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24/02/2013

Alice, a que não morre

Recebo assim: "Dou-te a notícia sem preâmbulos. Como um corte, porque é assim. A Alice faleceu.". Frases curtas e secas, de onde escorre a história de uma vida inteira.

Alice é amiga de minha mãe, assim como quem me comunica a sua morte. Gente que me viu pequena e me fez crescer, mantendo-se dentro de mim como mastros de navios que não tombam. Aos olhos azuis do António, o missivista, vejo-os de vez em quando, nos momentos em que as águas do mar dos Açores me visitam acordada. Tenho saudades de ambos os azuis, seus olhos e o mar da janela de casa. À Alice, guardo-a em muitos lugares, porque a convivência se desenrolou no tempo, e acompanhou-me do nascimento até agora, numa forma de presença leve que me fez observá-la muitas vezes sem vontade de dizer nada. Professora de português nas Caldas da Rainha, companheira de minha mãe, era uma mulher surpreendente e corajosa, ria muito, sempre, e entre risos era cortante e incisiva, uma forma de dizer verdades que não admite resposta. Fomos vizinhas também, mesmo que eu não me lembre, e que tenha sido ela a me devolver uma memória fantasiada de uma Ana debruçada na janela, horas à conversa com quem quer quer passasse.

Fizemos uma viagem, ela, minha mãe e eu, há anos atrás, à Vidigueira, pequena cidade do Alentejo português. Alice e seu marido, o Custódio, que era médico, foram importantes pessoas na luta anti-fascista em Portugal. Custódio, que já morreu há anos, esteve preso em Caxias, e há quem se lembre dele acudindo os presos que precisavam de cuidados médicos. Quase no estalar da Revolução dos Cravos, foram responsáveis por colônias de férias para os filhos dos presos políticos. E, depois da Revolução, foram de um entusiasmo sem par, mudando-se para a alentejana Vidigueira, onde então despontava o movimento cooperativista agrário e onde me encontro com Alice, em viagem de rememoração. O movimento revolucionário no Alentejo, mesmo que haja quem o diga, está longe de ter sido um fracasso: saiu-se da miséria física e moral mais atônita em que se vivia.

Nessa viagem, visitamos antigos amigos de Alice. Rugas em forma de pessoas. Sentámo-nos muitas vezes à beira das casas caiadas, o pote de cal virgem a borbulhar ao lado, o pincel pronto para branquear qualquer mancha na parede. As ruas vazias debaixo de um sol de muitas dezenas de graus. O tempo parado, o vento parado, o som parado. Saí para andar pelos campos, lembro-me. Pelos campos de sobreiros e azinheiras, sangrando eles pelo corte recente da cortiça, retorcendo-se elas para dentro da terra em busca da água tão escassa, e o chão forrado de bolotas à espera dos porcos e dos javalis. E ao longe os montes, e mais longe a silhueta de um castelo, e mais longe ainda as curvas do Tejo que não vejo mas pressinto, e me encaminham para Lisboa. Volto, e Alice está de olhos fechados sentada à sombra de uma latada - e porque tudo está ligado e acontece agora em meio ao passado, vejo ao seu lado o meu avô, que também se chamava António mas não tinha os olhos azuis, tesoura em punho no corte das uvas já maduras que se penduram até alcançarem os seus dedos. Está nos Açores, o meu avô, e o seu olhar amalgama-se ao de Alice, que acorda de chofre e oferece-me uma piada, e um dito, e uma música da resistência.

Nas primeiras horas do dia 25 de abril de 74, estávamos ela, minha mãe e eu diante do mar bravio da praia da minha infância, cantando a plenos pulmões "Somos livres, somos livres, não voltaremos atrás". As gaivotas passavam por cima de nós com seus gritos ácidos, e as nossas mãos levantavam-se e diziam-lhes adeus, antes de nos irmos embora, comer um peixe fresco e beber um copo de vinho temperado das lágrimas que choram o tempo que não cede. À tua saúde, Alice, tu que nunca voltaste atrás e não morres porque nós que ficamos havemos de te manter viva.



22/12/2011

Meus amigos


Ao Fábio Cortés

Um dos alegados defeitos do meu pai era dar mais atenção a seus amigos do que a sua família – nada que a mim particularmente me ocupasse, gostava do trânsito frequente de pessoas que (ainda) não conhecia. E ele me dizia, várias vezes e sem querer desculpar-se, que os amigos eram seus mais preciosos tesouros, aqueles que podia escolher e deixar de escolher.  Meu pai era um bom amigo, capaz de tirar seu casaco e congelar, contanto que seu amigo se aquecesse. Algumas das suas dívidas derivam dessa qualidade chamada defeito.

