Mostrando postagens com marcador facebook. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador facebook. Mostrar todas as postagens

13/06/2017

Trilhos


Um aluno entra aflito pela porta do Quinta Palavra hoje cedo. Diz-me Ana, não consigo mais escrever. Não consigo mais ter ideias. Não consigo mais que palavras fluam de dentro dos meus dedos, como você já me fez acreditar. Não, não é bloqueio passageiro, nem tente: é fato dito e consumado. As palavras já não me aparecem de manhã cedo, nem correm (andando já seria bom) na minha direção. Já fiz de tudo, e o fato é um só: tudo o que escreva tem alguém que está escrevendo. Não, não é que tudo já foi escrito. É que tudo está sendo escrito! Alguém, algum lugar, está tendo as minhas mesmas ideias e escrevendo as mesmas minhas palavras. Para que, então, sentar-me e despejar palavras que outro já tem para si?

Peço-lhe que respire, porque tudo isso foi assim como num jato, um acesso de palavra em vez de tosse. Vamos tomar um chá, que é sempre bom pra acalmar ou entusiasmar os nervos. Diz-me não, preciso ir ao banco, e logo depois ao outro banco, e ainda o supermercado e enfim: preciso trabalhar. E sai, igual chegou, aflito e atapetando a calçada com suas palavras.

Claro que me preocupo. Sei como é difícil lidar com a falta, essa coisa que alguns chamam de "inspiração". Quando não encontramos palavras. Quando só se ergue um deserto de nada diante de nós, papel em branco por todos os lados. Só que não é isso.

Gravei a última parte: alguém deve estar escrevendo o que eu mesmo escreveria. Soa-me imediático, digamos assim. Instantâneo. De onde tira ele que alguém escreve as mesmas palavras que ele? Internet, claro, esse recurso que nos permite estar à distância de um olho de absolutamente tudo e todos no mundo. Hoje cedo, veja bem, conversava com Siddartha, que é professor waldorf, ex-menino órfão com necessidades especiais, no distante Nepal. Sequer sonha em conhecer o Brasil mas conversa comigo como se fosse meu vizinho, e eu com ele a mesma coisa. Não é bem um problema, mas continuo achando estranho.

Procuro meu aluno no facebook, essa vitrine de pequenos nadas.

Ninguém pensaria em bloqueio. Ou em desespero. Aflição. Sua atuação é divertida, um pouco cínica talvez... parece descrente destas coisas políticas (afinal quem não), mas ri-se aqui e ali, ouve música, comove-se com frases de efeito e autoria duvidosa. Aliás: tudo isso muitas vezes. Vezes demais, talvez. Várias postagens em menos de uma hora, e uma hora depois a mesma coisa... Agora mesmo (mas não ia ao banco?!).

Eu me pergunto se Santos Dumont teria voado alguma coisa se soubesse que os Wright andavam tendo as mesmas ideias. Se, entre o desenho de uma asa e um pensamento aerodinâmico, fosse checar ao computador se fulano já lhe respondeu o email do orçamento dos parafusos e aproveitasse pra dar uma conferidinha nos likes do face. Sim, imagino que ao longo do processo tenham sabido uns dos outros (Oswald de Andrade passeando pra lá e pra cá entre São Paulo e Paris levaria e traria sem dúvida notícias, no mínimo), capaz que logo até se encontraram e Dumont não deve nem ter tirado o chapéu para cumprimentar. Nem preciso do google pra saber disso. Mas ali, logo no começo, no momento do gérmen da ideia, quando as chispas voavam no espaço sideral sobre sua cabeça e do Demoiselle só se ouvia o farfalhar das asas... Isolamento e solidão são fundamentais. E não saber de nada pode ser bem bom, ainda que sucumbamos a essa mania moderna de "estarmos informados cof cof cof".

Ontem mesmo, a meio de uma aula, quando um outro aluno de repente exclamou "ah! eu tive uma ideia bacana! vou colocar duas personagens num bar, e vou fazê-las ir pro bar de tempos em tempos, e vou fazer elas criarem uma relação entre elas que só rola ali mesmo, no balcão do bar", eu TIVE que logo alinhar um "já viu Cheers?", e ainda me levantar e ir buscar à estante os dvd's empoeirados com um Sam Malone anos 80 na capa. Quem perguntou? Quem é que estava interessado na referência? Quem precisava saber disso? Mania que temos de relacionar eternamente as coisas, só para sabermos que tudo já foi escrito, tudo já foi inventado, tudo já foi feito. Cheer's ficou aqui na mesa e eu torço para que a minha intromissão não retire vontade ao coitado do aluno.

