculos variados, que nessas décadas que nos separam da inauguração variaram de concertos, shows e óperas a apresentações circenses com elefantes e camelos. Bem em frente está o Politeama, o mais famoso teatro de revista em Lisboa (em cartaz, nova versão de A gaiola das loucas), e em volta mil e uma tasquinhas populares, cheias de bifanas e pregos e outros petiscos, a centenária “Ginginha sem rival” e outras portas, na maioria das vezes pequenas, que os lisboetas ocupam profusamente, seja lá que dia da semana for. Hoje, como em outros tempos, apesar de ser uma quarta feira, as ruas estão cheias de gente que vai ao teatro. Chegam mais cedo para petiscar alguma coisa, beber uns copos e encontrar os amigos, ruidosos e animados, a mandarem vir mais um jarro de vinho tinto da casa ou mais uma imperial, acompanhados de uns pastéis de bacalhau para enganar a fome. O importante é pedir a bebida primeiro, logo se há de ter tempo para o conduto, que é como o meu pai se referia à matéria mastigável. Em todas as tascas há sopa – e eu adoro as sopas desta cidade, e por muito que o resto me tente, fico-me com uma sopa juliana e logo a seguir uma sopa de couves temperada com hortelã, que é o segredo que lhe dá o cheiro que vem a voar, como num desenho animado, desde a cozinha pequena ao fundo do corredor que é esta tasca. Acabo a correr, porque já são horas.


O Coliseu está cheio, não há mais lugares e eu sorrio satisfeita por ter encontrado ainda alguns bilhetes para ver o espetáculo de hoje: Joan Baez ao vivo e a cores. Há muitos anos que não entro no Coliseu – exatos 27. Quem ocupava o palco naquele dia era Zeca Afonso. Cantava em público pela última vez, diante de uma plateia emocionada por sabê-lo de antemão perto do fim. A esclerose lateral amiotrófica que o consumia (mesma doença com que luta Stephen Hawking) evidenciava-se, mesmo para quem o via longe do palco, e levou-o 3 anos e bastante sofrimento depois. Começou, lembro-me, com um dos mais bonitos fados de Coimbra (“Do Choupal até à Lapa”) e aos poucos lá veio em direção ao Alentejo e levou-nos a todos às lágrimas com a Grândola Vila Morena que marcou o incrível ano de 1974.


O Coliseu de hoje está recuperado, obedecendo ao movimento que fez com que, nos últimos anos, Lisboa inteira pareça ter se preparado para uma festa. As galerias e os camarotes encontram-se remoçados e mais bonitos, tudo pintado; todos os bocais do grande candelabro, famoso à altura da inauguração, ostentam as lâmpadas que em outros tempos faltavam.


Assim que entra, Joan Baez canta logo uma das suas novas músicas, mas é impossível que se fique por aí, e logo chegam as que são eternas, as que todos queremos ouvir, mesmo que ela possa estar farta de as cantar. Vem um Joe Hill primeiro, Diamonds and Rust logo após, a seguir Forever Young... Com um papel na mão e um "Cantem comigo" no mais puro american english, oferece-nos a mesma Grândola do Zeca, e o Coliseu levanta-se em peso e canta tão alto que não a conseguimos ouvir. Alguém grita “25 de Abril sempre” e eu descubro que sou eu, e só por dentro, a adivinhar o que todos estão a gritar dentro de si próprios porque perdeu o sentido fazê-lo do lado de fora.


De onde estou, privilegiada que sou nestes dias de poder sentar-me em um camarote, vejo a plateia toda em pé, todos os camarotes cheios, consigo adivinhar todas as lágrimas. Joan conduz a música inteira (cantá-la inteira exigir-lhe-ia mais português do que tem), seguida de outras da mesma época, o Coliseu inteiro às portas dos tempos áureos de Woodstock. Ela ajuda, porque canta como cantava, toca como tocava, e não há nada entre ela e nós além das cordas do seu violão. À saída todas as idades se encontram à porta, cheias de sorrisos e de esperanças.


Amanhã com certeza o céu estará todo azul.

