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22/12/2011

Meus amigos


Ao Fábio Cortés

Um dos alegados defeitos do meu pai era dar mais atenção a seus amigos do que a sua família – nada que a mim particularmente me ocupasse, gostava do trânsito frequente de pessoas que (ainda) não conhecia. E ele me dizia, várias vezes e sem querer desculpar-se, que os amigos eram seus mais preciosos tesouros, aqueles que podia escolher e deixar de escolher.  Meu pai era um bom amigo, capaz de tirar seu casaco e congelar, contanto que seu amigo se aquecesse. Algumas das suas dívidas derivam dessa qualidade chamada defeito.

Na formatura do nosso querido Fábio, ouvi dele que ficava feliz por perceber que éramos amigos. Que transcendêramos a relação professora-aluno, tutora-aluno, para nos equilibrarmos nesse terreno ensolarado e cheio de curvas que é a amizade. Meus olhos devem ter brilhado nesse momento, tanto o quanto agora se enchem de lágrimas, e ele certamente percebeu, porque me abraçou como costumava, fazendo soar meus ossos numa demonstração de afeto linda, livre e aberta, tal qual ele próprio. Agora que ele não mais ocupa o lugar físico que ocupou ao nosso lado, rodeia-nos um imenso lago de memória brilhante onde não podemos mergulhar porque nessas águas ainda não sabemos nadar. Fica uma imensa saudade que não preencheremos a não ser com os olhos fechados, cheios da imagem desse garoto-homem cheio de simpatia, um instante preso entre dois retalhos de lembranças que nos chegam de repente e nos fazem parar o que fazemos para retomar o fôlego e não nos afogarmos em lágrimas.

O Fábio tinha uma caligrafia marcante, inconfundível entre todas as outras. Preferia o lápis preto, grosso, a outros materiais e desenhava as suas letras com força e determinação, muitos riscos para cada traço, numa inclinação avessa a catalogações. Olhava para seu caderno e desgostava. E aquela letra rasgada, vitrine de inconformismo, chamava a minha atenção e agradava-me.

Nem todos os lados do Fábio viviam do lado de fora. A imensa vontade de acertar e conseguir ser aquilo que queriam que ele fosse não estava à vista de todos, talvez pela sua inquieta irreverência, tão veloz e rápida quanto o ouço agora recitar, com o seu acento carioca, o poema que escolheu gravar há 5 anos.

Bia, sua mãe, soube apaziguar e contemplar a vontade de Fábio com a qualidade da espera, quantas vezes com o coração em sobressalto. Dizia-lhe eu esta manhã que foi uma sorte o Fábio ter podido fazer todos os piercings que fez – apesar das críticas e dos narizes torcidos alheios, ele galgou os degraus do ensino médio da Aitiara com suas duas argolas pretas nos lábios com o mesmo sorriso com que gentilmente me pediu, meses depois, que as guardasse antes de cada jogo de handebol no torneio interwaldorf em São Paulo. Três anos depois, descobriu com seu trabalho de conclusão de curso que o alargador de orelha era antigamente usado, entre alguns povos, para aumentar o contato com o mundo dos espíritos. Eu disse-lhe que talvez tivesse sido esse o motivo da sua vontade, ainda que sem saber, e ele sorriu e não disse nada.

Já houve quem me dissesse que a relação que se constrói com alunos deve ser distante, permeada por alguma forma de autoridade que, feliz ou infelizmente, não brota nas terras em que meu coração foi semeado. Que alunos e amigos são coisas diferentes. Ontem pela manhã, ao sair do culto em intenção do Fábio, pensei na felicidade que tenho nos amigos que me rodeiam, ainda que partam sem aviso.Que  me escolheram e a quem eu escolhi. Às vezes é uma felicidade doída, porque nos deixam saudosos sem entender os porquês das partidas. Mas a felicidade é dessas coisas que percebemos quando já se foram, ou quando antecipamos a sua vinda. A chegada do Fábio à minha vida, com todos os amigos que chegaram com ele sob o codinome “alunos”, abrilhanta o caminho da minha vida e ilumina o roteiro da minha existência. Escolhem-me tanto quanto eu os escolho, e estaremos juntos sempre, por onde quer que cada um decida misteriosamente passear os seus caminhos.

12/03/2011

Despedir

Despedir é verbo estranho, antigo e desafiador. Despedir só é possível quando se esgotaram em nós todas as necessidades do pedir. Quando nada em nós clama ou chama o outro, quando já não se lhe confere o lugar de alguém que está ali para estar conosco e por estar conosco. Quando se deixa de pedir, des-pede-se.

Hoje, porém, surgiu-me outra percepção dessa palavra – a de que aquilo que se despe em mim é o que permite ao outro ir. Despe(d)ir. Para mim, neste instante, essa lição de palavra me basta. Uma lição de palavra que me subtrai ao acrescentar e me transporta para dentro daquele lugar onde diz Drummond morarem as palavras em estado de dicionário: paralisadas, sem desespero, em calma, frescura, superfície intacta. É suficiente, agora à noite, que despedir seja aquilo que em nós se permite ausência – e que permite ao outro, só por isso, o seu necessário ir. E assim me desvisto nesta noite fria. Enquanto o outro vai, em direção ao que lhe pertence.

No entanto, despedir pouco tem que ver, na história do mundo dos homens, com essa percepção que correu ao meu encontro, das portas do futuro em direção ao presente. Das linhas do passado, despedir conduz ao pensamento latino, e a expetere, parente imediato do nosso verbo que diz adeus. 

Expetere é o verbo que pede, o verbo que levanta os olhos ao céu que a todos nós cobre e não suplica, mas aspira. Sob esses olhos, o ato de despir reveste-se das cores do aspirante, daquele que inala, daquele que mergulha dentro da própria dor e apenas pede que a do outro seja poupada. Apenas inspira, e nada mais.

