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04/11/2014

Panta rei


Tudo se move, exceto o próprio movimento. 
Heráclito

Decido, por estes dias, retirar-me da esfera facebookiana, desse campo impreciso de amizades também imprecisas, recortadas em pequenos quadros que não se constituem de fato e pele. Um mundo volátil, inconstante, traiçoeiro e sem memória. Deseja-se proximidade, obtém-se um simulacro.

E a minha alma anda cansada de simulacros. Por isso, restrinjo-lhe por ora a entrada nos domínios em que nada pode a não ser encolher-se aflita. Neste lugar sem existência, neste mundo virtual feito de nadas, vive uma força que aliena e manipula. Vejo seus efeitos. Vejo os que abdicam da capacidade de pensar formas livres e suas. Vejo outros que enveredam pela pré-concepção das coisas e assim as julgam. Vejo os que passam voando inconsistentes pelo que diz o outro. Vejo aqueles que clicam em botões sem pensarem no que o seu clique pode provocar no outro. Pensa-se pouco no outro, neste facebook de meu deus, talvez porque o outro seja uma entidade anônima e pulverizada entre dezenas de acessos e visualizações. E porque mais importante é expor diante do mundo, com palavras e imagens roubadas e carregadas, aquilo que se pensa que se pensa. Mesmo que nada se pense e só se aja por impulsão e estímulo externos. Aquilo que a máquina me sugere. Perdem-se capacidades humanas, na lida diária dessa rede sem peixes. Haverá algo de verdade essencial, que permeie as horas e subsista à passagem de um dia ao outro, neste mundo rápido dos bytes?

Séculos atrás, Íxion cometeu o equívoco terrível de tomar o simulacro por verdade. Rei dos Lápitas que habitaram a Tessália, Íxion foi o primeiro mortal a matar alguém da própria família, crime que o tornou impuro, tão grave que não houve quem quisesse purificá-lo. Ninguém podia tocá-lo, nem comer com ele nem sentar-se à mesma mesa e beber em sua companhia uma taça de vinho. Íxion enlouqueceu.

Zeus, num dia de humor generoso, olhando-o lá de cima de seu trono, apiedou-se, e convidou-o ao banquete dos deuses, evento que o redimiria. Íxion, entre uma taça de vinho e outra, encantou-se por Hera, esposa de Zeus, e logo a assediou. Zeus, ainda no mesmo humor generoso e farto, decidiu ensinar-lhe algo: criou uma cópia fiel de Hera, um simulacro de sua esposa feito de nuvem, e para que não houvessem dúvidas deu-lhe o nome de Nefele. Nefele, a nuvem. Íxion, que sequer percebeu diferença, possuiu e engravidou Nefele, e dela nasceram os centauros, à exceção de Quíron e Folo, que têm origem diversa e diversos são dos centauros comuns. Íxion, de volta à terra, gabou-se da conquista e relação com Hera, o que pôs fim ao bom humor de Zeus, que o amarrou a uma roda em chamas e o jogou no rio Hades, num castigo que durará toda a eternidade.

Os frutos de Íxion e Nefele assolam a terra, seres que não sabem se animais são, se humanos. Tendem ora a um lado, ora a outro, prisioneiros do simulacro que lhes deu origem. Esses frutos cavalgam sobre as nossas vidas. Nublam-nos o discernimento, o reconhecimento da nossa verdade mais interna. Conduzem-nos por caminhos confusos, onde a sombra, o nevoeiro, a noite escura se instalam com facilidade.

Quem nos lega da longínqua Grécia a lenda de Íxion é Píndaro, no século V a.C. Foi Píndaro quem disse "Homem, torna-te no que és" e foi Píndaro quem inventou a bússola. É na direção desse norte que a bússola de Píndaro indica que a minha alma se dirige e o meu espírito se move. Na direção do reconhecimento da essência e da recusa de todo simulacro que se identifique. Quero a vida feita de matéria, lugar onde o espírito mais visível se torna. Quero a vida feita de palpabilidade, de encontros plenos e sob um sol que os ilumine, nutra e faça brilhar. Que sejam recíprocos, e nos aliviem das trevas que se abatem, sem dó nem sossego, sobre cada um de nossos dias.