Mostrando postagens com marcador internet. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador internet. Mostrar todas as postagens

13/06/2017

Trilhos


Um aluno entra aflito pela porta do Quinta Palavra hoje cedo. Diz-me Ana, não consigo mais escrever. Não consigo mais ter ideias. Não consigo mais que palavras fluam de dentro dos meus dedos, como você já me fez acreditar. Não, não é bloqueio passageiro, nem tente: é fato dito e consumado. As palavras já não me aparecem de manhã cedo, nem correm (andando já seria bom) na minha direção. Já fiz de tudo, e o fato é um só: tudo o que escreva tem alguém que está escrevendo. Não, não é que tudo já foi escrito. É que tudo está sendo escrito! Alguém, algum lugar, está tendo as minhas mesmas ideias e escrevendo as mesmas minhas palavras. Para que, então, sentar-me e despejar palavras que outro já tem para si?

Peço-lhe que respire, porque tudo isso foi assim como num jato, um acesso de palavra em vez de tosse. Vamos tomar um chá, que é sempre bom pra acalmar ou entusiasmar os nervos. Diz-me não, preciso ir ao banco, e logo depois ao outro banco, e ainda o supermercado e enfim: preciso trabalhar. E sai, igual chegou, aflito e atapetando a calçada com suas palavras.

Claro que me preocupo. Sei como é difícil lidar com a falta, essa coisa que alguns chamam de "inspiração". Quando não encontramos palavras. Quando só se ergue um deserto de nada diante de nós, papel em branco por todos os lados. Só que não é isso.

Gravei a última parte: alguém deve estar escrevendo o que eu mesmo escreveria. Soa-me imediático, digamos assim. Instantâneo. De onde tira ele que alguém escreve as mesmas palavras que ele? Internet, claro, esse recurso que nos permite estar à distância de um olho de absolutamente tudo e todos no mundo. Hoje cedo, veja bem, conversava com Siddartha, que é professor waldorf, ex-menino órfão com necessidades especiais, no distante Nepal. Sequer sonha em conhecer o Brasil mas conversa comigo como se fosse meu vizinho, e eu com ele a mesma coisa. Não é bem um problema, mas continuo achando estranho.

Procuro meu aluno no facebook, essa vitrine de pequenos nadas.

Ninguém pensaria em bloqueio. Ou em desespero. Aflição. Sua atuação é divertida, um pouco cínica talvez... parece descrente destas coisas políticas (afinal quem não), mas ri-se aqui e ali, ouve música, comove-se com frases de efeito e autoria duvidosa. Aliás: tudo isso muitas vezes. Vezes demais, talvez. Várias postagens em menos de uma hora, e uma hora depois a mesma coisa... Agora mesmo (mas não ia ao banco?!).

Eu me pergunto se Santos Dumont teria voado alguma coisa se soubesse que os Wright andavam tendo as mesmas ideias. Se, entre o desenho de uma asa e um pensamento aerodinâmico, fosse checar ao computador se fulano já lhe respondeu o email do orçamento dos parafusos e aproveitasse pra dar uma conferidinha nos likes do face. Sim, imagino que ao longo do processo tenham sabido uns dos outros (Oswald de Andrade passeando pra lá e pra cá entre São Paulo e Paris levaria e traria sem dúvida notícias, no mínimo), capaz que logo até se encontraram e Dumont não deve nem ter tirado o chapéu para cumprimentar. Nem preciso do google pra saber disso. Mas ali, logo no começo, no momento do gérmen da ideia, quando as chispas voavam no espaço sideral sobre sua cabeça e do Demoiselle só se ouvia o farfalhar das asas... Isolamento e solidão são fundamentais. E não saber de nada pode ser bem bom, ainda que sucumbamos a essa mania moderna de "estarmos informados cof cof cof".

