Vó Chica pede-me silêncio ao chegar. Leva-me pela mão ao seu próprio silêncio, enquanto segue o caminho. Um bálsamo.
Há muitas energias ao redor neste momento, penso em voz baixa, nem todas compatíveis umas com as outras. Discriminar, e perceber o que são umas e o que são outras, e quais convêm a cada um, parece-me nunca ter sido tão importante. Vó Chica olha-me com os olhos apertados, querendo perceber se falo sério ou se brinco. Digo-lhe que é sério. E ela desfaz-se em risos.
"Mas quando
é que, filha, quando é que uma coisa dessas não foi importante? Quando foi que resistir
aos acontecimentos e aceitar tudo aquilo que se mostra já não foi um portal que
aumentasse a visão vossa?
Lembra, filha, que tudo o que se tem é esta vida, este dia,
esta hora, este tempinho aqui mesmo que eu estou aqui e você também. E mesmo neste
minuto agora tudo é novidade e permanência. E da mesma forma há dois lados em
tudo: no corpo, na moeda, na noite, no dia. Quando está escuro você sabe que não
está claro, e quando está claro você sabe que não está escuro. E você precisa saber escolher. É só assim a vida, não é?"
Rio, e agora é ela quem me olha séria. Espreme delicada uma
folha de bálsamo entre seus dedos, e eu me concentro, para tentar entender o que as suas palavras simples querem me ensinar. "É preciso,
filha", continua ela, "que você entenda que quando o rio é descido você não está
subindo, e que se quiser subir vai precisar virar a direção. De outra forma, em
vez de chegar à nascente, você vai é alcançar a foz. É da decisão interna de
cada um, o rio que vai percorrer. E é dessa decisão que vai nascer a paisagem e
o ensinamento que está à espera.
E tem mais uma coisa, filha. Não se perca no lamento do
perdido, porque lamuriar o passado só cria confusão em seu pensamento, ele não
vai mais saber o que é de ontem e o que é de hoje. E você é hoje, filha, você
não é ontem. É isso que tem de discriminar. Depois da confusão, logo chegam a tristeza, o desânimo e a depressão,
que é como vocês chamam a tudo isso junto. Tudo companhia da confusão do pensamento,
que é quem semeia a escuridão, nascida da esperança e da compaixão quando são cegas. Só
lamenta o passado e o mal feito quem se arrepende; e quem lamenta a falta que
lhe faz o bem feito e tem saudade é porque não consegue se desinteressar por
aquilo que fez.
E filha, tem mais uma coisa. Não é pra se dar tanta importância a si mesmo.
Se você não fez, foi porque não pôde, porque foi incapaz, talvez fraca, talvez
teimosa, talvez incompetente mesmo. Mas veja como o dia de hoje já está grávido
de amanhã, veja como já tem as águas prontas pra despejar o novo dia nas mãos
de quem faz nascer. O que você vai fazer, filha? Correr atrás das águas que já
estão debaixo das pedras ou correr pra colher essas que estão prestes quase
quase a escorrer?
Eu vou voltar, filha, uma e outra vez pra dizer a mesma coisa
para vocês todos. De uma vez é de um jeito, de outra é de outra maneira, para
que os ouvidos de vocês escutem e contem pro resto do ser de vocês. Veja você a
importância que tem seu ouvido, que é o que faz tudo isso que eu digo caminhar
para dentro do seu coração. Se você não escutar, não vai ouvir, e se não ouvir,
não vai escutar. Porque é de dois movimentos que o entendimento do ouvido se
faz, entende? Por isso que é difícil entender de primeira. E é melhor fechar os
olhos, mesmo que dificulte a sua escritura, filha, porque com os olhos fechados
você pode abrir melhor os olhos dos ouvidos, que são os que vão lhe mostrar os
universos escondidos para dentro das estrelas."
Eu sorrio, pensando nas vezes sem conta que ela me pediu, nesses últimos tempos, para olhar as estrelas, assim que anoitece, antes de amanhecer, a meio da noite. Como se me ouvisse, logo me responde. "Você sabe porque falo pra você olhar as estrelas, filha? Para ver o tamanho do infinito e ter certeza que nunca, mas nunca mesmo, vai poder entender tudo isso, porque o que a filha tem de fazer, e todos os filhos têm de fazer igual, é perceber a sua desimportância, e esquecer-se de si mesmos, e entregar as suas almas para seu próprio espírito, que é uma coisa sem nome e sem explicação que não se interessa por nada, porque é todas as coisas ao mesmo tempo.
E assim é preciso que se respeitem os ciclos. Que se deitem e durmam para morrer um pouco todo dia e saber aos poucos o que é morrer quando for a hora. Igual o dia, igual a noite. Todos os universos estão escutando. Melhor parar de achar que as coisas estão nas mãos de vocês. Melhor que entreguem os frutos e o seu conduzir a quem guia e norteia os seus espíritos. O resto, filha, é coisa morredoura.