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09/03/2014

O outro nome


Este amor não é um rio,
tem a vastidão do mar

A ti, antes que a ambos nos alcance a morte

Aqui estou, diante das águas do rio que não é o da tua aldeia. Nem sequer o rio onde gostas de nadar, a mergulhares até quase se perder o ar. Só quase: tu não gostas de perder o ar, talvez porque sejas um ser de terra, ainda que em ti se ergam as forças ígneas, e mesmo que tentes delas fugir, elas correm atrás dos teus rastros.

Mas para além disso, sabes o que vejo, eu que fico deste lado de fora d'água, quando nela submerges? Vejo os pesos do teu quotidiano, dessa tua vida que dizes monótona, de números e parafusos e pequenas retortas que antes fossem, mas não são, de alquimista. Boiam ao redor das marcas que o teu corpo deixa à superfície, que são tantas quanto as das enguias a fazerem o mesmo percurso. As tuas espáduas, já te disse há tanto tempo, são peixes alongados a passear nas tuas costas. Talvez mergulhes na água como desejas mergulhar dentro da mulher que ames.

À distância de tantas ondas, olhos postos no barco ao passar, lembro-me dos teus olhos quando fechados. E levanto-me com vagar, porque os anos já não me fazem saltar como mola do lugar em que me escolho sentar. E vou em direção ao café, este desporto nacional que tanto me agrada. Não sei bem (nunca soube) o que pedir à vida, tanto quanto não sei o que pedir agora ao empregado do café que se aproxima de mim com o guardanapo branco pousado no antebraço como uma gaivota. Olha-me solícito, e não sei se o faz de propósito, mas confunde-me o lapso de tempo que existe entre os meus desejos e o seu atendimento. Que mais é a vida do que uma sucessão aleatória de lapsos de tempo, onde eu ora sou esta pessoa sentada à mesa do café, ora o empregado de gaivotas nas mangas a atender com olhos líquidos o espaço vazio da cadeira que ocupei?

Seja a forma ou o tempo de que disponha, não deixarei de ser desta forma de gente que ora se senta à mesa, ora a atende. Esta forma de gente que não se aflige nem se desconcerta com os silêncios teus, inesperados, com as ausências tuas, que não se anunciam, com as distâncias todas que se materializam porque alguém, não importa quem, se esqueceu, e mais nada. O esquecimento é a lembrança adormecida. Esta vida, tu que talvez já tenhas começado a desfazer-te no poente, nada mais é do que o caminho que se abre entre as mãos que servem e as mãos que pedem. Eu tenho em mim dois grandes pares de mãos.

Volto para perto do rio, porque estar perto d'água é como estar perto de ti. E estar perto de ti é o pedido que me faz o coração, e eu, que nada sou a não ser aqueles que me compõem, posso escolher ter-te perto e estar-me perto. Porque estar perto de ti é ter-me perto dos meus pensamentos, como se fosses o pastor e fosses os montes e as campinas que ondulam dentro de mim, à espera. Ainda que não percorras os vales e as colinas desta vida que nos coube, porque desejas o que não temos, alimentas as paisagens que de dedos enlaçados desenhamos na superfície inventada. E são essas as paisagens que todos os dias, pontuais como a sirene do navio a atravessar o rio de banda a banda, se levantam no horizonte da manhã. E é isso o meu bastar-me, e porque me basta e como me basta, sou, basicamente, feliz.

Poderia ficar-me por aqui, e não dizer-te mais nada, porque de certa forma sei que até isto já é mais do que devia, para quem não quer ouvir nem pensar em nada. Apenas ser, e sentir, e deixar-se levar como as folhas que caem no leito do rio, e querem que se acredite que se deixam conduzir sem espreitarem o para onde vão. Mas devo ainda desafogar mais um triângulo da minha alma. Devo acrescentar ainda a esta dose imensa de exposição de carne e sangue e fluidos e densidades, uma coisa.

Penso que o seres dentro de mim feito de tantas letras faz com que esta cidade, hoje, sussurre esse "sou tua" que me embala até a noite já ser alta e já ser amanhã. Esta condição que crias, com as palavras que despertas neste lugar que só tu conheces em mim, esta condição que crias oferece-me o estares em mim, e este estar em ti que escolho mas não imponho e é agora também condição. E é essa a tua presença constante dentro dos versos das minhas linhas: uma candeia acesa, que não sabe onde os teus pés enterram a força da sua vida, mas a ilumina da mesma forma, refletida nestes meus olhos que olham o rio que não é o da tua aldeia, mas é o rio que circula nas minhas veias e, por condição escolhida e aceite, também nas tuas.