Ontem mesmo, a meio de uma aula, quando um outro aluno de repente exclamou "ah! eu tive uma ideia bacana! vou colocar duas personagens num bar, e vou fazê-las ir pro bar de tempos em tempos, e vou fazer elas criarem uma relação entre elas que só rola ali mesmo, no balcão do bar", eu TIVE que logo alinhar um "já viu Cheers?", e ainda me levantar e ir buscar à estante os dvd's empoeirados com um Sam Malone anos 80 na capa. Quem perguntou? Quem é que estava interessado na referência? Quem precisava saber disso? Mania que temos de relacionar eternamente as coisas, só para sabermos que tudo já foi escrito, tudo já foi inventado, tudo já foi feito. Cheer's ficou aqui na mesa e eu torço para que a minha intromissão não retire vontade ao coitado do aluno.

Procure por "tiny houses" no youtube. Centenas de videos ensinam a projetar, construir e resolver como morar em espaços pequenos que nos retirem dos afãs consumistas e nos projetem na direção de uma vida mais simples, mais leve e mais humana. Fantástico. Procure por "viagens em kombi". Zilhões. Qualquer ideia que você tenha, alguém também teve ou tem, e em 5 minutos vai compartilhá-la na rede.

Pode ser muito útil quando você quer fazer uma coisa. Mas é deletério quando você quer ser e viver de forma criativa. Porque o que já está feito pode retirar-lhe forças - as forças que o levarão a tropeçar nos lugares em que outros tropeçaram. Perda de tempo? Longe disso: aprendizado. É do tropeço que nasce o aprendizado. Sem tropeçar, meu amigo, você não descobre de que matéria é feito seu pé, quais os terrenos que lhe são propícios, quais tipos de fungos o atacam e qual tipo de calçado lhe é favorável.

Espero aquele primeiro aluno daqui a pouco. Rejeitou o chá mas não rejeitou o almoço. E agora eu já posso dizer-lhe duas coisas. Uma, que desligue o wifi. Duas, que não confunda criação com originalidade. Criar é tirar do nada: se você estiver cheio do que já foi dito, feito, escrito, vai encobrir a sua própria palavra. A palavra que sai de dentro de você nunca será igual à que sai de dentro de outro. Portanto: ainda que as palavras sejam as mesmas, os textos sempre serão distintos. E os trilhos de trem da foto ali em cima? Sempre linhas retas de ferro indo na mesma direção, abrindo caminhos e picadas onde era mata fechada. É preciso pisar em cima deles e deixar-se levar, tanto faz se alguém já andou por eles ou não. Quem faz a sua viagem é você.

Boa semana pra todos!


Foto: Daniel dos Santos

15/06/2013

Amigos de longe

Com a internet regularizada em casa, é momento de voltar ao contato de quem está longe. Passo a manhã nisso, janela do skype aberta.

Começo pelos filhos que moram do outro lado do mar, e que me oferecem meia hora de prosa como se estivéssemos aqui um ao lado do outro, como em outras épocas que quase parecem vidas passadas. Desligo e fica essa sensação de vazio tão grande. Quase era melhor não falar. E rio-me. Nada disso: amanhã ligo de novo.

Amigos que estão dispersos aqui e ali. Tão bom tê-los a todos assim, à distância de um clique. Prefiro sem câmera, para que a vontade do abraço fique onde está, dentro do coração, e não seja tentada a atravessar os olhos. A cada nova conversa, a vontade de escrever para dizer mais do que já foi dito, ou talvez para dizer a mesma coisa, mas dessa forma palpável a que se pode voltar uma e outra vez. E agora que os tenho tão perto, mais lhes sinto a falta. Talvez porque estes amigos me devolvam a justa medida de mim mesma, talvez porque ouça nas suas vozes o espanto por umas coisas e a anuência de outras. Como se me dissessem "nisso eu te reconheço" ou "pareces outra pessoa agora, por onde foi que andaste?". Guardo-lhes algumas frases, aqui no papel, para poder voltar-lhes depois. A essa forma tão exata que têm de perceberem aquilo que de nós se projeta.

