29/07/2021
Ser equânime
24/05/2021
Uru'ku
Uru'ku, em tupi-guarani, significa vermelho, e essa é a cor deste Caboclo altivo, Caboclo de Xangô. Não costuma demorar-se em explicações, este amigo, mas está atento aos sinais do que deve fazer e raramente hesita ou suspende um passo iniciado. Com ele, a cada dia, aprende-se algo a mais sobre a própria e verdadeira estatura, o que nos diminui e o que nos faz crescer. Paciente no meio da mata, parece esperar há décadas. Não sorri nem entristece, o seu olhar sereno não se altera, nem no perto, nem no longe. O urucum, sempre a seu lado, confere a força e também o poder de limpeza, de aquecimento e de queima abrupta e ardente.
Vermelho é a cor do dia de ontem, dia do Divino, dia de festa nas terras açorianas dos meus avós e da minha mãe. Fartura e fraternidade nas mesas postas ao longo das ruas, cada Império coroado, todas as barrigas saciadas. Uma das coisas que mais aquece a minha alma umbandista é poder viver quem fui e quem sou num mesmo tempo, sem precisar deixar pedaços meus para trás. O fogo de Xangô brilha nas fogueiras dos meus avós que jamais ouviram esse seu nome e, quando o acendo, como ontem cedo antes que o Sol do dia de Pentecostes nascesse, saúdo todos os dons que Deus faz brilhar na Terra, em cada um de nós, em cada criatura, cada canto, cada planta, cada forma de vida.
Há gestos dos Guias Espirituais que foram feitos para reverberar ao longo de anos. Eu demoro-me em muitos deles, e me surpreendo, ano a ano, com a forma multifacetada com que permitem que olhemos para o mundo e para nós mesmos. Não sei se ando devagar nessas observações, se me demoro tempo demais, se me perco entre tantas coisas. Talvez pudesse tudo ser mais rápido. Mas Vó Chica, que é quem me coloca o urucum diante dos olhos para que o escreva, balança a cabeça achando graça. Ela já me disse, e eu já entendi, mas esqueço: o Divino, esse Ser de Elevado Espírito que desce em nossa direção, dá-nos uma certeza: a de que existem dons que não pertencem ao mundo terreno, mas ao mundo espiritual. Dons do Espírito que nos auxiliam, nessa caminhada aqui na Terra, a não termos a pretensão de que tudo podemos, somos e fazemos - basicamente porque (assim entendo eu) não conseguimos ter completa percepção do que seja de fato a nossa essência. Teríamos menos liberdade para ir e vir, errar e acertar, se assim fosse.
Por isso, ao nascer deste lado, esquecemos o lado de lá. E às vezes, quando em terra, o Caboclo Pena Vermelha tinge-nos o centro da testa de vermelho, esse vermelho do urucum que na árvore diante da janela, num determinado horário do outono, brilha como se tivesse brilho dentro. O brilho é esse mesmo da foto ali acima - não tem retoque nem filtro, é desse jeito mesmo que se mostra, por pequenos minutos a cada dia - um milagre que custo a acreditar, a cada dia que vejo.
Urucum é uma erva de limpeza e regeneração. Não é apenas Xangô que a impregna: Oxumaré e Egunitá também, seus mil frutos em cada casulo, sua cor vermelho fogo. Não deve ser coincidência que logo hoje, dia 24 de maio, seja dia de Santa Sara Kali, que vem a ser a forma sincretizada de Egunitá, Orixá de Umbanda, que é fogo também - fogo abrasador que arde, faz tremer, sacode, purifica. Como em tudo, é preciso haver fundamento, para que existam bases sobre as quais possamos avançar em segurança. Nos banhos, é bom saber o que invocamos em nosso benefício ou benefício de outros. Urucum, além de fazer arder e sacudir, também fortalece, endurece e mantém, e aqui vemos Xangô assomar por trás da matéria vegetal. E ainda liga, dissolve e derrete, sob o olhar e cuidados de Oxumaré. As ervas são um mundo sem fim de aprendizado e possibilidades. Nelas, o Divino torna-se cor, cheiro, umidade, secura, calor, frio, e se abrirmos bem os olhos da alma, veremos mais do que as aparências nos mostram, e nem sempre enganam.
