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08/04/2015

A verdade

Sabemos, todos nós, que a verdade é um bem a ser preservado e garantido. Que, em qualquer circunstância, e mesmo que doa, sempre a dor da verdade é melhor que a da mentira. Sabemos, mas nem sempre praticamos; raramente nos damos conta de que um tanto daquilo que fazemos, não só mas também em nosso papel de educadores, mais mente sobre a realidade do que a apresenta e encara tal qual ela é.

Lembrei-me disso hoje ao ler um parágrafo de The bad seed, um romance da década 50, de autoria de William March: “um botão de rosa de cera ou um pêssego de plástico parecem mais perfeitos, aproximam-se mais daquilo que a mente imagina ser um botão de rosa ou um pêssego, do que o imperfeito original a partir do qual foram modelados”.

A nossa tendência a querer transformar o mundo em um mar de rosas para as crianças, para que elas não se machuquem, onde as coisas não são o que realmente são, cresce a olhos vistos. Impacta-nos de maneiras para as quais ainda não estamos conscientes. Andamos sobre plásticos que imitam madeira, comemos sanduíches que imitam comida, ouvimos músicas eletrônicas que imitam instrumentos de verdade, vemos reproduções de obras de arte como se estivéssemos diante de originais, temos amigos virtuais como se fossem reais, e fazemos um esforço tremendo em parecermos fortes onde somos frágeis.

Um mundo “de verdade” é indispensável à criação de seres humanos sadios. Se são crianças que estão sob o nosso cuidado, o grau de responsabilidade aumenta. As nossas escolhas são as escolhas delas, porque nós somos a referência, e é a partir das janelas que abrimos que elas reconhecerão o mundo habitável. Ou não. Se o que oferecemos não é “verdade”, a vida terá grandes chances de ser uma mentira. E esses futuros adultos terão grandes chances de não reconhecer e distinguir a verdade da mentira. Terão grandes chances de não reconhecer perigos e armadilhas em pessoas, em situações, nas prateleiras dos supermercados, no boteco da esquina. Crianças que não vivenciaram a verdade poderão não reconhecer a mentira mais adiante. Sim, eu sei: você está pensando que essa coisa de verdade é muito relativo. Não é. Uma rosa de verdade não é uma rosa de cera. Um pêssego de plástico não é um pêssego de verdade. Não se faz com ele o que se faz com um pêssego real. Assim como não se faz com pessoas reais o que se faz com simulacros de pessoas num jogo qualquer de computador.

As crianças precisam de verdade. Precisam senti-la, quando pequenas, correndo por entre os seus dedos. Precisam reconhecer a madeira, o algodão, esses elementos que estão à nossa volta de forma natural, e que encontramos e reconhecemos facilmente, em suas várias manifestações. Essas são as coisas verdadeiras na primeira infância – aquelas que existem ao redor, e que podemos reconhecer no seu próprio processo. Um carrinho de madeira, uma boneca de pano.

Crianças pequenas não precisam de andadores que imitem o seu esforço em erguer-se, assumir a humana posição ereta e caminhar pela vida. Precisam da verdade de suas próprias pernas no movimento de profundo equilíbrio que é o andar. Elas vão cair, e vão se levantar, e vão voltar a cair, e joelho esfolado é aprendizado saudável. Crianças não precisam de uma alimentação artificial e cheia de produtos químicos, que além de maltratarem o seu ser físico em formação, lhe alteram a capacidade de perceberem o que é uma cenoura, uma batata, arroz, as beterrabas de verdade.

Parece bobagem? Mas não é. Já sabemos que é de pequenino que se torce o pepino. O aprendizado das escolhas de uma criança começa com aquilo que escolhemos para ela. Quanto mais consciência do que fazemos, e por que fazemos, melhor. O nosso conforto, a nossa “necessidade” não pode tranquilamente sobrepor-se àquilo que é fundamental à criança. A nossa “necessidade” de, recém-paridas, nos reintegrarmos à vida social não pode impactar a criança que acabou de chegar. O show de rock pode esperar para mais tarde, o sambão também, a saída à noite pra festa dos amigos idem. Às vezes, não paramos pra pensar. E às vezes as escolhas têm desdobramentos tristes.

Crianças que se habituam ao mundo virtual desde cedo vão perder a noção do que é relacionar-se com o mundo real. Aliás, com adultos é a mesma coisa. Aprenderão a deslizar seus dedinhos pelas telas dos tablets e dos smartphones antes de terem percebido a textura da areia da praia. É bom ter diversidade? As várias experiências? Certamente um pai ou uma mãe de um dependente químico lhe dirá que não: há experiências que é melhor não ter. E agora, se já teve, é preciso cuidar. É preciso refazer o caminho, passo a passo, redescobrindo o que é mesmo “de verdade” neste mundo. Rodear-se de coisas de verdade. De pessoas de verdade. De sentimentos de verdade. Tirar da frente e dos lados e de dentro tudo o que é mentira, como é mentira o caminho que as drogas oferecem de encontro de si mesmo. Como é mentira decidirmos que nosso filho de 16 ou 17 anos pode sair com o carro porque “ele dirige melhor do que eu!”, ou com ele tomar uma cerveja, e iniciá-lo nesse mundo em que se ganham forças, autonomia, coragem e graça com a ajuda de um ou dois copos.