Mas expetere tem raízes mais antigas, que se realizam com menos sons e menos letras em petere. Os mais antigos que os que pediam expetere, diziam petere,  e era assim que queriam procurar, e através da procura, desejar. E assim, nisso que hoje é um adeus e ontem era um pedido, é uns dias antes uma procura cheia de desejo. Não um desejo qualquer, mas aquele que aspira ao próprio despir para permitir a partida sem dor do outro.

A despedida conduz-nos para mais longe, porque as despedidas existem desde o nascer dos tempos, numa torrente contínua que nos envolve e às vezes trucida, implacável como é tudo o que apesar de permanece. Mas falham os registros - os homens mais antigos que os antigos ainda não precisavam escrever, e nada nos diz o que a raiz –pet provocava nos corações e nas mentes daqueles que se despediam sem dor 7000 anos antes de nós. Com certeza olhavam estrelas, talvez outras, talvez diferentes das que brilham hoje sobre nós, mas diante do mesmo espaço imenso, infinito e escuro da noite fria, tiritavam em silêncio ao se despir, despedindo sem dor os que sem dor partiam em busca do destino.


Com o pensamento em João Alexandre Cortesi Lempek, onde quer que esteja

02/04/2010

Oliveiras

Encontrei uma oliveira, num destes dias, das mais velhas e antigas a que já prestei atenção. Tenho dado comigo com apreço mais do que o normal por tudo aquilo que é não obviamente velho. Sei que esta oliveira em questão é antiga pelo estado do seu tronco, retorcido e rasgado, em processo claro de duplicação, fato que às vezes acontece às oliveiras, que entretanto sobrevivem graças às suas tenazes raízes. As torções do tronco, que conectam as oliveiras ao eixo de rotação da terra, encaram tempos que mais parecem eternidades como se fosse o cotidiano do dia a dia. E a separação em si próprias conclui estes milagres chamados oliveiras.


As almas podem ser como as oliveiras quando se separam. Podem torcer-se sobre si próprias, desfazer-se por dentro sem queixar-se, rasgarem-se por fora quando já quase nada parece existir internamente, e assim separarem-se em duas metades, troncos abertos em chaga seca, ligados por raízes que quem vê de fora sequer desconfia.


Com um tempo feito de muitos tempos, distanciam-se estas duas partes uma da outra, mães de si próprias nessa dupla significação que só o passar dos anos dará sentido. Afastam-se, dirigem-se para o vazio do campo em volta, pressentem os metros que construirão e galgarão entre si nos dias que virão.


Almas que são oliveiras criam-se em silêncio. Ninguém dá por isso. Não há caminhantes que à sua sombra queiram refrescar-se, encostados aos seus troncos em mutação. Estão sozinhas num mundo que sabem não lhes pertencer. Toda a sua magia passa desapercebida, porque andam sem serem vistas à flor da terra.


Almas oliveiras dão frutos que sem cuidados são amargos. Precisam ser colhidas, com um afeto às vezes enérgico, feito de sacudidelas que lhes derrubem as azeitonas, e assim dão-se generosas e amplas. Almas oliveiras vivem ao lado das outras almas sobreiros ou azinheiras, solenes nos campos de trigo que a vida doura e o tempo ceifa. Aos sobreiros chagam-nos de tempos em tempos, e às azinheiras esqueceram-se de lhes pentearem os ramos, e nada lhes resta a não ser apresentarem-se assim, cabeças enlouquecidas embaixo do sol abrasador. Só as oliveiras se dividem a si próprias, numa dor inaudível que as faz atravessar milhares de anos, testemunhas do estrago e do milagre das coisas que são eternas.


As almas oliveiras que conheço não me dizem nada, a não ser quando encontro uma destas oliveiras árvores e logo me lembro daquelas, silenciosas nos nossos encontros. No seu âmago vivem as árvores, e talvez seja por isso que através delas lhes veja o interior lentamente a transformar-se em pó.


As almas oliveiras sofrem com a distância que se autoimpoem. Não há o que as salve de si mesmas e do seu destino dividido. Sendo diferente, seriam elas próprias outras coisas, daquelas que menos ainda percebemos, por serem vulgares, comuns, cotidianas.


Gosto dos lados oliveira da minha alma, quando se desdobram e me dão a conhecer muitas outras possibilidades da mesma coisa, quando se ocupam daqueles que chegam depois de muito tempo ausentes, e encontram da minha alma um novo lado, que lhes dá novo alento, dizem, e assim continuam em frente, depois de um breve roçar de braços com leve aroma a passado. Os lados oliveira da minha alma permitem-se inspirar quando uma parte de mim já expira; com eles, vou enquanto volto, e saio ao mesmo tempo em que me aventuro pela porta de entrada. Às vezes quedo-me perplexa, mas dou graças a deus por tudo e por ser assim como é.


Penetro através dos lados oliveira da minha alma no que há de proibido em mim, lugares que impeço conscientemente que outros entrem - para que os lados oliveira da minha alma permaneçam vivos e não sejam impedidos de se dividirem sem que se perceba.


Gosto dos lados oliveira da minha alma, mesmo que lhes perceba o seu lado morte, mesmo que me doa por todos os lados a secura que se demandam para que existam. Gosto desses lados, e quando contemplo esta oliveira árvore diante de mim neste momento, ouço-lhe o murmúrio do desapego de si mesma e até do espaço e do tempo, porque ao abrir-se, ao fender-se, ao retorcer-se, abre a seus pés um abismo que nem o tempo nem o espaço farão diminuir, e as raízes tornarão perpétuo.