Mostrando postagens com marcador Alentejo. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Alentejo. Mostrar todas as postagens

27/05/2014

Saudades de pedra

De todas as saudades, as mais imponderáveis são as que começam quando ainda se vive o que representam. Penso com isso nas flores amarelas das azedinhas nas bermas dos caminhos, nas giestas a anunciarem a primavera nas estradas do Alentejo, nas margaridas-do-mar em sua contemplação indiferente do horizonte atlântico. Como eco de passos nas ruas de um bairro secular à meia noite, entram sorrateiras, estendem-se nas redes que encontram, constroem em silêncio seus caminhos em nós, e tudo isso sem que ainda lhes percebamos a existência. 

Há os silêncios a meio das conversas. E as conversas a meio dos silêncios. O que não é dito porque não é preciso que se diga, e o que se diz porque é preciso o ar encher-se de embriões de saudade.

Mais ou menos como aconteceu em uma tarde, igual a todas as tardes que reaparecem diante dos olhos, não como se fossem ontem, mas como sendo dias do hoje, eternos agora.

Nessa tarde, que já se anuncia distante porque as saudades estreitam os ponteiros do relógio, há uma mulher sentada à sombra dos beirais da casa. Ao seu lado direito, à distância de oito passos, há duas cadeiras de reclinar vazias. O sol atravessa os espaços que formam as folhas da oliveira próxima. As cadeiras murmuram como se preenchidas. As suas vozes trinam nos bicos dos pássaros acima delas. Brilham no reflexo do sol nas nuvens. Tornam-se matéria na linha do queixo da mulher sentada ao lado da mulher que vê. Na linha do queixo, na curva dos lábios, abertos nesse grito a dizer que nem mesmo quando morremos nos vamos. 

A mulher que vê, por não conseguir ver o que vê, fecha os olhos, e deixa que lhe suba garganta acima uma lágrima chamada gratidão. Nada lhe transborda os olhos, porque não sabe se o mundo terá tamanho para o tamanho do que vê. Nessa linha de queixo, nesses lábios em curva, vive ela mesma nas feições da outra, e nesta vivem as feições de quem partiu anos antes. Nesse encontro de tão poucas palavras há um apertar de mãos que as dispensam. São como eternas companheiras, com nada que haja além delas mesmas. Existem sem palavras neste espaço que, tanto quanto as separa, tanto as entrelaça. 

Esta é a terra que se agarra à mulher primeira com a força mais tenaz. Porque a quer para si, e porque ela morre-se por dentro em partes. Logo há de atravessar o oceano com o sabor do luto por entre os dentes, um luto que é antes de ser anunciado. Despedaça-se em aberturas d'água, porque é o fim de um começo novo, porque se afasta, dessa cidade e desse mundo que é tão seu que não o consegue conter dentro de si. Afasta-se do rio que a reflete, do mar que a acolhe, da luz que a ilumina, impalpável sobre essa cidade única que alcança o mundo da sua sombra.

E enquanto fecha os olhos e tenta medir o tamanho das coisas inalcançáveis, o tempo que se encolhe e escapa das suas mãos (umas vezes é muito, outras escasso), pede que a vida seja simples, e mais nada. Que as raízes se agarrem ao solo que se tenha sob os pés. Quer seja rocha, quer seja areia, quer seja água, quer seja qualquer coisa onde a vida germine quando parecer terminada.


Imagem - Margarida Pereira

24/02/2013

Alice, a que não morre

Recebo assim: "Dou-te a notícia sem preâmbulos. Como um corte, porque é assim. A Alice faleceu.". Frases curtas e secas, de onde escorre a história de uma vida inteira.

Alice é amiga de minha mãe, assim como quem me comunica a sua morte. Gente que me viu pequena e me fez crescer, mantendo-se dentro de mim como mastros de navios que não tombam. Aos olhos azuis do António, o missivista, vejo-os de vez em quando, nos momentos em que as águas do mar dos Açores me visitam acordada. Tenho saudades de ambos os azuis, seus olhos e o mar da janela de casa. À Alice, guardo-a em muitos lugares, porque a convivência se desenrolou no tempo, e acompanhou-me do nascimento até agora, numa forma de presença leve que me fez observá-la muitas vezes sem vontade de dizer nada. Professora de português nas Caldas da Rainha, companheira de minha mãe, era uma mulher surpreendente e corajosa, ria muito, sempre, e entre risos era cortante e incisiva, uma forma de dizer verdades que não admite resposta. Fomos vizinhas também, mesmo que eu não me lembre, e que tenha sido ela a me devolver uma memória fantasiada de uma Ana debruçada na janela, horas à conversa com quem quer quer passasse.

Fizemos uma viagem, ela, minha mãe e eu, há anos atrás, à Vidigueira, pequena cidade do Alentejo português. Alice e seu marido, o Custódio, que era médico, foram importantes pessoas na luta anti-fascista em Portugal. Custódio, que já morreu há anos, esteve preso em Caxias, e há quem se lembre dele acudindo os presos que precisavam de cuidados médicos. Quase no estalar da Revolução dos Cravos, foram responsáveis por colônias de férias para os filhos dos presos políticos. E, depois da Revolução, foram de um entusiasmo sem par, mudando-se para a alentejana Vidigueira, onde então despontava o movimento cooperativista agrário e onde me encontro com Alice, em viagem de rememoração. O movimento revolucionário no Alentejo, mesmo que haja quem o diga, está longe de ter sido um fracasso: saiu-se da miséria física e moral mais atônita em que se vivia.

Nessa viagem, visitamos antigos amigos de Alice. Rugas em forma de pessoas. Sentámo-nos muitas vezes à beira das casas caiadas, o pote de cal virgem a borbulhar ao lado, o pincel pronto para branquear qualquer mancha na parede. As ruas vazias debaixo de um sol de muitas dezenas de graus. O tempo parado, o vento parado, o som parado. Saí para andar pelos campos, lembro-me. Pelos campos de sobreiros e azinheiras, sangrando eles pelo corte recente da cortiça, retorcendo-se elas para dentro da terra em busca da água tão escassa, e o chão forrado de bolotas à espera dos porcos e dos javalis. E ao longe os montes, e mais longe a silhueta de um castelo, e mais longe ainda as curvas do Tejo que não vejo mas pressinto, e me encaminham para Lisboa. Volto, e Alice está de olhos fechados sentada à sombra de uma latada - e porque tudo está ligado e acontece agora em meio ao passado, vejo ao seu lado o meu avô, que também se chamava António mas não tinha os olhos azuis, tesoura em punho no corte das uvas já maduras que se penduram até alcançarem os seus dedos. Está nos Açores, o meu avô, e o seu olhar amalgama-se ao de Alice, que acorda de chofre e oferece-me uma piada, e um dito, e uma música da resistência.

Nas primeiras horas do dia 25 de abril de 74, estávamos ela, minha mãe e eu diante do mar bravio da praia da minha infância, cantando a plenos pulmões "Somos livres, somos livres, não voltaremos atrás". As gaivotas passavam por cima de nós com seus gritos ácidos, e as nossas mãos levantavam-se e diziam-lhes adeus, antes de nos irmos embora, comer um peixe fresco e beber um copo de vinho temperado das lágrimas que choram o tempo que não cede. À tua saúde, Alice, tu que nunca voltaste atrás e não morres porque nós que ficamos havemos de te manter viva.