Volto desses encontros cheia de novidades suculentas. Uns, oferecem-me novos poetas; vão até à prateleira rapidinho para me apresentarem aos versos de que mais gostam. Outros lembram-se depois de duas horas que ainda não almoçaram, e sinto que se despedem porque o relógio acusa o tempo e não porque a alma o solicite. E outros, que já almoçaram mas precisam lavar a louça, ficam contentes porque, enquanto a lavam vamos conversando, com o tilintar dos talheres ensaboados como música de fundo.

Passam-se meses, às vezes anos. Quase nunca nos vemos. Mas as nossas palavras são as mesmas, e reencontram-se sorridentes através desse mundo que nem de fios mais precisa para se comunicar. Rimo-nos das mesmas coisas a léguas de distância. Sabemos de que dores o outro fala. Sabemos que o embargo da voz é a lágrima presa. Que o silêncio compassado é a dor que não alivia. Que o riso que interrompe a frase é daquilo que já se sabe mas ainda não se assume, porque não é tempo.  E não dizemos nada, porque não é preciso. Sabemos do que os amigos falam, não porque sintamos o mesmo, mas porque sabemos de que tom de vermelho está constituído o coração de quem amamos. O coração desses de quem, talvez por pudor, dizemos sermos amigos em vez de dizermos que amamos. Porque reservamos o amor para aqueles seres raros que nos cortam a respiração. E talvez porque esqueçamos que amizade é amor. E que amor nunca é demais.


Foto: Pedro Ozório


28/09/2011

Audiovisuais


Há muitos anos atrás, minha mãe chegou a casa entusiasmada com um novo recurso educacional. Creio que estávamos no segundo semestre de 1974, quando todas as novidades possíveis, especialmente as ideológicas, inundavam as ruas do país em que se fez a revolução dos cravos. A cidade em que estávamos vira nascer o primeiro faiscar do movimento, e talvez por isso o ar se respirasse mais carregado de sonhos. Minha mãe, professora da escola técnica, tornara-se responsável pelo setor de audiovisuais, decisão que deve ter-lhe custado, interessada como era por tudo quanto era assunto, da escolha das cadeiras novas das salas de aula aos “contentores” do novo processo da recolha do lixo da escola. Mas a menina dos olhos eram os audiovisuais, e sob sua responsabilidade ficaram. Professora de línguas, recém chegada de uma temporada em Londres e recém apresentada ao psicólogo americano Carl Rogers, era tanto o seu entusiasmo que meu pai suspirava a cada vez que precisava escutar, mais uma vez, sobre as incríveis possibilidades que oferecem o mundo da imagem e do som, e tudo o que existia escondido e agora se havia descoberto, e Tóino, ouve o que te digo, vamos revolucionar o ensino de uma vez por todas!

Nesse dia de maior entusiasmo, o sorriso transbordava logo à entrada de casa, interferindo numa das minhas ocupações favoritas - ouvir no rádio um daqueles programas cuja fórmula simpática reside em poder telefonar pedindo uma música e ser atendido – seu nome era “Quando o telefone toca”, e era conduzido pelo António Sérgio (aposto que haverá quem se lembre!). O motivo de tamanho entusiasmo materno era o ter descoberto uma forma fantástica de avaliar seu próprio trabalho – filmar-se a si mesma (e aos alunos) em sala de aula, podendo conferir logo depois a sua atuação, corrigindo-a a partir daí. Implacavelmente.

Tanto meu pai quanto eu achamos interessante, muito bem, e fomos jantar. Em pouco tempo chegariam os alunos particulares de alemão, minha mãe lá iria para a pequena sala onde dava essas aulas, e de manhã cedo sairíamos todos, cada qual para sua escola. Uma vida corrida, a da minha mãe, que ainda queria conferir-se a si mesma, não sei bem em que momento do dia.

Ficou-me isso na memória – assim como o dia em que descobriu que eu fumava e automaticamente, e até hoje, deixou de fumar. Alguns aprendizados fazem-se assim: cortam os males pela raiz (embora eu tenha continuado fumante por uns bons anos) e ficam para sempre impressos a fogo na memória. Não nos largam jamais e tornam-se inspirações do nosso cotidiano.