Fica bem. E lembra-te de mim.



Imagem: o Forte de São Julião da Barra, em Oeiras. Aquarela de Filipe Almeida
http://tracoslocais.blogspot.pt/
Versos em epígrafe do "Fado perdição", de Maria Duarte.

O amor é uma companhia

O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.


Lisboa amanhece neste 9 de março fria e cinzenta. E ainda assim, a luz impera. De onde tira esta cidade a luz com que sempre amanhece? Saio de casa disposta a olhar com olhos de ver, ainda com a noite de ontem fresca dentro de mim.

Ouvi ontem, como verdade já sabida, que nada é acaso. A mola propulsora de Fernando Pessoa. E de Alberto Caeiro. E de todos esses irmãos que ele se criou para não ser sozinho, e ser o que todos provavelmente somos: muitos dentro de um mesmo envelope.

Fez ontem cem anos do dia triunfal da vida de Fernando Pessoa. E agora que já não é ontem, mas hoje, fecho os olhos. Estou outra vez, e ainda frescos os sentidos porque foi apenas ontem, dentro da casa onde o poeta viveu por 15 anos. Dentro do quarto que habitou, onde escreveu, onde dormiu, onde se postou à janela para ver a rua lá embaixo. Talvez seja esta a mais alta janela da sua casa, e debruço-me nela para ficar mais perto dele. Fico diante da sua cama, encosto-me a ela, sento-me nela. Seu chapéu jaz aí, displicente, como se ele tivesse acabado de sair e o tivesse esquecido, ou como se tivesse acabado de chegar e o tivesse atirado para cima da colcha amarela de chita de Alcobaça. Também está aqui, na parede entre as janelas, a cómoda alta onde esteve, nesse dia triunfal que hoje faz cem anos, um guardador de rebanhos que nunca os guardou, mas é como se os tivesse guardado, porque a sua alma é um pastor. E tanto faz se são fatos ou ficções, todas aquelas linhas que escreveu a Casais Monteiro tantos anos depois. Nesta noite, que porque nada é acaso posso chamar de sagrada, leem-se os poemas deste pastor, depois de sabermos que quem lhes deu vida dedicou-se a pensar muito mais do que este, que agora ouvimos. Desfiam-se as palavras que não são palavras, mas campinas, ventos, ilusões de letras a marcar a substância concreta do mundo. Em silêncio dentro deste quarto, nós que aqui estamos porque nada é acaso, ouvimos o que foi escrito, e a voz melodiosa da Natália Luíza que os lê, sabe o que está a fazer. Ou talvez não saiba, mas faz como se soubesse. O que me leva a ter certeza de que sim: sabe. Dessa maneira caeira de saberem-se as coisas, que é sabê-las porque sentidas, e não porque sabidas.

E aprendi muitas coisas ontem, desse Fernando Pessoa astrólogo que disse a si mesmo sê vários, mas sê inteiro, e que o Paulo Cardoso apresenta tão leve, tão fácil, tão evidentemente. E por querer ser inteiro não podendo ser único, porque somos tudo menos únicos, fingir ser vários para poder ser autêntico. Como nós, mas ao contrário, a fingirmos sermos um só para não nos perdermos entre os vários que vivem dentro de nós - ou para que os outros não se percam nesses vários que palpitam em nós. É mais provável a segunda opção.

A contraparte de dizermos "nada é acaso" está em "tudo é simbólico". E simbólico é que nesse 8 de março estivéssemos nós que estávamos. E as coisas que aprendi, dessa maneira de se aprenderem as coisas que é sentindo-as sem as pensar, são um tropel de cavalos que agora se me impacientam na alma. Não aceitam rédeas nem sela, e nem sequer que eu me aproxime (ainda) para acariciar-lhes as crinas, olhá-los nos olhos, passar-lhes a mão pela maciez forte dos seus músculos lisos. Só posso admirá-los, assim de longe como se olham as paisagens mais secretas da alma. Assim de perto como olho agora, neste instante que se acaba assim que o escrevo, o encontro entre o rio e o mar. E assim como agora neste instante, porque nada é por acaso e tudo é definitivamente simbólico, entrego à fusão destes dois seres, rio e mar, a marulhar conjuras dentro da minha garganta calada, papeis dobrados em quatro, que as ondas vêm receber, com umas mãos que lembram o fado que me estenderam ao nascer. Agora, neste instante, sinto em mim que o amor é (não posso contestar) uma companhia, e não estou só, porque nunca estou sozinha.


