Aprende-se com Quitéria a arte de
dizer das coisas o que elas são. Sem complacência. Seu único olho vê mais da
vida do que os dois que teve. É ela quem diz, e acrescenta: na época em que
tinha dois olhos, os caminhos apareciam dobrados.
Quitéria perdeu a vista
direita numa distração que quase lhe custou a vida. "Mas vê tu", diz ela, "não
teria aprendido a olhar as coisas pelo lado de serem vistas se de outro jeito fosse, por isso te
digo que tanto faz o tamanho da desgraça. Cada uma que chega é pra mostrar o
que não se sabe, ninguém tem motivo pra reclamar de estar vivo".
Há um desencanto morno na fala de
Quitéria, como quem viu muito da miséria humana em ação. Não a miséria de não
ter o que comer ou o que vestir, mas a miséria de ser menos do que se pode ser.
A miséria de ser mesquinho, sobretudo.
Quitéria não guarda muitas
ilusões sobre os seres humanos. Por experiência própria, sabe que as pessoas
tendem à displicência, e essa ela não perdoa. "Vocês não durariam um dia na
caatinga", diz sem sorrir. "A primeira bala perdida já os atingiria – como
vos atinge o primeiro pensamento daqueles que invejam, debocham, desconfiam, desprezam.
É preciso andar de sentidos abertos, e evitar o que é pra ser evitado".
Não há falsidade no entorno de
Quitéria. Há humor, e muitas vezes ela ri, uma risada que soa por dentro como cristal
estalando debaixo de sol quente. Não é o riso alegre e leve do povo da Bahia, nem o riso paciente e amoroso dos velhos curvados.
Quitéria ri o riso de quem acaba de morder um jiló amargo, e olha para o reino
humano ora com relutância, ora (mais frequente) com extraordinária falta de paciência.
“Recado dado, tarefa cumprida” é
a sua missiva. Quando mal-entendida, ou quando as suas palavras são levadas
pouco a sério, ou quando a pessoa está tão perdida dentro de si que sequer
consegue escutá-la, Quitéria dispara. Nessas horas, é capaz de pegar a sua
cartucheira e batê-la no chão, com a força que colocaria numa espada caso a
tivesse. Assim como anuncia a sua chegada com o cheiro de pólvora recém
queimada e o estampido de 50 balas cortando metálicas o espaço, assim rodeia a falta
de inteireza alheia com a secura agreste do couro.
Quitéria está entre aqueles que
me vigiam. Chegou quando eu fiquei pronta para conhecê-la. Fosse antes, teria
sido reduzida a pó. Quitéria não se ajoelha, Quitéria não usa máscaras, não propõe
a guerra e vem de peito aberto. Se aquilo que a recebe não está à altura, tem
as armas prontas, e dispara sua Palavra na direção do coração do outro, certeira
como um bisturi afiado. Quitéria se enfurece, numa espécie de fúria santa, com aquele
que já sabe, e ainda assim erra. Se tem algo que Quitéria não perdoa é o pouco
caso com aquilo que é obrigação de gente.
Conhecer Quitéria não é caminho
raso, nem rápido. Ela não tem pressa. Tem urgência quando é de se ter, mas não
pressa. Está pouco preocupada em que se goste ou não dela; aliás, acho que ela
prefere que não se goste, para que não sejam corações amolecidos que a guardem.
Prefere a construção lenta, e por isso se desdobra lenta – encara quem a teme,
quem a respeita e quem a admira com o mesmo olhar e a mesma altivez. Não é dada
a explicações, é dada a dizer o que as coisas são. A outra parte, diz ela, é
tarefa do ouvido de quem ouviu. E o tempo se encarrega do resto, e Quitéria
sabe, e por isso não se apressa. Cronos e Kairós são a mesma coisa dentro dela.
O que muda é a certeza inabalável que tem de que a vida está aqui para ser
vivida, feita, amassada e assada como pão, e por isso digo que não acalenta
ilusões. Sabe dos limites que pode um ser humano, sabe o quanto não se muda
ninguém, mas sabe também que a decisão interna provoca revoluções. E por isso
urge: "para quando, a tua mudança?" E a pessoa responde: "é verdade, fui ingênua".
E Quitéria responde: "Não foi, tu foi é besta".
Indulgência e displicência são palavras
que Quitéria não usa, ao contrário de Vó Chica, que em seu amor macio e doce
nos leva pela mão à compreensão das coisas. Quitéria está em outro lugar.
Considera que já aprendemos, de tanto ouvir a sábia Chica. E cobra. Dura e
prontamente. "Não veio ainda? Não fez ainda? Continua a mesma coisa? Para que
fazer perder meu tempo então? Se tu não muda, não vou ser eu que vou te fazer
mudar."
Trabalhar com Quitéria é ter a
segurança de que nada ficará encoberto, sem revisão. Muito pouco ela deixa
passar, e quando deixa é porque mais adiante vai laçar, quase rindo de eu ter
achado que ela teria passado sem ver, ou (pior) que não tivessem importância as
coisas que têm. Por isso, se algo Quitéria me ensinou foi a agir sem ter todas
as explicações, e a saber na pele que hora de correr é de correr, e hora de
enfrentar é de enfrentar. "E preste atenção", diz ela que não quer as coisas pela
metade, "a hora não é eterna: se não se aproveita o degrau do tempo, perde-se a
escada inteira".
Quitéria é atenção plena, é raio
faiscando o ar, é trajeto certeiro de bala. Não erra o alvo porque não se
distrai, e não se distrai porque pagou com a vida a própria distração. Por isso
seu amor nos atinge em cheio. Porque ela sabe. Ela sabe o que é titubear. O que
é relutar. O que é esse campo traiçoeiro da ingenuidade, que nos faz imaginar
que o que não muda, mudará, que o que não tem, terá, que o que nos machuca um
dia nos amará. "Acorda", diz Quitéria, "e vai se olhar no espelho. Vê se quem te
olha do outro lado é quem você quer ser do lado de cá. Não adianta trocar o
espelho, o que adianta é trocar dentro de ti o que não te vale a pena". Quem com
ela conversa, espera ao final um até logo, algum sinal de despedida. Quitéria frequentemente
se esquece das regras da boa convivência, dos protocolos da civilidade. A pessoa
pisca, e Quitéria já se foi. O que tinha a fazer foi feito, não há mais tempo a
perder.