23/01/2010

Fotografias

Perambulando por um dos corredores do hospital universitário, um dia destes, dei comigo parada diante das fotografias de uma das turmas de formandos do curso de medicina. Uma das turmas mais antigas, talvez das primeiras a inaugurar essa moda da fotografia de beca. Todos vestidos da mesma maneira, esmagadora maioria masculina. Chama a minha atenção a multiplicidade de expressões em todas essas fotos. Duas delas chamam-me mais, e detenho-me um tempo maior diante delas, parafraseando a cena do filme “Sociedade dos poetas mortos” em que o professor Keating leva a turma para o hall onde estão as fotos dos ex-alunos da escola, nos tempos em que lá estudaram. Diz que é preciso prestar-lhes atenção, porque, dali onde estão imortalizados, sussurram-lhes coisas importantes dos tempos que se foram. Essas pessoas que chamam a minha atenção também me sussurram alguma coisa, mas mesmo chegando mais perto eu não as consigo ouvir. Olho-as nos olhos, e para isso tenho de encostar a testa no vidro. E escuto, por fim - dizem que seus sonhos são maiores que o tamanho das suas fotos, maiores do que as próprias fotos, no preto e branco que lhes sobrou. Mal cabem dentro deles mesmos, olham expectantes para o futuro, perguntando-se quem os olhará depois que tiverem cumprido a sua missão. Desloco-me para as vitrines das fotos mais recentes, as becas parecidas, mas tudo mais brilhante, mais estudado, preocupações diferentes dentro dos olhos. As fotografias novas não me sussurram nada. Acho que ainda não envelheceram e por isso não sabem falar.

Umas semanas atrás, ao abrir meu email, recebi algumas fotos, fotos antigas da cidade de Lisboa. Muitos chafarizes, pessoas apinhadas à sua volta numa época em que não existiam canos. Duas delas capturam-me, e sinto mover-se dentro de mim um sentimento que não consigo definir, mas me faz lembrar dos sonhos dos formandos da medicina. Um vendedor de castanhas, na sua bicicleta, olha-me intensamente do lado de lá, parecendo orgulhoso de ser fotografado e ao mesmo tempo dono de um segredo que não pode revelar. Descubro-lhe o nome, ao canto da foto: Tomé Fonseca. Logo me lembro da história que ouvi em pequena, do vendedor de castanhas de olhos azuis e pele cor de azeitona, que encantava as raparigas que frequentavam o Largo do Rato em fins do século XIX. Um dia, vendendo calmamente as suas castanhas no início do outono lisboeta, Tomé viu-se rodeado de um magote de homens. No seu português cantado, denunciando a origem a sul, Tomé quis defender-se, mas os homens eram muitos e chegaram armados de pedras e paus. As meninas que compravam castanhas fugiram em busca de suas mães, nenhuma delas sequer se virou para o defender. De nada valeu a Tomé explicar que nada sabia da menina Constança, nem sabia que tivesse sido encontrada morta na calçada da Estrela – era dele que ela comprava castanhas todos os dias, desde que começara o outono. Como não lhe tinham valido os avisos do pai de que se mantivesse longe do cigano das castanhas, agora era com eles. E nunca mais se viu o Tomé Fonseca, o cigano das castanhas.

Outra fotografia mostra uma varina descarregando o peixe de uma traineira, atracada, deduzo, ao Cais das Colunas, o mesmo que acabou de ser restaurado, dando fim às obras do Terreiro do Paço que se arrastaram desde que eu me conheço por gente. Varinas ainda as há, continuam vendendo o peixe do Mercado da Ribeira, ali mesmo ao lado do dito cais. Já não descem das traineiras atravessando a prancha estreita e comprida, num balanço na cadência dos passos descalços, alguidar de peixe à cabeça. Manobra arriscada, essa do desembarcar o peixe - varinas eram mulheres de respeito, usavam chinelas bordadas a fio de ouro e representam a cidade de Lisboa na sua melhor forma quinhentista. Hoje, cada uma em sua barraca, continuam aos berros a vender o seu peixe. Lançam elogios aos rapazes que passam e agradam, desatam aos palavrões gritados quando alguém as chateia e não estão quietas um segundo – “Ó menina! Venha cá ver este pargo, está a querer lançar-se dentro da sua panela!”

Eu não cresci em Lisboa, mas mercado de peixe é o que mais há por todo Portugal. Dia de feira de peixe é dia de cheiro de peixe por todo lado, tudo fresco e acabado de pescar, e as mesmas varinas, que em outras cidades são as mulheres do peixe e ponto, gritam da mesma maneira. Metade do baixo calão que aprendi na infância foi com elas, enquanto a minha avó se desesperava para que saíssemos logo dali, que a minha língua segundo ela já era afiada o suficiente. Acho que, secretamente, ela gostava que eu visse como o mundo é variado, sempre ao seu lado e de mão dada, não fosse eu querer perder-me dentro dele.

Descubro, com essas fotografias que me coloriram estes dias, o quanto tudo faz parte de cada um, ainda que pouco ou nada se conheça. Pelo poder que tem de despertar o que dorme, a imagem apodera-se das nossas lembranças e distorce-as, alimenta-as, espreme-as, enovela-se pelo meio delas e obriga a que se atualizem ou, na pior (ou melhor?!) das hipóteses, que se inventem a si mesmas. É só permitir que aconteça e abrir a cortina que nos divide em possíveis impossíveis e impossíveis possíveis.