“De verdade” é o mundo cheio de imperfeições. São amores que não reluzem como ouro, e é assim que nos fazem bem. São situações em que estamos frágeis e nos sentimos à deriva, e firmamos os pés dentro delas lidando com o medo que nos sobrevém. São empregos que desanimam um dia e outro, e nos satisfazem dessa forma. São escolhas erradas que precisam ser refeitas, e dói, e é bom, porque é na dor também que crescemos. São refeições salgadas, a carne que cozinhou demais... e quando nos levantamos da mesa estamos preenchidos. Porque houve mãos de verdade que cortaram as cebolas, houve olhares de verdade que se cruzaram risonhos ao perceber o desastre, houve o riso sincero que todo mal desarma, e que é de verdade, e por isso é bom, e nos faz crescer e ser pessoas melhores no encontro conosco mesmos e com o outro.

04/11/2014

Panta rei


Tudo se move, exceto o próprio movimento. 
Heráclito

Decido, por estes dias, retirar-me da esfera facebookiana, desse campo impreciso de amizades também imprecisas, recortadas em pequenos quadros que não se constituem de fato e pele. Um mundo volátil, inconstante, traiçoeiro e sem memória. Deseja-se proximidade, obtém-se um simulacro.

E a minha alma anda cansada de simulacros. Por isso, restrinjo-lhe por ora a entrada nos domínios em que nada pode a não ser encolher-se aflita. Neste lugar sem existência, neste mundo virtual feito de nadas, vive uma força que aliena e manipula. Vejo seus efeitos. Vejo os que abdicam da capacidade de pensar formas livres e suas. Vejo outros que enveredam pela pré-concepção das coisas e assim as julgam. Vejo os que passam voando inconsistentes pelo que diz o outro. Vejo aqueles que clicam em botões sem pensarem no que o seu clique pode provocar no outro. Pensa-se pouco no outro, neste facebook de meu deus, talvez porque o outro seja uma entidade anônima e pulverizada entre dezenas de acessos e visualizações. E porque mais importante é expor diante do mundo, com palavras e imagens roubadas e carregadas, aquilo que se pensa que se pensa. Mesmo que nada se pense e só se aja por impulsão e estímulo externos. Aquilo que a máquina me sugere. Perdem-se capacidades humanas, na lida diária dessa rede sem peixes. Haverá algo de verdade essencial, que permeie as horas e subsista à passagem de um dia ao outro, neste mundo rápido dos bytes?

Séculos atrás, Íxion cometeu o equívoco terrível de tomar o simulacro por verdade. Rei dos Lápitas que habitaram a Tessália, Íxion foi o primeiro mortal a matar alguém da própria família, crime que o tornou impuro, tão grave que não houve quem quisesse purificá-lo. Ninguém podia tocá-lo, nem comer com ele nem sentar-se à mesma mesa e beber em sua companhia uma taça de vinho. Íxion enlouqueceu.

Zeus, num dia de humor generoso, olhando-o lá de cima de seu trono, apiedou-se, e convidou-o ao banquete dos deuses, evento que o redimiria. Íxion, entre uma taça de vinho e outra, encantou-se por Hera, esposa de Zeus, e logo a assediou. Zeus, ainda no mesmo humor generoso e farto, decidiu ensinar-lhe algo: criou uma cópia fiel de Hera, um simulacro de sua esposa feito de nuvem, e para que não houvessem dúvidas deu-lhe o nome de Nefele. Nefele, a nuvem. Íxion, que sequer percebeu diferença, possuiu e engravidou Nefele, e dela nasceram os centauros, à exceção de Quíron e Folo, que têm origem diversa e diversos são dos centauros comuns. Íxion, de volta à terra, gabou-se da conquista e relação com Hera, o que pôs fim ao bom humor de Zeus, que o amarrou a uma roda em chamas e o jogou no rio Hades, num castigo que durará toda a eternidade.

Os frutos de Íxion e Nefele assolam a terra, seres que não sabem se animais são, se humanos. Tendem ora a um lado, ora a outro, prisioneiros do simulacro que lhes deu origem. Esses frutos cavalgam sobre as nossas vidas. Nublam-nos o discernimento, o reconhecimento da nossa verdade mais interna. Conduzem-nos por caminhos confusos, onde a sombra, o nevoeiro, a noite escura se instalam com facilidade.

Quem nos lega da longínqua Grécia a lenda de Íxion é Píndaro, no século V a.C. Foi Píndaro quem disse "Homem, torna-te no que és" e foi Píndaro quem inventou a bússola. É na direção desse norte que a bússola de Píndaro indica que a minha alma se dirige e o meu espírito se move. Na direção do reconhecimento da essência e da recusa de todo simulacro que se identifique. Quero a vida feita de matéria, lugar onde o espírito mais visível se torna. Quero a vida feita de palpabilidade, de encontros plenos e sob um sol que os ilumine, nutra e faça brilhar. Que sejam recíprocos, e nos aliviem das trevas que se abatem, sem dó nem sossego, sobre cada um de nossos dias.