Há dias atrás falei de Adbid, aquele marroquino dono de camelos que conheci brevemente via skype. Uma menção assim tão especial a um “conhecimento de fundo tão breve e fortuito” (as palavras não são minhas, e por isso as aspas em torno delas) deixou meu amigo João Pedro incomodado. O nome é fictício, que eu não quero expor ninguém, embora isso fosse difícil, porque o João Pedro entra naquela categoria pode ser que bizarra de amigos virtuais. Tenho poucos destes amigos (e na verdade resisto um pouco a chamá-los assim, contudo se não o fizer aqui certamente o João Pedro cortará relações comigo, mesmo que de qualquer forma a questão com ele seja outra), mas é interessante o que mantenho com eles. Não sei se de fato são quem dizem, chamam como dizem chamar-se, vivem onde dizem viver ou fazem o que declaram fazer. Podem ser qualquer coisa que queiram, e eu também posso imaginá-los da maneira que eu quiser, e ainda por cima imaginar-me e declarar-me a meu bel prazer. Não me parece que, de maneira simplista como alguns gostariam, sejam necessariamente pessoas solitárias, daquele tipo que não consegue manter amigos de carne e osso, relacionar-se com os outros presencialmente etc e tal. Eu faço parte deles, a bem da verdade, e não me considero assim um ser anti-social.
O João Pedro, por exemplo, escreve poesia e é o máximo que consigo saber realmente dele. Não vi fotos, nem quero, não sei seu msn nem skype nem nada que sugira que bate-papos informais possam surgir. Não lhe conheço orkut, facebook ou twitter. O nosso contato restringe-se aos emails que nos mandamos, depois de um pedido de leitura e opinião de poemas, numa lista de discussão sobre literatura marginal.
Mas o João Pedro ficou incomodado por ainda não ter sido motivo de uma crônica (enquanto que o fortuito do Abdib sim), numa súbita manifestação de ciúmes que eu só consigo mencionar aqui, no anonimato de um nome fictício, porque ao vivo e a cores e através de seu email pessoal seria o fim da nossa amizade. O João lê estas crônicas no blog, e por isso nem precisa sentir-se realmente mencionado, pode ser que nada disto seja de fato real, e assim não há ninguém para se chatear. Pode ser que ele nem seja ele, nem eu, eu mesma, e que afinal apenas estejamos todos resolvendo pendengas síndicas de outras encarnações nesta daqui, via virtual para economizar tempo e espaço.
Os amigos virtuais têm sobre os mortais comuns a vantagem de parecerem sempre prestar muito mais atenção em nós do que os segundos. A tudo respondem, sobre tudo opinam, e parecem felizes pelas mensagens que mandamos e ansiosos pelas que se seguirão. Para quem escreve, é um prato cheio. Tudo passa pelo campo da ficção, pela invenção de nós mesmos se nos der na telha, pela fabulação à qual estamos irremediavelmente – sorte nossa – votados, pela nossa condição humana. Um dos textos de que eu mais gosto do Antonio Cândido, aquele curto “sobre a necessidade da arte”, fala dessa fabulação, e do quanto ela é elemento constitutivo indispensável ao ser humano, do quanto (leitura minha, é possível que eu esteja fabulando as palavras do mestre...) é preciso que encontremos a fabulação no dia a dia, e a aceitemos tal qual é, para nos humanizarmos no sentido mais profundo. Esses amigos virtuais, podendo ser qualquer coisa, e nós para eles idem, permitem-nos uma invenção pessoal que transcende a franja do que a minha avó chamaria de “razoável”. No limite, pode gerar esquizofrenias e desajustes sérios, mas não mais sérios do que aqueles que as nossas relações sociais falsas e hipócritas geram há já bastante tempo.
O mundo virtual, aliás, auxilia-nos na exposição diária, e mesmo amigos que o são no dia a dia e com quem nos encontramos entra semana, sai semana, conseguem refugiar-se de si mesmos nos pequenos textos que a internet guarda e envia – percebo isso pela quantidade de mensagens que recebo sobre estes textos que escrevo, muitas delas revelando lados, cantos, arestas e sensações de muitos que vivem ao meu redor e que de repente se iluminam diferente através das suas mensagens. No sigilo que a escrita pessoal garante. São outros quando escrevem, mas um outros que os torna mais eles mesmos.
Outro amigo, este pouco virtual, bastante palpável e real, embora nos vejamos mais na caixa de entrada de mensagens do que de outras formas, diz-me às vezes, sucinto, simples, direto e seco como só ele sabe ser, que “pô, ana, nisso aí vc viajou na maionese, hein?”, para indicar-me isso mesmo, a viagem do pensamento além do considerável. Aperto a tecla do “enviar” neste momento com a impressão nada vaga de que ele voltará a usar esse lugar comum do qual tanto gosta (e abusa, já lhe disse isso!) como comentário a esta crônica.
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