Lembrei-me disso hoje porque descobri por acaso uma palestra que dei há uns meses, gravada. Não a tinha visto, nem achei que aquele senhor atrás daquela câmera pudesse mais tarde transformar-se de fato em mim mesma diante de mim, presa num passado que provavelmente gostaria de mudar. Pus-me a assisti-la, torcendo-me a cada novo minuto, dos longos 47 que a compõem, incomodada com aquele trejeito, com a palavra mal usada, o exemplo desnecessário, o detalhe um tanto impertinente, a insistência estúpida no que já se explicou à exaustão... Nem consigo terminar de ver de uma só vez, é aflição demais. Gostaria de poder telefonar a minha mãe e perguntar-lhe como sobrevivia a ver a quantidade de bobagens que fazemos – a menos que seja eu apenas a fazê-las, mas como minha dosagem de auto-estima está hoje nos seus limites normais, não me parece que seja façanha de minha exclusividade. Se por acaso meu pai pudesse atender o telefone, haveria certamente de rir-se e abanar a cabeça de um jeito peculiar só seu, um “tal mãe, tal filha” mudo que eu veria sem olhos deste lado do Atlântico. Não posso telefonar a um, porque não deixou o número quanto partiu para a próxima vida, e não posso telefonar a outro, porque a estas horas dorme a sono solto. Restam-me o papel, a caneta e esta janela em que se transformou a internet de cada dia. Como os audiovisuais revolucionários da minha mãe, assustam-nos tantos novos recursos, os facebooks que podem devassar-nos a vida sem que queiramos que o façam;  usamo-los canhestramente algumas vezes, com sabedoria outras, numa tentativa de dominar os dragões do mundo. Como se uma nossa porção micaélica nos fosse enviada do passado para alcançarmos o futuro.

07/03/2011

História feita de emails

Passei horas hoje à tarde fazendo história: lendo e relendo mensagens enviadas e recebidas há anos, todas guardadinhas na minha caixa de emails. Para dias que despertam com uma aura de melancolia que não se apaga, mas ainda assim não oferecem riscos de tristeza, como esta segunda gorda de Carnaval encaminhando-se para o frio noturno, é um prato cheio.

Assim, fui passear pelo passado da comunicação virtual, à procura de pequenas pérolas que a frequentaram e se deixaram guardar – um novo projeto em curso. Como caixa de Pandora, levanta-se de tudo à minha aproximação, e é preciso que me mantenha alerta e vigilante, para que afinal a tristeza não se agregue ao dia cinzento e me derrube da precária rede em que vim cair.

Poderia compor uma história de vida com fragmentos de emails; as frequências e as infrequências, o que não deveria ter sido escrito (mas foi e, pior, enviado), o que deixou de ser lido e que agora dói nos olhos por não ter tido a resposta que merecia, e agora é tarde, tanto que arde, como queria o coelho da Alice.

Há de tudo pelo caminho, pedras e plumas, sonhos compartilhados, planos vários, uns concluídos, outros abandonados. Convites bem humorados, feitos e recebidos: uns respondidos, outros desconsiderados. Pedidos de ajuda, tentativas de conquista. Sugestões de leitura, indicação de remédio para mil e uma ocasiões. Opiniões sinceras e amigas ao lado das farpas que quase encaminho para a lixeira, mas cuidado: o que não vale hoje, valerá amanhã quem sabe, e por isso a minha lixeira não guarda quase nada, porque tudo eu devo ter merecido, acho até que o que chegou por engano.

Entre os bem antigos, com data de outras décadas, encontro o aroma de quem já se foi; não fossem dois ou três emails trocados e guardados, nada teria ficado que me fizesse chorar, e o choro não me entristece, antes revigora e ilumina todos os que estão ao meu lado.

Ainda assim, volto rápido ao passado mais próximo, porque eu já sei de que cor está hoje a minha alma. Retomo caminhos abandonados. Mas não sei quem abandonou quem - e se fui eu, será que volto? O dia não está para dúvidas, nem meu coração para retomadas sem motivo, mantenho-me no registro histórico e nada preciso mudar do presente quase pretérito ainda não futuro.

