Versos em epígrafe do "Fado perdição", de Maria Duarte.
09/03/2014
O outro nome
Versos em epígrafe do "Fado perdição", de Maria Duarte.
O amor é uma companhia
08/03/2014
A cidade feita de luz
25/04/2010
O sonho que, unido, jamais será vencido
03/04/2010
Fotografia nova na parede da sala
26/03/2010
Dia de chuva em Lisboa
Vou até à estação e apanho o comboio. O Cais do Sodré continua no mesmo lugar e pela mesma calçada de sempre subo pela Rua do Alecrim acima. Passo os olhos pelo Camões, que lá continua também no mesmo lugar, mas mais limpo do que me lembro. O meu destino é o Chiado, onde me quero sentar para ver se, desdizendo a memória seletiva que cada vez mais percebo em mim, me lembro de como era.
Sento-me na mesma cadeira que Pessoa talvez tenha ocupado muitas vezes e deve ser a sua inspiração que me faz pensar em ir almoçar ao Martinho da Arcada, espécime raro de restaurante que sobrevive aos séculos, lá embaixo no Terreiro do Paço - mas lá começou a chover outra vez e eu fico-me por aqui.
Gosto de estar aqui, no Chiado, em missão contemplativa das horas a passar. Não sei por quanto tempo, Pessoa também não o sabia, e o que vejo difere bastante daquilo que ele via. Isso se olho pra fora, porque aqui dentro é diferente. Os que estão aqui sentados, nas mesmas cadeiras de palhinha e às mesmas mesas de mármore, parecem parados no tempo, porque a modernidade fica sentada lá fora, fotografando a estátua que fizeram em bronze, imortalizando algo que já não é mais e não passa de uma anedota que não vale a pena. A mania das glórias passadas é um dos passatempos preferidos dos lisboetas. E os turistas logo se encantam com a superfície, e esquecem-se de ir pelas vielas escuras e pelas calçadas sem fama.
24/03/2010
De Lisboa, uma destas noites
As Portas de Santo Antão, ao lado do Rossio, abrigam uma das mais antigas e populares casas de espetáculos de Lisboa, o Coliseu dos Recreios. A poucos passos lá está o teatro Dona Maria (com um incrivelmente bem representado Édipo Rei para o qual, por mais que apele, não consigo bilhetes...), edifício sério e nobre, tão pintado de fresco que até parece falso. O Coliseu abriu as portas na Lisboa de 1890 com a intenção de ser um espaço acessível ao povo, com preços baixos e espetáculos variados, que nessas décadas que nos separam da inauguração variaram de concertos, shows e óperas a apresentações circenses com elefantes e camelos. Bem em frente está o Politeama, o mais famoso teatro de revista em Lisboa (em cartaz, nova versão de A gaiola das loucas), e em volta mil e uma tasquinhas populares, cheias de bifanas e pregos e outros petiscos, a centenária “Ginginha sem rival” e outras portas, na maioria das vezes pequenas, que os lisboetas ocupam profusamente, seja lá que dia da semana for. Hoje, como em outros tempos, apesar de ser uma quarta feira, as ruas estão cheias de gente que vai ao teatro. Chegam mais cedo para petiscar alguma coisa, beber uns copos e encontrar os amigos, ruidosos e animados, a mandarem vir mais um jarro de vinho tinto da casa ou mais uma imperial, acompanhados de uns pastéis de bacalhau para enganar a fome. O importante é pedir a bebida primeiro, logo se há de ter tempo para o conduto, que é como o meu pai se referia à matéria mastigável. Em todas as tascas há sopa – e eu adoro as sopas desta cidade, e por muito que o resto me tente, fico-me com uma sopa juliana e logo a seguir uma sopa de couves temperada com hortelã, que é o segredo que lhe dá o cheiro que vem a voar, como num desenho animado, desde a cozinha pequena ao fundo do corredor que é esta tasca. Acabo a correr, porque já são horas.
O Coliseu está cheio, não há mais lugares e eu sorrio satisfeita por ter encontrado ainda alguns bilhetes para ver o espetáculo de hoje: Joan Baez ao vivo e a cores. Há muitos anos que não entro no Coliseu – exatos 27. Quem ocupava o palco naquele dia era Zeca Afonso. Cantava em público pela última vez, diante de uma plateia emocionada por sabê-lo de antemão perto do fim. A esclerose lateral amiotrófica que o consumia (mesma doença com que luta Stephen Hawking) evidenciava-se, mesmo para quem o via longe do palco, e levou-o 3 anos e bastante sofrimento depois. Começou, lembro-me, com um dos mais bonitos fados de Coimbra (“Do Choupal até à Lapa”) e aos poucos lá veio em direção ao Alentejo e levou-nos a todos às lágrimas com a Grândola Vila Morena que marcou o incrível ano de 1974.
O Coliseu de hoje está recuperado, obedecendo ao movimento que fez com que, nos últimos anos, Lisboa inteira pareça ter se preparado para uma festa. As galerias e os camarotes encontram-se remoçados e mais bonitos, tudo pintado; todos os bocais do grande candelabro, famoso à altura da inauguração, ostentam as lâmpadas que em outros tempos faltavam.
