20/07/2009

De associações de ideias

Numa crise de solidão noturna, agarrei-me hoje a um livro, salvação absoluta dos meus momentos mais negros. Decidi-me pelo velho e bom Vinícius, que nos ajuda a recordar o perdido, imortalizado nas chamas que não se extinguem. Do Vinícius, que não me tomou muito tempo, os olhos escorregaram-se-me para o Jorge de Sena da prateleira ao lado.

(Curioso que, na arrumação feita aos livros, quase tudo tenha mudado de lugar, mas algumas categorias tenham se mantido na mesma posição. As poesias portuguesa, brasileira, africanas de língua portuguesa e “universal” (uma manobra ideológico-espacial de inventar um universo vip para os lusófonos!) estão todas em seus devidos lugares, em prateleiras que se relacionam entre si na horizontal, bem diferente sensação da verticalidade da arrumação narrativa.)

Esse tal Jorge de Sena foi um sujeito interessante, pai de muitos (muitos mesmo) filhos, que se refugiou no Brasil fugido à ditadura salazarista, e depois disso na Califórnia, onde acabou ficando. Por aqui, fixou-se em Araraquara, onde escreveu e lecionou durante anos. Eu também vivi uns anos por lá e, nesse tempo, o Sena ocupou-me um tanto de horas, como monitora do Centro de Estudos que lhe adotou em homenagem o nome; foi lá que andei às voltas com o primeiro acervo de biblioteca que me passou pelas mãos. Várias histórias se contam do Sena. Entre elas, que, ao sair de Portugal para seu exílio quase-voluntário (qual deles não o será?), ergueu a sua taça, no jantar que lhe ofereceram, e dirigiu-se a seus colegas professores, que não se retiravam por conta própria, dizendo: “Insignes ficantes...”. Lembrei-me disso e ri-me, e logo a seguir, nessas associações de ideias rápidas que fazemos, lembrei-me do outro Jorge que me contou essa história – Cury, de sobrenome.

Professor de literatura portuguesa em Araraquara, tive o grato prazer de ser sua aluna durante o primeiro semestre do curso de Letras. Professor à moda antiga, sentava-se na sua cadeira e de lá falava durante duas, três, quatro horas. Falava, não – discorria sobre o que lhe dava na telha porque, já passados seus 70 anos de idade, lia e esquecia as ementas de curso com uma velocidade estonteante. O que era uma grande vantagem, porque salvo erro na ementa desse primeiro semestre estava escrito que estudássemos a origem da literatura portuguesa, e o Jorge era especialista absoluto em Camilo Castelo Branco, nada de origens portanto, e aposentava-se nesse semestre – portanto, teria eu ficado sem o Camilo desse senhor, situação lamentável. Aproveitei bem a oportunidade e ele percebeu – já naquela altura era difícil aluno que gostasse dessas aulas magnas semanais. Mas eu realmente gostava, até porque ele me trazia pra perto o cheiro do mar quando se encontra com o Tejo, entre o farol do Bugio e a curva da estrada que mostra de repente a linha tortuosa da costa lisboeta.

Não foi difícil que nos tornássemos amigos, e que ele fosse, depois de um tempo, a pessoa que me ajudasse a retirar obviedades do meu texto – algumas; outras, como ele diz, infelizmente fazem parte de mim mesma e dificilmente desaparecerão. Além de poético, o Jorge é também um sujeito cáustico, daqueles que é mesmo melhor ter como amigo!

A idade, longe de nos separar, garantiu-nos a possibilidade de trocas muito intensas, agarradas umas às outras de tão verdadeiras, coisa que talvez tivesse sido mais trabalhosa de acontecer dessa maneira simples e tranquila não fossem tão distantes os anos e as expectativas. Ainda agora, quando vou a Araraquara, é visita que nunca quero perder.

Quando acontecia de passar em sua casa com os dois filhos que tinha na altura, era certeza de exasperação de ambos; achavam-no parecido com o outro do livro (o Camilo de quem ele era especialista, incrível como se colam em nós as coisas das quais gostamos!) e o mais novo deles, mal se percebia virando a esquina da rua 4, quase em frente à antiga escola normal de Araraquara, começava a cantarolar - “manicure, pedicure, jorgicure... não chegamos em casa tão cedo!” Era entrar e demorar pra sair – livros, conversa, cafezinho, “fica pra jantar não vai ainda não”...

De solitária, hoje à noite, passei-me a saudosa, e decidi telefonar-lhe, um tanto estúpida por não olhar o horário. Mas com os amigos é assim mesmo: a gente lembra, não pensa, age – e acerta! Estava o Jorge justamente acabando de despedir o último dos filhos que lhe tinha vindo desejar feliz aniversário! Tivesse eu pensado, teria perdido essa chance. Só me esqueci de lhe perguntar em quantos anos ele já vai!

(Para quem se pergunta onde foi parar o Jorge de Sena, volto a ele, com dois de seus poemas que, espero, ajudem os insones a passar a noite.)

Escrito em Verona

As coisas não se vêem por metade.

Ou passas e as fitas de repente

pousando um longo olhar de eternidade

que logo vai aos fumos da memória,

ou viverás com elas lentamente,

gastando-te com elas, nelas vendo-

-te como em espelho que te sobrevive.

Mas o passar como quem visse tudo

e ali ficasse não ficando a vida

faz que as coisas se cubram de um cristal

opaco e as diluindo em corpo falso,

aquele que é quanto então mereces.


Ação de graças

Às vezes, com minha filha no chão junto de mim,

Fecho os olhos numa ação de graças...

Mas logo ela galreia,

Nem isso me consente.

E regresso um pouco triste a uma alegria imensa.

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