19/01/2021
Divino amargo
Sigo Vó Chica até o lugar onde quer sua pequena casa. Posso andar de olhos fechados, de tão devagar que avança. Não sei se olha tudo para que nada se perca, ou se anda devagar para que eu não corra e veja o que na velocidade não poderia (não costumo) perceber. Como aquele pé de guiné, que sobrevive a duras penas, ainda à espera de lhe ser permitido o costume da sombra. Ou ali ao lado, quase imperceptível, a alfazema fazendo milagre, rodeada de coquinhos pelos quatro lados. Fico contente de sentar-me aqui, perto da sua futura casa. Vó Chica ganhou mais do que um banquinho - assim posso sentar-me em um e com os olhos fechados chamar essa amiga querida de tantos e tantos anos, e ela quem sabe, se eu tiver sorte e motivos, se sentar também.
Vó Chica tem o cheiro e o gesto daqueles que dissolvem, transmutam e reestruturam o que precisa ser transformado. Está de um lado e do outro da vida, encantada guardiã das passagens, e por isso nos leva de um lado para o outro, e desse outro para mais um. Ensina, acalma, compreende, protege e sorri, sempre doce, mas também, nestes últimos dias, urgente, incisiva e prática.
"Filha, o tempo já está correndo, você percebe? Se ainda não foi, é preciso aprender a soltar tudo, aprender a encontrar a força da vida em qualquer pedaço de chão, em qualquer lugar de coração, em qualquer forma, espaço, tempo. Se há perdão a pedir, é preciso ser pedido agora, se há agradecimento a fazer, é preciso que seja feito agora, neste instante. E não é na sua cabeça, filha - é usando o sopro divino que nasce na palavra pronunciada, que chega até o ouvido do outro e de lá é carregada até o coração. Não há outro caminho, não se engane. Não diminua, filha, o que tem tamanho. Aceite o que é, e ande, em passos retos evitando as curvas e os rodeios. Não perca tempo, e ajude a quem puder a que também não o perca". Vó Chica quer muito ser escutada, estes últimos tempos.
A carqueja em minhas mãos já nasce retorcida, abrindo-se em dimensões de busca de luz, barbatanas nadando no ar líquido. Pouco se importa de não ser folha, nem flor, nem caule, nem nada. Busca imperiosa a força da luz solar, alarga-se no espaço, sobe através dos troncos, entrelaça-se entre eles, diferente de suas irmãs que nascem nos pastos e à beira dos caminhos. Estas hastes, que Vó Chica coloca em minhas mãos, e semeia nos alegres jardins de flores, precisa de esforço.
Oxóssi, Iansã e Ogum irradiam com suas forças a carqueja, e com ela as nossas forças vitais, dissolvendo o desgaste psíquico. Aprendo isso nos livros, enquanto sinto Vó Chica me estimulando a curiosidade, folheando através do meus dedos, guiando meu tato, meus olhos, meu amor pelas coisas. Nos confins de tudo, quando me sento perdida à mesa que me traz respostas, Vó Chica está diante de mim. Lê meus pensamentos, sabe meus desejos, conduz-me pelos férteis campos da nossa relação, com uma rapidez inusitada que contrasta com o peso da maioria dos seus passos. Bom humor e alegria - estímulos que a carqueja inspira dentro de nós, com as suas flores de outono, o seu amargor de acordo com a vida. Acorda, parece dizer, e vai viver - essa vida não programada, não desejada, não colorida pelas cores que imaginaste, mas ainda assim a vida, e vida será enquanto for preciso.
Tomo um banho de carqueja (preciso experimentar sua força), e porque não quero sucumbir a medo algum, misturo fedegoso e folhas de laranjeira, faço gargarejos e bebo o chá. Limpa a garganta e acomoda os sentimentos num lugar correto e renovado. Vó Chica desaparece por entre as volutas de vapor. Como que a desejar-me boa noite - "dorme bem e acorda com os olhos limpos e a alma corajosa".
11/09/2020
As coisas morredouras
Vó Chica pede-me silêncio ao chegar. Leva-me pela mão ao seu próprio silêncio, enquanto segue o caminho. Um bálsamo.
Há muitas energias ao redor neste momento, penso em voz baixa, nem todas compatíveis umas com as outras. Discriminar, e perceber o que são umas e o que são outras, e quais convêm a cada um, parece-me nunca ter sido tão importante. Vó Chica olha-me com os olhos apertados, querendo perceber se falo sério ou se brinco. Digo-lhe que é sério. E ela desfaz-se em risos.
"Mas quando
é que, filha, quando é que uma coisa dessas não foi importante? Quando foi que resistir
aos acontecimentos e aceitar tudo aquilo que se mostra já não foi um portal que
aumentasse a visão vossa?