Na formatura do nosso querido Fábio, ouvi dele que ficava feliz por perceber que éramos amigos. Que transcendêramos a relação professora-aluno, tutora-aluno, para nos equilibrarmos nesse terreno ensolarado e cheio de curvas que é a amizade. Meus olhos devem ter brilhado nesse momento, tanto o quanto agora se enchem de lágrimas, e ele certamente percebeu, porque me abraçou como costumava, fazendo soar meus ossos numa demonstração de afeto linda, livre e aberta, tal qual ele próprio. Agora que ele não mais ocupa o lugar físico que ocupou ao nosso lado, rodeia-nos um imenso lago de memória brilhante onde não podemos mergulhar porque nessas águas ainda não sabemos nadar. Fica uma imensa saudade que não preencheremos a não ser com os olhos fechados, cheios da imagem desse garoto-homem cheio de simpatia, um instante preso entre dois retalhos de lembranças que nos chegam de repente e nos fazem parar o que fazemos para retomar o fôlego e não nos afogarmos em lágrimas.

O Fábio tinha uma caligrafia marcante, inconfundível entre todas as outras. Preferia o lápis preto, grosso, a outros materiais e desenhava as suas letras com força e determinação, muitos riscos para cada traço, numa inclinação avessa a catalogações. Olhava para seu caderno e desgostava. E aquela letra rasgada, vitrine de inconformismo, chamava a minha atenção e agradava-me.

Nem todos os lados do Fábio viviam do lado de fora. A imensa vontade de acertar e conseguir ser aquilo que queriam que ele fosse não estava à vista de todos, talvez pela sua inquieta irreverência, tão veloz e rápida quanto o ouço agora recitar, com o seu acento carioca, o poema que escolheu gravar há 5 anos.

Bia, sua mãe, soube apaziguar e contemplar a vontade de Fábio com a qualidade da espera, quantas vezes com o coração em sobressalto. Dizia-lhe eu esta manhã que foi uma sorte o Fábio ter podido fazer todos os piercings que fez – apesar das críticas e dos narizes torcidos alheios, ele galgou os degraus do ensino médio da Aitiara com suas duas argolas pretas nos lábios com o mesmo sorriso com que gentilmente me pediu, meses depois, que as guardasse antes de cada jogo de handebol no torneio interwaldorf em São Paulo. Três anos depois, descobriu com seu trabalho de conclusão de curso que o alargador de orelha era antigamente usado, entre alguns povos, para aumentar o contato com o mundo dos espíritos. Eu disse-lhe que talvez tivesse sido esse o motivo da sua vontade, ainda que sem saber, e ele sorriu e não disse nada.

Já houve quem me dissesse que a relação que se constrói com alunos deve ser distante, permeada por alguma forma de autoridade que, feliz ou infelizmente, não brota nas terras em que meu coração foi semeado. Que alunos e amigos são coisas diferentes. Ontem pela manhã, ao sair do culto em intenção do Fábio, pensei na felicidade que tenho nos amigos que me rodeiam, ainda que partam sem aviso.Que  me escolheram e a quem eu escolhi. Às vezes é uma felicidade doída, porque nos deixam saudosos sem entender os porquês das partidas. Mas a felicidade é dessas coisas que percebemos quando já se foram, ou quando antecipamos a sua vinda. A chegada do Fábio à minha vida, com todos os amigos que chegaram com ele sob o codinome “alunos”, abrilhanta o caminho da minha vida e ilumina o roteiro da minha existência. Escolhem-me tanto quanto eu os escolho, e estaremos juntos sempre, por onde quer que cada um decida misteriosamente passear os seus caminhos.

25/04/2011

O 25 de abril de Eric Blaich

Diz-me a minha tia Luisa que é sinal de velhice, isto de andar a contar histórias de quando se era pequeno, mas invariavelmente, assim que o calendário se aproxima do dia 25 de abril, acontece-me. Pior do que tudo, ganho neste dia uma capacidade de perceber ligações entre tudo e todos, e aquelas que não existiam, só porque hoje é 25 de abril, passam a existir. Entre tudo o que vivi, o que li, o que ouvi e o que senti, não tenho como separar fatos de desejos, estes de vontades, e ainda estas daquilo que podia ser mas talvez não tenha sido, sem que isso chegue realmente a importar alguma coisa. Portanto, assim que me deparo com este dia no rol dos de todos os anos, fico assim – nem um dia se passou, e todos os que vivem ao meu redor são catapultados para dentro de um enorme vaso de cravos.