Procure por "tiny houses" no youtube. Centenas de videos ensinam a projetar, construir e resolver como morar em espaços pequenos que nos retirem dos afãs consumistas e nos projetem na direção de uma vida mais simples, mais leve e mais humana. Fantástico. Procure por "viagens em kombi". Zilhões. Qualquer ideia que você tenha, alguém também teve ou tem, e em 5 minutos vai compartilhá-la na rede.

Pode ser muito útil quando você quer fazer uma coisa. Mas é deletério quando você quer ser e viver de forma criativa. Porque o que já está feito pode retirar-lhe forças - as forças que o levarão a tropeçar nos lugares em que outros tropeçaram. Perda de tempo? Longe disso: aprendizado. É do tropeço que nasce o aprendizado. Sem tropeçar, meu amigo, você não descobre de que matéria é feito seu pé, quais os terrenos que lhe são propícios, quais tipos de fungos o atacam e qual tipo de calçado lhe é favorável.

Espero aquele primeiro aluno daqui a pouco. Rejeitou o chá mas não rejeitou o almoço. E agora eu já posso dizer-lhe duas coisas. Uma, que desligue o wifi. Duas, que não confunda criação com originalidade. Criar é tirar do nada: se você estiver cheio do que já foi dito, feito, escrito, vai encobrir a sua própria palavra. A palavra que sai de dentro de você nunca será igual à que sai de dentro de outro. Portanto: ainda que as palavras sejam as mesmas, os textos sempre serão distintos. E os trilhos de trem da foto ali em cima? Sempre linhas retas de ferro indo na mesma direção, abrindo caminhos e picadas onde era mata fechada. É preciso pisar em cima deles e deixar-se levar, tanto faz se alguém já andou por eles ou não. Quem faz a sua viagem é você.

Boa semana pra todos!


Foto: Daniel dos Santos

04/11/2014

Panta rei


Tudo se move, exceto o próprio movimento. 
Heráclito

Decido, por estes dias, retirar-me da esfera facebookiana, desse campo impreciso de amizades também imprecisas, recortadas em pequenos quadros que não se constituem de fato e pele. Um mundo volátil, inconstante, traiçoeiro e sem memória. Deseja-se proximidade, obtém-se um simulacro.

E a minha alma anda cansada de simulacros. Por isso, restrinjo-lhe por ora a entrada nos domínios em que nada pode a não ser encolher-se aflita. Neste lugar sem existência, neste mundo virtual feito de nadas, vive uma força que aliena e manipula. Vejo seus efeitos. Vejo os que abdicam da capacidade de pensar formas livres e suas. Vejo outros que enveredam pela pré-concepção das coisas e assim as julgam. Vejo os que passam voando inconsistentes pelo que diz o outro. Vejo aqueles que clicam em botões sem pensarem no que o seu clique pode provocar no outro. Pensa-se pouco no outro, neste facebook de meu deus, talvez porque o outro seja uma entidade anônima e pulverizada entre dezenas de acessos e visualizações. E porque mais importante é expor diante do mundo, com palavras e imagens roubadas e carregadas, aquilo que se pensa que se pensa. Mesmo que nada se pense e só se aja por impulsão e estímulo externos. Aquilo que a máquina me sugere. Perdem-se capacidades humanas, na lida diária dessa rede sem peixes. Haverá algo de verdade essencial, que permeie as horas e subsista à passagem de um dia ao outro, neste mundo rápido dos bytes?

Séculos atrás, Íxion cometeu o equívoco terrível de tomar o simulacro por verdade. Rei dos Lápitas que habitaram a Tessália, Íxion foi o primeiro mortal a matar alguém da própria família, crime que o tornou impuro, tão grave que não houve quem quisesse purificá-lo. Ninguém podia tocá-lo, nem comer com ele nem sentar-se à mesma mesa e beber em sua companhia uma taça de vinho. Íxion enlouqueceu.

Zeus, num dia de humor generoso, olhando-o lá de cima de seu trono, apiedou-se, e convidou-o ao banquete dos deuses, evento que o redimiria. Íxion, entre uma taça de vinho e outra, encantou-se por Hera, esposa de Zeus, e logo a assediou. Zeus, ainda no mesmo humor generoso e farto, decidiu ensinar-lhe algo: criou uma cópia fiel de Hera, um simulacro de sua esposa feito de nuvem, e para que não houvessem dúvidas deu-lhe o nome de Nefele. Nefele, a nuvem. Íxion, que sequer percebeu diferença, possuiu e engravidou Nefele, e dela nasceram os centauros, à exceção de Quíron e Folo, que têm origem diversa e diversos são dos centauros comuns. Íxion, de volta à terra, gabou-se da conquista e relação com Hera, o que pôs fim ao bom humor de Zeus, que o amarrou a uma roda em chamas e o jogou no rio Hades, num castigo que durará toda a eternidade.

