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22/09/2019

Tempo a não perder


Aprende-se com Quitéria a arte de dizer das coisas o que elas são. Sem complacência. Seu único olho vê mais da vida do que os dois que teve. É ela quem diz, e acrescenta: na época em que tinha dois olhos, os caminhos apareciam dobrados. 

Quitéria perdeu a vista direita numa distração que quase lhe custou a vida. "Mas vê tu", diz ela, "não teria aprendido a olhar as coisas pelo lado de serem vistas se de outro jeito fosse, por isso te digo que tanto faz o tamanho da desgraça. Cada uma que chega é pra mostrar o que não se sabe, ninguém tem motivo pra reclamar de estar vivo".

Há um desencanto morno na fala de Quitéria, como quem viu muito da miséria humana em ação. Não a miséria de não ter o que comer ou o que vestir, mas a miséria de ser menos do que se pode ser. A miséria de ser mesquinho, sobretudo. 

Quitéria não guarda muitas ilusões sobre os seres humanos. Por experiência própria, sabe que as pessoas tendem à displicência, e essa ela não perdoa. "Vocês não durariam um dia na caatinga", diz sem sorrir. "A primeira bala perdida já os atingiria – como vos atinge o primeiro pensamento daqueles que invejam, debocham, desconfiam, desprezam. É preciso andar de sentidos abertos, e evitar o que é pra ser evitado".

Não há falsidade no entorno de Quitéria. Há humor, e muitas vezes ela ri, uma risada que soa por dentro como cristal estalando debaixo de sol quente. Não é o riso alegre e leve do povo da Bahia, nem o riso paciente e amoroso dos velhos curvados. Quitéria ri o riso de quem acaba de morder um jiló amargo, e olha para o reino humano ora com relutância, ora (mais frequente) com extraordinária falta de paciência.

“Recado dado, tarefa cumprida” é a sua missiva. Quando mal-entendida, ou quando as suas palavras são levadas pouco a sério, ou quando a pessoa está tão perdida dentro de si que sequer consegue escutá-la, Quitéria dispara. Nessas horas, é capaz de pegar a sua cartucheira e batê-la no chão, com a força que colocaria numa espada caso a tivesse. Assim como anuncia a sua chegada com o cheiro de pólvora recém queimada e o estampido de 50 balas cortando metálicas o espaço, assim rodeia a falta de inteireza alheia com a secura agreste do couro.

Quitéria está entre aqueles que me vigiam. Chegou quando eu fiquei pronta para conhecê-la. Fosse antes, teria sido reduzida a pó. Quitéria não se ajoelha, Quitéria não usa máscaras, não propõe a guerra e vem de peito aberto. Se aquilo que a recebe não está à altura, tem as armas prontas, e dispara sua Palavra na direção do coração do outro, certeira como um bisturi afiado. Quitéria se enfurece, numa espécie de fúria santa, com aquele que já sabe, e ainda assim erra. Se tem algo que Quitéria não perdoa é o pouco caso com aquilo que é obrigação de gente.

Conhecer Quitéria não é caminho raso, nem rápido. Ela não tem pressa. Tem urgência quando é de se ter, mas não pressa. Está pouco preocupada em que se goste ou não dela; aliás, acho que ela prefere que não se goste, para que não sejam corações amolecidos que a guardem. Prefere a construção lenta, e por isso se desdobra lenta – encara quem a teme, quem a respeita e quem a admira com o mesmo olhar e a mesma altivez. Não é dada a explicações, é dada a dizer o que as coisas são. A outra parte, diz ela, é tarefa do ouvido de quem ouviu. E o tempo se encarrega do resto, e Quitéria sabe, e por isso não se apressa. Cronos e Kairós são a mesma coisa dentro dela. O que muda é a certeza inabalável que tem de que a vida está aqui para ser vivida, feita, amassada e assada como pão, e por isso digo que não acalenta ilusões. Sabe dos limites que pode um ser humano, sabe o quanto não se muda ninguém, mas sabe também que a decisão interna provoca revoluções. E por isso urge: "para quando, a tua mudança?" E a pessoa responde: "é verdade, fui ingênua". E Quitéria responde: "Não foi, tu foi é besta".

Indulgência e displicência são palavras que Quitéria não usa, ao contrário de Vó Chica, que em seu amor macio e doce nos leva pela mão à compreensão das coisas. Quitéria está em outro lugar. Considera que já aprendemos, de tanto ouvir a sábia Chica. E cobra. Dura e prontamente. "Não veio ainda? Não fez ainda? Continua a mesma coisa? Para que fazer perder meu tempo então? Se tu não muda, não vou ser eu que vou te fazer mudar."

Trabalhar com Quitéria é ter a segurança de que nada ficará encoberto, sem revisão. Muito pouco ela deixa passar, e quando deixa é porque mais adiante vai laçar, quase rindo de eu ter achado que ela teria passado sem ver, ou (pior) que não tivessem importância as coisas que têm. Por isso, se algo Quitéria me ensinou foi a agir sem ter todas as explicações, e a saber na pele que hora de correr é de correr, e hora de enfrentar é de enfrentar. "E preste atenção", diz ela que não quer as coisas pela metade, "a hora não é eterna: se não se aproveita o degrau do tempo, perde-se a escada inteira".

Quitéria é atenção plena, é raio faiscando o ar, é trajeto certeiro de bala. Não erra o alvo porque não se distrai, e não se distrai porque pagou com a vida a própria distração. Por isso seu amor nos atinge em cheio. Porque ela sabe. Ela sabe o que é titubear. O que é relutar. O que é esse campo traiçoeiro da ingenuidade, que nos faz imaginar que o que não muda, mudará, que o que não tem, terá, que o que nos machuca um dia nos amará. "Acorda", diz Quitéria, "e vai se olhar no espelho. Vê se quem te olha do outro lado é quem você quer ser do lado de cá. Não adianta trocar o espelho, o que adianta é trocar dentro de ti o que não te vale a pena". Quem com ela conversa, espera ao final um até logo, algum sinal de despedida. Quitéria frequentemente se esquece das regras da boa convivência, dos protocolos da civilidade. A pessoa pisca, e Quitéria já se foi. O que tinha a fazer foi feito, não há mais tempo a perder.