Este ano em particular, decidi resgatar as fotografias das Caldas da Rainha, cidade que me acolheu no dia em que nasci. Nem preciso delas, mas é bom conferir. Fecho os olhos e vejo o prédio da biblioteca no Parque. O lago esverdeado e os cisnes nadando em suas águas tensamente paradas. Os meus dedos escorregando para dentro da água tépida e escura do começo do verão. Os imensos plátanos a abafar nas suas folhas o calor das horas quentes. O meu pai a jogar tênis. As minhas tias a prepararem uma festa na garagem da casa da minha avó, grandes flores de papel colorido e umas almofadas que ficaram no pensamento sem eu saber-lhe o porquê. Eu a tentar dar a volta por cima ao balanço enorme do pequeno parque que parecia tão grande, sem saber que existiria anos depois um Cirque Du Soleil que teria feito suspirar cada uma das minhas terminações nervosas. Algo disto as fotografias captaram, mas para o resto só tenho a minha memória de confiabilidade peculiar.

As Caldas são revolucionárias: a 16 de março do mesmo ano que marcaria a Revolução dos Cravos levantava-se o quartel da minha cidade. A Intentona das Caldas levou o Regimento de Infantaria que lá estava sediado em direção a Lisboa, disposto que estava a derrubar o Estado Novo já tão velho. Sem companhias, foi sustado às portas da capital portuguesa. Mas assim ficou: o primeiro movimento em direção à liberdade. Canhestro, talvez. Apressado e com uma noção péssima de timing – pode ser. Mas é dessa matéria que os sonhos são alimentados. Dos doidos que correm à frente para mostrarem aos outros que o caminho é possível.

Fui acordada na madrugada do dia 25 de abril de 1974, pouco depois das 4 da manhã, por uma mãe de olhos brilhantes e gravidez anunciada. “Somos livres”, dizia-me ela sabendo que eu a entendia. Não só o somos como o podemos dizer, e viver, e dar, e viver mais uma vez e assim seria até o mundo acabar. Podemos ir pelas estradas, já manhã clara, em direção ao mar e na companhia da Alice, que insistia em erguer um punho fora da janela e cantar e gritar às árvores que passavam que sim! somos livres! Indivizível, indiluível, intraduzível, inesquecível.

Com os nove anos de idade que tinha, descobri-me dois dias depois sentada no muro que rodeava a escola primária em que estudava, ocupada a ensinar aos meus colegas, cujas mães não faziam o que a minha fazia, a “Grândola Vila Morena” e o “No pasarán”, repreendida em pouco tempo pela minha professora, apavorada com o que o comunismo faria a todas aquelas apetecíveis criancinhas.

Ao longo dos meses que se seguiram, viagens ao Alentejo, a descoberta de um país na festa de encontrar-se com pernas, braços e sobretudo vozes, procurando aprender a andar e a saber como desfazer-se de anos de tristeza e devastação. Exatamente por isso, encantador, esse país. Um ano depois, na Espanha ainda franquista, meu pai seria (perigosamente) intimado a explicar o slogan que criara para oferecer o destino turístico ao país vizinho: “Portugal, tan nuevo y tan cerca”.

Devo a minha mãe, e a meu pai de outras formas, uma maneira de olhar as pessoas que se movimenta no espaço e no tempo, e lhes acolhe os erros, as fraquezas, os deslizes, as traições. Aceito-as com dificuldade, sim – mas os meus olhos olham a maneira como estão, certos de que aquilo que são muda - esconde-se, foge, amesquinha-se, endurece-se, cria limos e crostas e, de repente, descobre uma função auto-limpante e voilá: shinning as new! Inevitavelmente, olhando de longe, a vida é uma escada que sobe –tinha toda a razão a minha avó quando me dizia isso, mesmo nos momentos mais duros que lhe apresentei na ingenuidade tola da juventude. A vida é uma escada que sobe – e por isso, deduzi sozinha anos depois, mais vale aproveitar cada degrau, porque nada permite que desçamos.

