26/07/2009

Mistache malabona

Devo agradecer a meu avô e a seus estudos de esperanto essa expressão que a família inteira adotou, há décadas, para definir um estado de espírito que nos ataca e não tinha, até então, definição exata na nossa própria língua. Sei que meu avô me dizia que se tratava de “estar chateado, aborrecido, de baixo astral, algo deprimido”, mas convenhamos que dizer “Ai... mistache malabona” é muito mais claro e expressivo do que “estou um tanto deprimido...”. Se eu não tivesse acabado de descobrir que essa expressão na verdade não existe em esperanto (eu era mais feliz sem esses dicionários online...), continuaria esta crônica, sinceramente, menos estarrecida, mas vai assim mesmo, e passo a entender simplesmente que meu avô fez algumas adaptações suas ao esperanto que estudou. Considere que mistache malabona é mesmo estar assim meio chateado, seja lá em que língua for, e pra frente.

Eu nunca compreendi muito bem (e, que eu saiba, ninguém na família o fez) essa fascinação súbita mas duradoura do meu avô pelo esperanto. Comprou um curso de auto-aprendizagem, da Reader’s Digest salvo erro, tipo de compra que ele adorava fazer porque chegava pelo correio e não era preciso perder tempo em lojas, correndo ainda o risco de ganhar um prêmio em forma de livro ou disco, como as valsas completas de Strauss que motivaram minha avó a me ensinar a valsar pela sala de casa em manhãs de sol fresco.

Meu avô começou a estudar, afincada e organizadamente. De vez em quando, contava algum detalhe – cada vez sabia mais, julgo que tenha realmente aprendido a língua de fio a pavio, mas eu continuei sem entender a razão daquilo. Dizia-me que era porque um dia essa seria a língua universal, e ele queria poder comunicar-se com todos. Mas, primeiro (pensava eu em silêncio, para não lhe diminuir o entusiasmo), demoraria até que isso acontecesse, ele era o único na cidade inteira a aprender esperanto, ele sabia disso, o que faria com que demorasse, e eu tinha consciência do tamanho da juventude do meu avô; segundo, ele não era assim o tipo de pessoa interessada em conversar com os outros e conhecê-los mundo afora, nem sequer inglês ele tinha querido aprender!, e sempre me dizia que era melhor não brincar com os vizinhos e ficar em casa bem quietinha, que os outros era só para quando realmente preciso (acredite, eu obedecia, e por isso, se não tive vários heterônimos como Pessoa na sua infância, tive uma porção de amigos imaginados); e, terceiro, não havia ninguém que ele conhecesse que sequer estivesse pensando em aprender essa língua,com quem é que ele ia treinar conversação? (Se esta última ponderação parecer elaborada demais, é só esclarecer que eu tinha uma mãe que me dizia que a coisa mais importante para aprendermos outras línguas era cuidarmos da conversação.)

Pois meu avô aprendeu esperanto mesmo nunca tendo falado nessa língua com ninguém, e eu acho que ele se sentia melhor e mais inteiro por isso. Na mala de poemas e outros escritos que me ficou de herança em testamento quando se foi, e que eu guardo numa das prateleiras mais altas da biblioteca de casa, lugar das coisas com as quais eu ainda não descobri o que fazer, há vários poemas em esperanto (confesso que depois do dicionário online, eu começo a duvidar...), sem tradução, que um dia eu deverei reunir e levar a alguém que saiba essa língua dotada de esquecimento. Pelo menos vou poder entendê-los, quem sabe traduzi-los, e fazer com que o esperanto do meu avô, afinal, encontre ouvidos para ouvi-lo.

(Eu ia terminar aqui, mas acabei lembrando de outra das palavras de uso corrente na família. Não lhe sei a origem, só falta ser do esperanto do meu avô – embora, depois de descobrir que a que dá título a este texto não o é, passo a ter certeza de que esta segunda menos ainda o será! Meu pai usava-a bastante, quando queria referir-se a algo que era quase bom, mas estava longe de agradar. Algo que quisesse muito fazer-se, mas que nascia já sem os apetrechos necessários para valer a pena. Algo assim “fracativo”.)

(E eu ia terminar de novo, mas pus-me a rir com os dois xingamentos preferidos do meu pai, que estão aqui vindos do passado e ressoando nos meus ouvidos: estafermo e estupor. Nada de esperanto ou invenção de membro familiar, puro lusitanismo. E ainda é preciso imaginar-lhes o acento lisboeta, embora meu pai fosse coimbrão.)

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