Descubro coisas minhas que esqueci, textos que imaginava para sempre perdidos. Uns, até, que nem lembrava ter escrito, e pelos quais me alegro (imensamente!) ter sido a única destinatária. Não valem a leitura alheia.

Pesquiso por nome: comprovo que a memória é fraca, e espanto-me com a quantidade de coisas que nos dizemos e depois esquecemos. A quantidade de perguntas sem resposta. As respostas a perguntas que sequer foram feitas. E um espaço aberto, imenso, gigantesco, feito do mais puro esquecimento. Uns silêncios diferentes daqueles que se deixaram tão somente de dizer: aqueles que foram criados para que do outro lado se mastigue pelos ouvidos um “não vou dizer” que nunca se dirá. E por isso sem resposta. Esse espaço abre-se como chaga, e esse eu não tenho intenção de suportar.

Dirijo-me ao setor das alegrias, das risadas, do humor rosa e negro, das mensagens sem sentido defendendo as causas mais indefensáveis, os sofistas de plantão, os hábeis argumentadores, as ofertas de produtos e serviços.

Entre toda essa teia, há presenças que se mantêm por anos; há os que me frequentaram durante um tempo e depois se afastaram – uns de repente, outros mansos e lentamente. Sinto saudades e falta de alguns – ou do tempo em que estavam, aquele hoje irrecuperável. Ainda assim, porque estou diante deles e a cor é a mesma, porque o amarelado do tempo não marca as telas dos computadores, posso imaginar que está tudo ainda vivo, e forte, e pulsante e entusiasmante. Um dos milagres da virtualidade, quem sabe. 

24/02/2011

Distorções ideológicas


Tive um professor querido de História, muitos anos atrás, que me explicou de forma exemplar o que é ideologia. Ideologia, dizia ele, é o seguinte: você passa muitos e muitos anos (por exemplo) odiando ler, repudiando tudo o que seja matéria impressa; num certo momento, percebe a importância da leitura, e passa entusiasmado ao estatuto de leitor contumaz. Porém, o mundo lá fora, que tudo observa, permanece com o você antigo, aquele que não gostava de ler, e por mais que você diga, prove, leia!, nada convence ninguém de que você mudou, que as coisas mudaram, que agora não só você reconhece o valor e o prazer de ler, mas lê o dia inteiro. Ideologia é isso: a permanência de uma determinada forma de pensar a respeito de uma realidade que,entretanto, já mudou e não é a mesma. Hoje eu sei que ele se apoiou nas reflexões de Marilena Chauí, mas na altura essa explicação me cativou.

O pensamento ideológico tem uma missão importante, ainda que inconsciente: convencer o resto do mundo que a mudança não aconteceu. O pensamento ideológico sai às ruas enérgico para comprovar, constatar, convencer e provar o que lhe parece óbvio: você não lê e não gosta de ler. Os fins, aqui, justificam os meios, e por isso a liberdade é irrestrita para camuflar, distorcer, omitir ou corroer fatos e informações. Vale tudo, porque há uma missão em jogo, há uma luta em campo que não é racional, mas absolutamente passional. O ser humano tem problemas com a desacomodação e a mudança – por isso, mais fácil garantir que nada mudou e que podemos continuar reclamando, eternamente, das mesmas coisas. Ainda que não existam mais. A sorte é que, como agora você gosta e lê, sabe disso e não se incomoda tanto. Até entende, quem sabe se magnânimo...

Os caminhos do pensamento ideológico são muitos, e todos estamos à sua mercê. O email que circula há algum tempo pela internet, com uma redação de uma aluna da UFRJ, pretensa ganhadora de um prêmio concedido pela UNESCO entre outros 50000 estudantes, é uma prova fantástica deste assunto. Ora vejam:

O email em questão conta que Clarice-alguma-coisa, aluna do último ano do curso de Direito da UFRJ, ganhou um prêmio concedido pela UNESCO, pela sua redação sobre o fim da pobreza e da desigualdade. Segue-se o email com o texto na íntegra, e ao final solicita-se que se encaminhe adiante, e assim “aos poucos vamos acordar este Brasil!”

