Tenho há muito tempo esta fotografia guardada, presente de uma aluna querida que se tornou amiga. "Assim como o cinzel, a caneta", foi o que pensei de imediato, porque o assunto era esse mesmo, a escrita, e o instrumento na imagem é um cinzel. Dentro dele, o corte. A palavra cinzel (que só de si já é linda, sonora, experimente falar em voz alta) deriva de cisellum, que era para os latinos um "instrumento de corte", derivado ele próprio do verbo caedere - cortar.
Nada alivia mais a escrita do que cortar - cortar excessos, rebarbas, nós, sobras, manchas. O que só se consegue depois de tudo ter posto do lado de fora, depois das palavras terem sido vomitadas, jogadas, lançadas, arremessadas contra o papel. Numa entrevista dada ao jornal O Globo por estes dias, a psicanalista Catherine Millot fala sobre a capacidade que a escrita tem de trabalhar em nós o que não conseguimos dizer. Olho para o que escrevo e penso o mesmo. Se eu tivesse de dizer metade do que escrevo, calava-me. Não só porque ao escrever posso pensar e repensar, posso rasgar, guardar, riscar, mas sobretudo porque posso cinzelar o escrito de ponta a ponta, antes de me decidir a compartilhar com alguém.
O poder do cinzel atua todos os dias, e assim, como diria Catherine se usasse essa palavra, trabalha-me a alma. A justa medida de peso e doçura, a precisão exata da inclinação da lâmina. Corto e corto e corto - às vezes, por capricho, deixo um veio aberto, uma ferida sem cicatrizar, uivando em meio ao escuro. Pode ser que volte mais tarde para acompanhar a sua cicatrização, e pode ser que a exponha ao ar, e espere que os cortes abruptos da vida cicatrizem da maneira como quiserem, deixando as marcas que entenderem, criando desenhos e rugas e peles onde lhes aprouver. A vida, na maioria das vezes, sabe melhor do que nós mesmos.
Por isso, ao escrever, começo por não medir palavras, para que saia o que tiver que sair, da maneira mais poluída, infame, desgostosa, raivosa ou desgraçada que for. Sou eu, ali. Inteira e sem cortes, nem mesmo aqueles que farei depois. Espero dar certo algumas vezes.
Não sei se o pior, nesse ato que é a escrita, seja querermos de imediato a perfeição, ou imaginarmos que a alcançamos em algum momento. A agonia de publicar um livro lateja nesse lugar. Por muito que tenha havido processos, até intermináveis, a imperfeição é tão latente e óbvia que dói. Qualquer um gostaria de ter podido fazer melhor, digo a mim mesma, sem ser grande consolação. O importante, nesse ato de lançar ao mundo algum grau de escrita, é despedir-se das palavras e saber que não são mais suas, penso antes de dormir.
Acho que essa talvez seja a minha maneira favorita de enganar-me e não pensar mais no assunto.