Os que se vão, especialmente os que viveram muito, dizem-me a mesma coisa. Que a vida vale a pena, mas se, e apenas se, a nossa alma não ficar pequena. (Pessoa tinha razão, toda ela, só é preciso lê-lo nas duas direções e considerar também os momentos pequenos das almas, aqueles em que, por dedução, muito pouco vale a pena.)

Tudo vale a pena, se a nossa alma não se amesquinhar diante das possibilidades do mundo. Se a nossa alma permanecer inteira e íntegra e grande e sempre e a todo momento preenchida por ver o outro parte de si própria. Se a nossa alma puder ver em cada ser o pulsar da vida toda - até nas coisas mais duras, nas mais concretas e nas mais lentamente transformadas. Como as pedras que um senhor, nesta Demétria tão afastada daqueles tempos e daquele país, agrupou e espalhou ao seu redor antes de se despedir do mundo. Eric Blaich viaja nesta madrugada pelos espaços siderais, acompanhado por toda a silenciosa humanidade que conferiu ao âmago dos seres com os quais conviveu. Os seres-pedras e os seres-tintas voam a seu lado, sorriem à sua passagem, alcançam-lhe a visão do que semeou, plantou e colheu na sua longa vida. Assim como ecoa no espaço que me separa das Caldas uma revolução que me garante a certeza da liberdade do mundo, ecoam no espaço, brilhantes como límpidos cristais, as dádivas que Blaich espalhou pelos amplos caminhos da sua vida. Feliz viagem, Blaich.

Ana Vieira

(Em cima: Biblioteca do Parque D. Carlos I, nas Caldas da Rainha
Abaixo: "Rio Enz", de Eric Otto Blaich)

12/03/2011

Despedir

Despedir é verbo estranho, antigo e desafiador. Despedir só é possível quando se esgotaram em nós todas as necessidades do pedir. Quando nada em nós clama ou chama o outro, quando já não se lhe confere o lugar de alguém que está ali para estar conosco e por estar conosco. Quando se deixa de pedir, des-pede-se.

Hoje, porém, surgiu-me outra percepção dessa palavra – a de que aquilo que se despe em mim é o que permite ao outro ir. Despe(d)ir. Para mim, neste instante, essa lição de palavra me basta. Uma lição de palavra que me subtrai ao acrescentar e me transporta para dentro daquele lugar onde diz Drummond morarem as palavras em estado de dicionário: paralisadas, sem desespero, em calma, frescura, superfície intacta. É suficiente, agora à noite, que despedir seja aquilo que em nós se permite ausência – e que permite ao outro, só por isso, o seu necessário ir. E assim me desvisto nesta noite fria. Enquanto o outro vai, em direção ao que lhe pertence.

No entanto, despedir pouco tem que ver, na história do mundo dos homens, com essa percepção que correu ao meu encontro, das portas do futuro em direção ao presente. Das linhas do passado, despedir conduz ao pensamento latino, e a expetere, parente imediato do nosso verbo que diz adeus. 

Expetere é o verbo que pede, o verbo que levanta os olhos ao céu que a todos nós cobre e não suplica, mas aspira. Sob esses olhos, o ato de despir reveste-se das cores do aspirante, daquele que inala, daquele que mergulha dentro da própria dor e apenas pede que a do outro seja poupada. Apenas inspira, e nada mais.

Mas expetere tem raízes mais antigas, que se realizam com menos sons e menos letras em petere. Os mais antigos que os que pediam expetere, diziam petere,  e era assim que queriam procurar, e através da procura, desejar. E assim, nisso que hoje é um adeus e ontem era um pedido, é uns dias antes uma procura cheia de desejo. Não um desejo qualquer, mas aquele que aspira ao próprio despir para permitir a partida sem dor do outro.

A despedida conduz-nos para mais longe, porque as despedidas existem desde o nascer dos tempos, numa torrente contínua que nos envolve e às vezes trucida, implacável como é tudo o que apesar de permanece. Mas falham os registros - os homens mais antigos que os antigos ainda não precisavam escrever, e nada nos diz o que a raiz –pet provocava nos corações e nas mentes daqueles que se despediam sem dor 7000 anos antes de nós. Com certeza olhavam estrelas, talvez outras, talvez diferentes das que brilham hoje sobre nós, mas diante do mesmo espaço imenso, infinito e escuro da noite fria, tiritavam em silêncio ao se despir, despedindo sem dor os que sem dor partiam em busca do destino.


Com o pensamento em João Alexandre Cortesi Lempek, onde quer que esteja