Lembra, filha, que tudo o que se tem é esta vida, este dia,
esta hora, este tempinho aqui mesmo que eu estou aqui e você também. E mesmo neste
minuto agora tudo é novidade e permanência. E da mesma forma há dois lados em
tudo: no corpo, na moeda, na noite, no dia. Quando está escuro você sabe que não
está claro, e quando está claro você sabe que não está escuro. E você precisa saber escolher. É só assim a vida, não é?"
Rio, e agora é ela quem me olha séria. Espreme delicada uma
folha de bálsamo entre seus dedos, e eu me concentro, para tentar entender o que as suas palavras simples querem me ensinar. "É preciso,
filha", continua ela, "que você entenda que quando o rio é descido você não está
subindo, e que se quiser subir vai precisar virar a direção. De outra forma, em
vez de chegar à nascente, você vai é alcançar a foz. É da decisão interna de
cada um, o rio que vai percorrer. E é dessa decisão que vai nascer a paisagem e
o ensinamento que está à espera.
E tem mais uma coisa, filha. Não se perca no lamento do
perdido, porque lamuriar o passado só cria confusão em seu pensamento, ele não
vai mais saber o que é de ontem e o que é de hoje. E você é hoje, filha, você
não é ontem. É isso que tem de discriminar. Depois da confusão, logo chegam a tristeza, o desânimo e a depressão,
que é como vocês chamam a tudo isso junto. Tudo companhia da confusão do pensamento,
que é quem semeia a escuridão, nascida da esperança e da compaixão quando são cegas. Só
lamenta o passado e o mal feito quem se arrepende; e quem lamenta a falta que
lhe faz o bem feito e tem saudade é porque não consegue se desinteressar por
aquilo que fez.
E filha, tem mais uma coisa. Não é pra se dar tanta importância a si mesmo.
Se você não fez, foi porque não pôde, porque foi incapaz, talvez fraca, talvez
teimosa, talvez incompetente mesmo. Mas veja como o dia de hoje já está grávido
de amanhã, veja como já tem as águas prontas pra despejar o novo dia nas mãos
de quem faz nascer. O que você vai fazer, filha? Correr atrás das águas que já
estão debaixo das pedras ou correr pra colher essas que estão prestes quase
quase a escorrer?
Eu vou voltar, filha, uma e outra vez pra dizer a mesma coisa
para vocês todos. De uma vez é de um jeito, de outra é de outra maneira, para
que os ouvidos de vocês escutem e contem pro resto do ser de vocês. Veja você a
importância que tem seu ouvido, que é o que faz tudo isso que eu digo caminhar
para dentro do seu coração. Se você não escutar, não vai ouvir, e se não ouvir,
não vai escutar. Porque é de dois movimentos que o entendimento do ouvido se
faz, entende? Por isso que é difícil entender de primeira. E é melhor fechar os
olhos, mesmo que dificulte a sua escritura, filha, porque com os olhos fechados
você pode abrir melhor os olhos dos ouvidos, que são os que vão lhe mostrar os
universos escondidos para dentro das estrelas."
Eu sorrio, pensando nas vezes sem conta que ela me pediu, nesses últimos tempos, para olhar as estrelas, assim que anoitece, antes de amanhecer, a meio da noite. Como se me ouvisse, logo me responde. "Você sabe porque falo pra você olhar as estrelas, filha? Para ver o tamanho do infinito e ter certeza que nunca, mas nunca mesmo, vai poder entender tudo isso, porque o que a filha tem de fazer, e todos os filhos têm de fazer igual, é perceber a sua desimportância, e esquecer-se de si mesmos, e entregar as suas almas para seu próprio espírito, que é uma coisa sem nome e sem explicação que não se interessa por nada, porque é todas as coisas ao mesmo tempo.
E assim é preciso que se respeitem os ciclos. Que se deitem e durmam para morrer um pouco todo dia e saber aos poucos o que é morrer quando for a hora. Igual o dia, igual a noite. Todos os universos estão escutando. Melhor parar de achar que as coisas estão nas mãos de vocês. Melhor que entreguem os frutos e o seu conduzir a quem guia e norteia os seus espíritos. O resto, filha, é coisa morredoura.