Os frutos de Íxion e Nefele assolam a terra, seres que não sabem se animais são, se humanos. Tendem ora a um lado, ora a outro, prisioneiros do simulacro que lhes deu origem. Esses frutos cavalgam sobre as nossas vidas. Nublam-nos o discernimento, o reconhecimento da nossa verdade mais interna. Conduzem-nos por caminhos confusos, onde a sombra, o nevoeiro, a noite escura se instalam com facilidade.

Quem nos lega da longínqua Grécia a lenda de Íxion é Píndaro, no século V a.C. Foi Píndaro quem disse "Homem, torna-te no que és" e foi Píndaro quem inventou a bússola. É na direção desse norte que a bússola de Píndaro indica que a minha alma se dirige e o meu espírito se move. Na direção do reconhecimento da essência e da recusa de todo simulacro que se identifique. Quero a vida feita de matéria, lugar onde o espírito mais visível se torna. Quero a vida feita de palpabilidade, de encontros plenos e sob um sol que os ilumine, nutra e faça brilhar. Que sejam recíprocos, e nos aliviem das trevas que se abatem, sem dó nem sossego, sobre cada um de nossos dias.


25/06/2014

Destinos dados

... mas quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro, brota é depois. (GR)

Facebook, dizia eu hoje a uma amiga, é uma fábrica de neuroses. Nunca se sabe ao certo por que aquela pessoa curtiu aquela sua postagem, ou por que passou por ela ignorando-a. Dentre as pelo menos nove possibilidades, escolhe-se uma, duas, e deduz-se um nunca acabar de motivos para a bendita curtida, ou não curtida. Sobretudo quando a distância é imensa, e separa os olhos dos olhos, criando na sua imprecisão não sonhos, mas fantasmas, essa ferramenta assume o seu lado pactuado com as forças sombrias e invade-nos o dia. Por isso, melhor afastar-se dela, de tempos em tempos, e optar pelo contato que se materialize real, disponível, feito de tato e de afeto.

Porém, justamente essa amiga publica em meu mural um trecho de Guimarães Rosa que me faz levitar para fora da minha infinitamente pequena visão, e dar graças pela existência facebookiana. Desse recorte que ela me oferece, faço eu meu próprio recorte: aquele que abre este texto.Que fala de amor que é destino dado. Destino maior que o miúdo. Um amar inteiriço fatal. Carente de querer. Faceador de surpresas. Amor que primeiro cresce, e "brota é depois".

É Riobaldo quem fala, esse homem tomado de des-serenidade ao perceber-se movido em amor pelo companheiro Diadorim. Depois do espanto, talvez a vontade de correr ao encontro e o movimento contrário, porque esse amor inteiriço e fatal sente-se também proibido (até onde os olhos de Riobaldo ainda alcançam), amor em des-padrão, amor que arrebata e aparece repentino, e não há garantias, nem salvaguardas, apenas caminho a seguir. Isto, quando se escolhe seguir, sabendo que esse seguir demanda ser pleno e inteiro. Se não, é como ser desleal consigo mesmo. Se não, é como dizer-nos a nós mesmos que a vida pequena e sem relevo, do tamanho do miúdo e atrevendo-se aos destinos ofertados pela metade, é a vida que queremos.

Só mesmo lendo Grandes Sertões para saber os caminhos que percorrem Riobaldo e Diadorim, e por quais palavras, sabor e carne e pedra desse homem feito escritor que é Guimarães. Mas esse instante de desatino perplexo, tão imenso e tão libertador, esse reconhecimento de um sentir maior que o miúdo, é um júbilo que quero levar para o meu adormecer. Seja como forma de transcendência. Seja como instrumento de criar humanidade. Seja para salvar-me os sonhos de acordarem enrijecidos pela covardia do mundo. Ou seja para salvar-me a mim daquilo que, ao saber-se diante de algo maior, atrasa seus passos ou revoga o caminhar. Como uma inadvertida curtida de facebook, é difícil saber o que a palavra alheia, sem o contorno dos olhos nem o calor da pele, realmente diz. Ou, como nas palavras de Riobaldo/Guimarães, "como se o obedecer do amor não fosse sempre ao contrário...".