21/07/2009

Das sopas

Hoje de manhã levantei-me com a perspectiva de fazer duas sopas para alimentar as pessoas que convidei para jantar em casa à noite. Esses dias vêm encontrar-me invariavelmente animada e cheia de energia – cozinhar para os outros provoca-me essa comichão de prever e antecipar os encontros, de curtir cada instante dentro da cozinha que, em outros dias, daqueles cotidianos, desanima só da gente passar perto da porta. Quando há coisas especiais a fazer, a vida enfeita-se de outros tons!

São boas oportunidades, essas dos convites, também para limpar, varrer, lavar e arrumar a casa – e a família, embora às vezes lance um suspiro coletivo quando aviso que “a propósito, convidei algumas pessoas para almoçar/jantar/lanchar...”, alegra-se com essa ventania de arrumação que, de repente, me sacode. No fundo, no fundo, sei que todos gostam desse movimento, e gostam das pessoas chegando e das conversas acontecendo. Mas faz parte da encenação com a qual também nos divertimos.

Assim foi nesta manhã: as sopas fumegando no fogão de lenha, a cozinha naquela temperatura morna que chama todos pra perto, as maçãs assadas aproveitando o calor do forno. Como o fogão de casa tem serpentina por onde circula, esquentando-se, a água, os lavadores de louça de plantão têm ainda mais essa alegria: água quente pra lavar a louça, que mesmo em dias de comilança coletiva não deixa de ser deles. Ou às vezes, para bem da verdade, até deixa, porque há convidados simpáticos que em duplas assumem a tarefa, aproveitando o momento para uma conversa especial a dois.

Uma das sopas baseou-se numa engenharia necessária a quem faz listas de compras detalhadas e as esquece em casa, tendo depois de lembrar-se de cada coisa e saber que provavelmente esquecerá a metade. Desenterrei mais uma das receitas da minha bisavó (sua sopa de peixe) e descobri que, dos vários ingredientes, faltavam-me apenas quatro – porque a lista, de fato, ficara em casa. No meio da azáfama de cortar cebolas, tirar as espinhas aos peixes e cortar bem miudinhos os coentros, passa-me pela cabeça que mesmo não estando na receita, um vidrinho de leite de coco viria bem a calhar... Passa-me pela cabeça porque dentro do armário ele acenou-me entusiasmado, desejoso de mergulhar naquele caldo aromático que assomava da panela grande. Lá foi, e o resultado confirmou as suspeitas de que faria sentido. Essa imprevisibilidade das receitas, que precisam dialogar com as sensações que vão sendo despertadas pelo que se faz, é uma benção do ato de cozinhar, e vale pra refletir sobre outras coisas - se não, nem falaria disso aqui!

A escolha da panela também obedece a movimentos da alma. Quem me conhece sabe que o souvenir máximo é uma panela – o que mais trazer de Morretes, que uma panela de cozinhar barreado? O que mais das areias de Itaúnas, que uma outra de barro legitimamente capixaba? Da casa da vizinha que se mudou pra outros mundos, e decidiu antes fazer aquela venda de suas pequenas e grandes coisas que não caberão na mala, o que escolher parta manter a sua presença em casa? E dos confins de Minas, onde um senhor nos mostra no torno a sua arte de fazer panelas? Ora pois, diriam meus conterrâneos: panelas! Quando escolho uma delas, evoco esses momentos e eles enfileiram-se todos diante de mim; ao escolher, sei que escolho aquelas magias pequeninas das coisas que ficam na memória porque significam. Um prazer a mais!

Prometi um caldo verde a um dos convidados, e junto à panela da sopa de peixe, com mexilhões a boiar escarlates, vem aninhar-se uma menor (a do senhor de Minas), com as batatas já cozidas amassadas ao garfo, como recomenda minha mãe ao telefone (ela também saboreando o jantar a milhas de distância, lá onde caldo verde é prato do dia a dia). A couve responsável pelo verde do caldo virá depois, facilitada pela mais recente aquisição em terras cariocas – um legítimo cortador de couve de feira comprado ali perto da Barata Ribeiro.

Viagens não são viagens sem sua contra parte gastronômica – comer por onde se anda, sobretudo se é o que as pessoas do lugar usam para se alimentar, é engolir a cultura do lugar, como queria Oswald de Andrade fazer com o mundo da cultura alheia, antes de incorporá-lo deglutido ao nosso tupiniquim. É claro que demanda atenção e intenção, porque senão é como comer qualquer coisa em qualquer lugar. As sopas de hoje à noite levarão para dentro das pessoas a quem quero bem todas as alegrias e lembranças que esta manhã de cozinha fez assomar em minha alma. As montanhas de Minas e as praias do Espírito Santo estarão em momentos dentro de todas elas, ainda que não o saibam. As minhas intenções de leveza, de alegria, de encontros que se repitam e imprimam tatuagens coloridas nas almas de todos nós, também farão parte, em poucas horas, da corrente sanguínea que regue cada uma das células destes meus amigos.

Com este pensamento, deixo esta crônica por aqui – há ainda outras coisas que lembrei de fazer... Palitos de pão, frito no azeite bem quente, já experimentaram?! Acompanhamento fantástico para qualquer sopa, desde que quente!

Bom apetite a todos, neste dia 21 de julho!

Um comentário:

  1. Cara Ana,

    E pensar que, até a hora em que falei com ela, a Cris ainda não havia se animado para ir à sua casa provar das sopas, para não deixar a Lígia só.

    Imagino o que ela deve ter perdido. Sopa de peixe e caldo verde que, a julgar pelos desdobramentos oriundos da preparação respectiva, que ultrapassaram as fronteiras do processo gastronômico em si e chegaram a uma quase festa de Babette, muitos ingredientes invisíveis foram acrescentados ás preparações: algumas colheres "de mãe" (generosas) de carinho; várias xícaras de chá de cuidado com preciosas amizades; mls e mais mls de prazerosa convivência familiar, dentre outros.

    Devem ter sidos boas essas sopas....

    Ivan

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