Convém saber que o texto da estudante não ganhou o concurso, mas foi selecionado, com outros 100 textos, para integrar uma publicação da Folha Dirigida em parceria com a UNESCO (ou vice-versa, para não me acusarem de distorção!). Foram 42.000 estudantes, e todos eles brasileiros universitários, porque o concurso, que dá a impressão de ser mundial, aconteceu apenas no Brasil. A publicação tem a data de 2006-2007, e está disponível no site http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001576/157625m.pdf.

A intenção da UNESCO não foi destacar o bom uso da língua, a clareza na exposição das ideias, a articulação equilibrada, a coesão trabalhada. Talvez, se fosse, a estudante de 26 anos tivesse uma nota razoável, apesar de não ser um texto exemplar e de, dependendo do ponto de vista, ter as qualidades necessárias a uma prova de ingresso à universidade e não as que se presumem necessárias a uma já-quase advogada.

A intenção foi justamente dar relevância a boas ideias que combatam e a pobreza e a desigualdade, conforme reza o título da publicação, e não a habilidade para “construir belas frases com palavras simples”, como elogia anonimamente quem coloca o texto em circulação. É claro que vemos e percebemos da realidade aquilo que a nossa percepção e história pessoal informa; é claro que a pluralidade de opiniões é a garantia da nossa democracia. Mas choca-me que a UNESCO consiga entender representativas da realidade brasileira as ideias expressas pela estudante, por muito irrepreensível (e não é) que seja seu texto. Se ainda penso que é uma aluna de último ano de Direito, mais me espanta e incomoda. E quando vejo que é aluna de uma universidade federal, pior ainda.

"Abundância de falta de solidariedade" e "exagero de falta de caráter" (para não passar do primeiro parágrafo) são expressões fortes demais para caracterizar um país onde precisamos de muitos e muitos dedos de muitas mãos para contar exemplos justamente do contrário. Eu sei (e por isso aquela introdução no início deste texto) que dificilmente se constrói um discurso ideologicamente livre, mas há limites, e uma estudante de último ano de Direito deveria ter construído, ao longo do seu tempo de estudo, a capacidade de olhar em volta com os olhos abertos. Seu texto está repleto de lugares comuns e chavões como aqueles que ouvimos repetidamente, que elegem o Tiririca como exemplo acabado do congresso que acaba de ser eleito, ignorando os tantos e tantos deputados capazes e honestos que povoam a Câmara. Joga-se o bebê, a água do banho e a própria bacia. Bastante fácil levantar bandeira por revoluções e reformas estruturais, sem perceber as que estão em curso, e que permitiram, inclusive, que a autora do texto chegasse a seu último ano de um curso de Direito do calibre do curso da UFRJ, "vítima" dos investimentos fantásticos que o Governo Federal fez nos últimos 8 anos no ensino superior público.

O texto de Clarice tem, no entanto, um aspecto positivo, e a sua circulação irrestrita e distorcida pela internet idem: são bons exemplos do que é preciso fazer com textos lidos no ambiente virtual. Por um lado, desconfiar, a partir do exercício do pensamento crítico e da análise da realidade, da veracidade dos fatos que veiculam, confrontá-los e confirmá-los buscando outras fontes; por outro, descobrir a imensa riqueza democrática que esse mesmo espaço virtual carrega em si, acessível por caminhos que lhe são próprios e peculiares e que precisam ser aprendidos e explorados nos últimos anos da educação básica, justamente porque são isso mesmo: básicos. As nossas salas de aula estão repletas de alunos que usam a internet e o universo virtual diariamente, de forma limitada mas muito intensa. Faltam-lhes recursos que lhes permitam dominar as ferramentas de pesquisa, faltam-lhes capacidades para poderem encontrar, nessa gigantesca caixa de Pandora, aquilo que necessitam e aquilo que ainda nem sabem que existe. Quem sabe possamos contribuir para que as próximas gerações de alunos da UFRJ consigam desenvolver textos mais articulados, maduros, reflexivos, inteligentes e bem escritos. O lucro será de todos.