09/09/2020
Desinteresse
Vó Chica tem nos falado do desinteresse. Pensamos
que é bom o interesse pelas coisas, pelos outros, mas ela diz que não. Diz que
o interesse é quem desenvolve em nós a posse, o ciúme, o desejo, a ânsia, a querência
das coisas que não são precisas. Interesse é “estar entre”. Podemos nos sentir
importantes, ou que estamos “fazendo a diferença”, quando nos interessamos por alguma coisa ou por alguém, mas não estamos em nós, “estamos
entre”. Já quando nos movemos nas trilhas da ação desinteressada, aprendemos as
lições da neutralidade, da imparcialidade e do afeto genuíno, que deixa cada
coisa e cada pessoa ser aquilo que deve, quando deve, como deve.
Desinteresse, na voz de Vó Chica, é trilhar o nosso caminho
fazendo aquilo que podemos fazer, sendo úteis, que é a bênção maior que podemos
ter, abertos a qualquer tarefa.
Eu sei porque Vó Chica quer que olhe o céu. Porque os tempos
de Urano estão sendo chegados, como ela diz, e nesses tempos o futuro, a
coletividade, o conhecimento intuitivo, a sensação de pertencimento à
Humanidade vão ser as mais preciosas qualidades.
E como esse é um tempo acelerado, Vó Chica pede calma e tranquilidade.
Pede que estejamos atentos aos nossos movimentos, e que não nos angustiemos nem
nos deixemos levar de imediato e sem controle por nada que possa nos suceder. Pede
que estejamos conscientes de com quem dividimos o espaço que ocupamos. Que nos
coliguemos com a Natureza à nossa volta, a reconheçamos e nos tornemos seus
observadores. Não são necessárias técnicas ou teorias. Para a ligação que
devemos cultivar não há regras nem caminhos prontos. É a ligação que nos
ensinará e para ela precisamos apenas silenciar a nós mesmos e entrar em
contato. Ouvir o vento, os pássaros, os barulhos das folhas e dos galhos; observarmos
uma árvore, uma flor, um pequeno inseto. Um cão. Um gato. Um pássaro no afã de
seu ninho. Perceber e deixar ir, sem cultivar interesse.
Vó Chica pede que desenvolvamos por tudo amor sem julgamento,
sem dedução, sem a lógica do nosso pensamento usual. Não importa, ao Sol, o que
pensemos dele, mas sim como nos comunicamos com ele, que luz ele desperta em
nós. Não importa o que possamos dizer - diminuiríamos aquilo que recebemos, e
que não cabe em nossas palavras. Até se perde. Transmutemos o que recebemos e
ofereçamos onde quer que estejamos.
Vó Chica pede que nos nutramos de silêncio para podermos
escutar melhor. Que controlemos a palavra, que não a desperdicemos e tenhamos
cuidado com o que colocamos dentro do ouvido do outro. Ouvidos são seres
desprotegidos, não têm portas que se fechem nem pálpebras que os cubram.
Vó Chica pede que cessemos as discussões conosco mesmos, e que cultivemos o silêncio interno. Será mais fácil diminuirmos o que dizemos ao outro, e assim não contribuiremos para a sua angústia e a sua ansiedade. Na maior parte das vezes, diz baixinho Vó Chica antes de se ir embora, o que cada um quer é escutar a própria voz, e ter certeza de que existe algo que possa dizer. Não é necessário. Não importa o que você já viveu, as experiências que teve – a sua valia é terem se transformado em aprendizado. A própria experiência, de um tempo gasto e passado, não serve aos desafios do outro neste tempo presente. O silêncio é a melhor oferta. Em silêncio expandimos o nosso interior e ouvimos melhor o nosso guia interno. As vozes dentro de nós nos distraem de nós mesmos.
Vó Chica fecha os seus e os meus olhos e me converte em sono.
Quando os abro, ela já se foi, e todas as velas se apagaram. Ainda assim, está
claro.
25/03/2020
Quaresmeiras em flor
16/09/2019
Comunidade-terreiro
Numa comunidade-terreiro, existe o silêncio. Assim como a gargalhada e a piada alegre, o momento solene e as lágrimas nos olhos. Mas o silêncio interno, esse que permite que ouçamos "o ressoar das planícies no vazio", como diz Sophia de Mello Breyner Andresen, ou "a consciência atenta que dos confins do universo me decifra e fita", esse silêncio não tem palavras que o descrevam, e vive pleno em cada oração, em cada canto, em cada sintonia de aproximação aos mundos espirituais. Com esse silêncio, vive dentro de nós a entrega, e a possibilidade de deitar-se ao comprido diante de Deus e dizer-lhe aqui estou, toma-me em tuas mãos e ajuda-me a ser uma pessoa melhor.
13/03/2019
Quaresma e Umbanda
11/03/2019
O ronco e o raio