Excerto de "O amor é uma companhia", Alberto Caeiro in "O pastor amoroso".
Fotografia: Ana Mata
Palestra da Paulo Cardoso e leitura dos poemas de "O guardador de rebanhos" na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa.

Na cn

Assim como





Fez ontem
Ontem t
Lis

03/11/2013

Assimetrias


À esquerda, o Sever, o Sorraia e o Almansor. À direita, o Erges, o Pônsul, o Ocreza, o Zêzere, o Alviela e o Maior. A lista é do 4º ano primário, creio, e era preciso decorá-la. Os afluentes do Tejo, em cada uma das suas margens. Lembro-me dos da direita, os mais torrenciais, os que descem das partes altas das montanhas a meio de Portugal. O Tejo, que é o maior rio ibérico, deságua aos pés de Lisboa. O forte de São Julião da Barra é o marco do encontro das águas: o Tejo derrama-se larga e tranquilamente, o Atlântico recebe-o abrindo-lhe as ondas suaves. Se fecho os olhos, sou capaz de ver a praia de Oeiras em frente ao forte, as gaivotas aos gritos acima de mim, as ondas a baterem nas rochas ao lado esquerdo. 

Os rios desta minha península são como os sulcos desta folha de eritrina que tenho entre as mãos. As eritrinas explodem em cor quando florescem suas lanças, vermelhas como o Mar Vermelho a que os gregos chamavam eruthros. Ainda que já tenham se passado semanas do fim da sua floração, e agora só haja folhas, a presença das flores continua ao redor do espaço que ocuparam. Mas o meu olhar pousa na quase mas não simetria dos rios que navegam na folha, esses tranquilos Tejos verdes, o caos organizado dentro de limites construídos no cotidiano. Na passagem dos dias. Observo-a longamente, a essa folha; percebo-lhe o contorno justo, a ligação fraterna entre as moléculas e a profunda presença a olhos nus. A folha existe para existir. Como os rios.

Esta atenção à falta de simetria das coisas nasce no espelho que tenho diante de mim. No meu rosto paralisado do lado direito, um olho abre-se desmesurado, e decide não piscar. Ou quase. Fico me perguntando que quer ele tanto ver, que não me permite a pausa da escuridão das pálpebras fechadas.

Estou assimétrica, como a disposição dos afluentes do Tejo, como as nervuras das costas das folhas das eritrinas. Se havia algum equilíbrio entre os dois lados do meu rosto, desfez-se, como uma catedral gótica que decidisse abrir espaços dentro do seu equilíbrio. Como o oferecimento de um mundo a desbravar. É preciso, penso, encontrar formas de equilíbrio dinâmico, que disponham as forças do movimento e da paralisação onde cada uma cabe.

E por isso lembro dos afluentes do Tejo. Da dificuldade de ordená-los na lógica que se pedia, da vontade de repetir-lhes os nomes pelo prazer de o fazer, do dia em que mergulhei nas águas do Zêzere e as soube frias como nunca imaginei ao saborear-lhes o nome. Rios de água sinuando pelas planícies, mansos e férteis, deslizando suaves pelo meu pensamento. São sentimentos, penso, estas águas em busca de oceano onde desaguar, intercalando seu passeio pelas represas e pelas barragens que os homens insistem em fabricar.

Agora que a noite se aproxima, tenho uma paleta cada vez mais variada de novos símbolos. Imagens e palavras e fatos amalgamados ao longo de um dia. Aquilo que meu olho acostumado a si mesmo vê, difere daquilo que o outro, esse que se paralisa e insiste em permanecer-se aberto, me descobre. Como um paradoxo a céu aberto, a sua paralisia desaperta-me, afrouxa-me, alarga-me, desamarra-me, derrete-me, dissolve-me. Descubro que a simetria é uma espécie de invariância sobre transformações, movimentos ou trocas: esta assimetria que vejo ao observar-me ao espelho é uma porta para outro lado de mim mesma. Não posso exercer a força, assim como não podem os dois lados da folha de eritrina, variantes de uma mesma essência que não pode forçar-se a nada que não seja ela mesma. O que posso é observar o novo quadrante, esse poço escavado dentro do espelho.

Enquanto uma onda de solidão luminosa preenche o espaço ao meu redor, pergunto-me onde está o oceano em que tanto desejam desaguar as águas que se represam ao lado direito do meu rosto. São como rios, projetados para fluir, em pleno embate com o espaço fechado e mudo. Os nervos do meu rosto estão à espera.