Assim que entra, Joan Baez canta logo uma das suas novas músicas, mas é impossível que se fique por aí, e logo chegam as que são eternas, as que todos queremos ouvir, mesmo que ela possa estar farta de as cantar. Vem um Joe Hill primeiro, Diamonds and Rust logo após, a seguir Forever Young... Com um papel na mão e um "Cantem comigo" no mais puro american english, oferece-nos a mesma Grândola do Zeca, e o Coliseu levanta-se em peso e canta tão alto que não a conseguimos ouvir. Alguém grita “25 de Abril sempre” e eu descubro que sou eu, e só por dentro, a adivinhar o que todos estão a gritar dentro de si próprios porque perdeu o sentido fazê-lo do lado de fora.
De onde estou, privilegiada que sou nestes dias de poder sentar-me em um camarote, vejo a plateia toda em pé, todos os camarotes cheios, consigo adivinhar todas as lágrimas. Joan conduz a música inteira (cantá-la inteira exigir-lhe-ia mais português do que tem), seguida de outras da mesma época, o Coliseu inteiro às portas dos tempos áureos de Woodstock. Ela ajuda, porque canta como cantava, toca como tocava, e não há nada entre ela e nós além das cordas do seu violão. À saída todas as idades se encontram à porta, cheias de sorrisos e de esperanças.
Amanhã com certeza o céu estará todo azul.
23/01/2010
Fotografias
Umas semanas atrás, ao abrir meu email, recebi algumas fotos, fotos antigas da cidade de Lisboa. Muitos chafarizes, pessoas apinhadas à sua volta numa época em que não existiam canos. Duas delas capturam-me, e sinto mover-se dentro de mim um sentimento que não consigo definir, mas me faz lembrar dos sonhos dos formandos da medicina. Um vendedor de castanhas, na sua bicicleta, olha-me intensamente do lado de lá, parecendo orgulhoso de ser fotografado e ao mesmo tempo dono de um segredo que não pode revelar. Descubro-lhe o nome, ao canto da foto: Tomé Fonseca. Logo me lembro da história que ouvi em pequena, do vendedor de castanhas de olhos azuis e pele cor de azeitona, que encantava as raparigas que frequentavam o Largo do Rato em fins do século XIX. Um dia, vendendo calmamente as suas castanhas no início do outono lisboeta, Tomé viu-se rodeado de um magote de homens. No seu português cantado, denunciando a origem a sul, Tomé quis defender-se, mas os homens eram muitos e chegaram armados de pedras e paus. As meninas que compravam castanhas fugiram em busca de suas mães, nenhuma delas sequer se virou para o defender. De nada valeu a Tomé explicar que nada sabia da menina Constança, nem sabia que tivesse sido encontrada morta na calçada da Estrela – era dele que ela comprava castanhas todos os dias, desde que começara o outono. Como não lhe tinham valido os avisos do pai de que se mantivesse longe do cigano das castanhas, agora era com eles. E nunca mais se viu o Tomé Fonseca, o cigano das castanhas.
Outra fotografia mostra uma varina descarregando o peixe de uma traineira, atracada, deduzo, ao Cais das Colunas, o mesmo que acabou de ser restaurado, dando fim às obras do Terreiro do Paço que se arrastaram desde que eu me conheço por gente. Varinas ainda as há, continuam vendendo o peixe do Mercado da Ribeira, ali mesmo ao lado do dito cais. Já não descem das traineiras atravessando a prancha estreita e comprida, num balanço na cadência dos passos descalços, alguidar de peixe à cabeça. Manobra arriscada, essa do desembarcar o peixe - varinas eram mulheres de respeito, usavam chinelas bordadas a fio de ouro e representam a cidade de Lisboa na sua melhor forma quinhentista. Hoje, cada uma em sua barraca, continuam aos berros a vender o seu peixe. Lançam elogios aos rapazes que passam e agradam, desatam aos palavrões gritados quando alguém as chateia e não estão quietas um segundo – “Ó menina! Venha cá ver este pargo, está a querer lançar-se dentro da sua panela!”
Eu não cresci em Lisboa, mas mercado de peixe é o que mais há por todo Portugal. Dia de feira de peixe é dia de cheiro de peixe por todo lado, tudo fresco e acabado de pescar, e as mesmas varinas, que em outras cidades são as mulheres do peixe e ponto, gritam da mesma maneira. Metade do baixo calão que aprendi na infância foi com elas, enquanto a minha avó se desesperava para que saíssemos logo dali, que a minha língua segundo ela já era afiada o suficiente. Acho que, secretamente, ela gostava que eu visse como o mundo é variado, sempre ao seu lado e de mão dada, não fosse eu querer perder-me dentro dele.
Descubro, com essas fotografias que me coloriram estes dias, o quanto tudo faz parte de cada um, ainda que pouco ou nada se conheça. Pelo poder que tem de despertar o que dorme, a imagem apodera-se das nossas lembranças e distorce-as, alimenta-as, espreme-as, enovela-se pelo meio delas e obriga a que se atualizem ou, na pior (ou melhor?!) das hipóteses, que se inventem a si mesmas. É só permitir que aconteça e abrir a cortina que nos divide em possíveis impossíveis e impossíveis possíveis.