15/01/2011

De Isidoro de Sevilha




Isidoro de Sevilha atrasou-me as boas intenções que tinha de descanso noturno. Cismada há semanas com essa criatura, dia a dia descubro mais alguma coisa. Hoje, numa amálgama de pensamentos que à primeira vista pareciam caóticos e sem nexo, surge-me de repente a luz brilhante desse pensador andaluz.

A etimologia teve uma consistência toda especial durante a Idade Média, uma espécie de “busca persistente da transparência da palavra”. Entre os que, naquela época, se interessavam e dedicavam a essa parte da gramática, Santo Isidoro foi um dos mais importantes – muito do que pensou e viu está reunido em sua obra “Etimologias”, vinte livros dedicados a cada um dos campos do conhecimento. Isidoro escreve sobre basicamente tudo. A medicina é um dos campos a que mais dedica a sua atenção, oferecendo descrições minuciosas de doenças, tratamentos, instrumentos; mas Isidoro fala também de pássaros, construção de estradas e edifícios, moda, mobiliário, naves, meditações teológicas... Tão versátil e abrangente que o Vaticano aceitou a sugestão e declarou-o, em 2000, santo padroeiro dos internautas.

A linguagem ocupa-lhe parte substancial, mais como alumbramento do que como convenção. Por entre os excertos que leio, fiapos do santo, percebo que Isidoro sabe que a palavra nos alerta para o verdadeiro sentido da vida. Discorre, por exemplo, que ao dizermos “obrigado” demonstramos saber que a gratidão impõe vínculos entre as pessoas, sejam eles de retribuição ou de puro reconhecimento.

Por causa de Isidoro descobri, dia destes, que animi custos (“guardião da alma”) é a raiz primeira da palavra “amigo”. Ser amigo é exercício diário, às vezes um chamado insistente, daqueles que nos mantém acordados por horas em que sensatamente deveríamos dormir, impede-nos de comer quando a fome se insinua, retira-nos de repente do nosso movimento programado apenas porque é preciso, sem se explicar. Porém, acrescenta-nos: faz com que agradeçamos o poder guardar uma alma que precise de nós, e pensar nela mesma como nossa guardiã recíproca, porque o tempo passa e a vida muda, e tudo o que foi um dia voltará.

Antonio Cícero, o poeta, diz que em cofre não se guarda coisa alguma, porque se perde a coisa à vista; que guardar é olhar, admirar, fitar. Por isso guardar os amigos, e as suas almas: olhá-los e admirá-los sob a luz do sol ou sob as sombras dos dias, abertos ou sufocados, libertos ou aprisionados; ao longe se necessário for, envolvendo-os em laços feitos das rotas dos pássaros, transparentes e ousadas na sua existência silenciosa e invisível. Ou de perto tão perto que se confundam em nós as linhas dos rostos. De uma ou de outra forma, manter os olhos pousados sobre eles, os amigos, para que em dias de trevas eles repousem apoiados em nosso olhar.

Agora, não quero fazer mais nada. Apenas deitar-me, fechar os olhos e ver ao meu lado, como se ao alcance do desejo da minha mão, os amigos que não se incomodam com a distância e se fazem cada vez mais presentes, e aqueles que mesmo perto decidem ser longínquos. Os amigos que me frequentam, aqueles que me esqueceram e aqueles que ainda não conheço. Através dos meus olhos fechados e da escuridão, abraço-os a todos na proximidade íntima que a minha alma cria nesta noite. Espero que nada me acorde tão cedo e que Isidoro de Sevilha descanse em paz, assim como todos os amigos que dela precisam nesta noite.

(Foto: estátua de San Isidoro, diante da Biblioteca Nacional, Madrid.)

27/07/2010

Coisas de internet

Vi-me, outro dia, em meio a uma discussão interessante sobre as virtudes e os defeitos da internet. Não abri a boca, que a discussão não era minha e eu já estava com estas linhas engatilhadas, sem poder distrair-me com o mundo lá de fora, mas fui avançando pela picada que quem conversava abriu. Lembrei-me, dessa maneira estranha que têm as coisas pensadas de se lembrarem umas das outras, que uma destas terças feiras passadas tinha sido o primeiro aniversário da morte de Mario Benedetti.

Não entendi porque raios os meus neurônios tinham fabricado essa ligação, e fiquei com essa guardada num canto da mente, lembrando-me algumas vezes dessa incógnita insistente. Como não encontrei a ponta do fio, decidi terminar o livro da Agatha Christie que comecei há dias, e finalmente chegar ao ponto em que Miss Marple, entre um tricot e outro, descobre que tudo aquilo que não fazia sentido era justamente o que dava sentido à coisa toda. Razoavelmente anestesiada pela escrita de suspense (que aliás é ótima companheira de insônias persistentes), voltou-me o Mario à mente e fui buscá-lo à estante.

A tal conversa sobre as vantagens (ou desvantagens?) da internet não tinha grande preocupação em definir coisa nenhuma, ocupada que estava em basicamente poder usufruir do direito de sentar em volta de uma mesa para conversar. O tema base era a capacidade do mundo virtual de eliminar da face da terra uma quantidade razoável de tarefas mecânicas, e com elas uma profusão de profissionais que ou se desempregaram de vez ou foram criativamente engenhosos e se inventaram noutras profissões – revisores, pastups e cia. estavam no rol dos desaparecidos. As suas vozes, ainda que imperceptíveis, foram de fato sumindo, e hoje os jornais chegam-nos sem as mãos que colavam as matérias, às quais se colavam as letrinhas minúsculas corrigindo os erros que os digitadores tinham deixado escapar e os revisores tinham apanhado antes do fim. Da mão do jornalista à do leitor, muitas outras mãos, que desapareceram e se incumbiram de outras coisas.

Sei que Benedetti em algum momento, como a quase totalidade dos escritores da sua geração e de todas as que se lhe seguiram, trabalhou como jornalista, talvez exercendo por algum tempo uma dessas profissões desaparecidas. O trabalho artesanal manual com a palavra pode ser que abrisse as portas da inspiração. Justamente por ser mecânico e por liberar o território inconsciente, muito embora qualquer manual de escrita alerte logo nas primeiras páginas que não existe tal coisa “inspiração”, “musa” e suas parentes, naquela mesma linha dos “10% de inspiração, 90% de suor”. Adélia Prado, que não tem nenhuma ligação com nada disso a não ser o fato de provavelmente, como as demais pessoas da sua geração, já ter tido a sua fase de ler Agatha Christie e ser poeta como o é Benedetti, retira do cotidiano diário (não é redundância, veja bem) a sua inspiração (é ela quem diz isso, não sou eu que nego a tal história transpirante). Dos movimentos repetidos e monótonos vêm-lhe as palavras parar às mãos, e delas desabrocham os poemas que ficaram escondidos por muitos anos entre as brumas de Divinópolis, sua cidade natal.

Adélia e Benedetti vivem dessas coisas dos seus dias. Um, com a voz uruguaia embargada nas gravações que nos legou (e que a internet, na parte vantagem, coloca à disposição), subverte a dureza das ditaduras com a suave ironia de seu espírito. Junta palavras que nos fazem apenas levantar o canto dos lábios, num esboço de sorriso cúmplice. Adélia retira os pequenos e secretos desejos da vida que parece prosaica, mas não o é. Quase podemos vê-la às margens da sua cidade, em meditação profunda sobre o sentido do seu mundo e da sua vida, numa postura tão suave de levar-se a sério mas nem tanto.

A minha cabeceira divide hoje o seu espaço entre mais um romance policial, a poesia de Benedetti, o dia a dia de Adélia, e um Hesse que insiste em me frequentar, com seus personagens atormentados pelo peso de si próprios. O que mais posso querer?