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11/09/2020

As coisas morredouras

Vó Chica pede-me silêncio ao chegar. Leva-me pela mão ao seu próprio silêncio, enquanto segue o caminho. Um bálsamo.

Há muitas energias ao redor neste momento, penso em voz baixa, nem todas compatíveis umas com as outras. Discriminar, e perceber o que são umas e o que são outras, e quais convêm a cada um, parece-me nunca ter sido tão importante. Vó Chica olha-me com os olhos apertados, querendo perceber se falo sério ou se brinco. Digo-lhe que é sério. E ela desfaz-se em risos. 

"Mas quando é que, filha, quando é que uma coisa dessas não foi importante? Quando foi que resistir aos acontecimentos e aceitar tudo aquilo que se mostra já não foi um portal que aumentasse a visão vossa?

Lembra, filha, que tudo o que se tem é esta vida, este dia, esta hora, este tempinho aqui mesmo que eu estou aqui e você também. E mesmo neste minuto agora tudo é novidade e permanência. E da mesma forma há dois lados em tudo: no corpo, na moeda, na noite, no dia. Quando está escuro você sabe que não está claro, e quando está claro você sabe que não está escuro. E você precisa saber escolher. É só assim a vida, não é?"

Rio, e agora é ela quem me olha séria. Espreme delicada uma folha de bálsamo entre seus dedos, e eu me concentro, para tentar entender o que as suas palavras simples querem me ensinar. "É preciso, filha", continua ela, "que você entenda que quando o rio é descido você não está subindo, e que se quiser subir vai precisar virar a direção. De outra forma, em vez de chegar à nascente, você vai é alcançar a foz. É da decisão interna de cada um, o rio que vai percorrer. E é dessa decisão que vai nascer a paisagem e o ensinamento que está à espera.

E tem mais uma coisa, filha. Não se perca no lamento do perdido, porque lamuriar o passado só cria confusão em seu pensamento, ele não vai mais saber o que é de ontem e o que é de hoje. E você é hoje, filha, você não é ontem. É isso que tem de discriminar. Depois da confusão, logo chegam a tristeza, o desânimo e a depressão, que é como vocês chamam a tudo isso junto. Tudo companhia da confusão do pensamento, que é quem semeia a escuridão, nascida da esperança e da compaixão quando são cegas. Só lamenta o passado e o mal feito quem se arrepende; e quem lamenta a falta que lhe faz o bem feito e tem saudade é porque não consegue se desinteressar por aquilo que fez.

E filha, tem mais uma coisa. Não é pra se dar tanta importância a si mesmo. Se você não fez, foi porque não pôde, porque foi incapaz, talvez fraca, talvez teimosa, talvez incompetente mesmo. Mas veja como o dia de hoje já está grávido de amanhã, veja como já tem as águas prontas pra despejar o novo dia nas mãos de quem faz nascer. O que você vai fazer, filha? Correr atrás das águas que já estão debaixo das pedras ou correr pra colher essas que estão prestes quase quase a escorrer?

Eu vou voltar, filha, uma e outra vez pra dizer a mesma coisa para vocês todos. De uma vez é de um jeito, de outra é de outra maneira, para que os ouvidos de vocês escutem e contem pro resto do ser de vocês. Veja você a importância que tem seu ouvido, que é o que faz tudo isso que eu digo caminhar para dentro do seu coração. Se você não escutar, não vai ouvir, e se não ouvir, não vai escutar. Porque é de dois movimentos que o entendimento do ouvido se faz, entende? Por isso que é difícil entender de primeira. E é melhor fechar os olhos, mesmo que dificulte a sua escritura, filha, porque com os olhos fechados você pode abrir melhor os olhos dos ouvidos, que são os que vão lhe mostrar os universos escondidos para dentro das estrelas."

Eu sorrio, pensando nas vezes sem conta que ela me pediu, nesses últimos tempos, para olhar as estrelas, assim que anoitece, antes de amanhecer, a meio da noite. Como se me ouvisse, logo me responde. "Você sabe porque falo pra você olhar as estrelas, filha? Para ver o tamanho do infinito e ter certeza que nunca, mas nunca mesmo, vai poder entender tudo isso, porque o que a filha tem de fazer, e todos os filhos têm de fazer igual, é perceber a sua desimportância, e esquecer-se de si mesmos, e entregar as suas almas para seu próprio espírito, que é uma coisa sem nome e sem explicação que não se interessa por nada, porque é todas as coisas ao mesmo tempo.

E assim é preciso que se respeitem os ciclos. Que se deitem e durmam para morrer um pouco todo dia e saber aos poucos o que é morrer quando for a hora. Igual o dia, igual a noite. Todos os universos estão escutando. Melhor parar de achar que as coisas estão nas mãos de vocês. Melhor que entreguem os frutos e o seu conduzir a quem guia e norteia os seus espíritos. O resto, filha, é coisa morredoura.

09/09/2020

Desinteresse


Quase sem pensar, ergo os olhos para ver a constelação de Escorpião. Vó Chica gosta quando olho o céu. Sei tão pouco, digo-lhe dentro de mim, e consigo aprender tão lentamente estas coisas das estrelas. Ela ri, e me aponta com seus olhos sempre úmidos a caneta e o papel. 

Demoro-me ainda, porque esse olhar cheio de água me intriga e me conforta. Por que tanta água, minha mãe?, pergunto-lhe. Ela ri-se, como sempre faz: “Preferias que tivesse olhos secos e duros, filha? Não precisa interessar pelas águas que limpam meus olhos, eu mesma prefiro assim, desse jeito, os olhos molhados para a terra do coração não secar também”.

Vó Chica tem nos falado do desinteresse. Pensamos que é bom o interesse pelas coisas, pelos outros, mas ela diz que não. Diz que o interesse é quem desenvolve em nós a posse, o ciúme, o desejo, a ânsia, a querência das coisas que não são precisas. Interesse é “estar entre”. Podemos nos sentir importantes, ou que estamos “fazendo a diferença”, quando nos interessamos por alguma coisa ou por alguém, mas não estamos em nós, “estamos entre”. Já quando nos movemos nas trilhas da ação desinteressada, aprendemos as lições da neutralidade, da imparcialidade e do afeto genuíno, que deixa cada coisa e cada pessoa ser aquilo que deve, quando deve, como deve.

Desinteresse, na voz de Vó Chica, é trilhar o nosso caminho fazendo aquilo que podemos fazer, sendo úteis, que é a bênção maior que podemos ter, abertos a qualquer tarefa.

Eu sei porque Vó Chica quer que olhe o céu. Porque os tempos de Urano estão sendo chegados, como ela diz, e nesses tempos o futuro, a coletividade, o conhecimento intuitivo, a sensação de pertencimento à Humanidade vão ser as mais preciosas qualidades.

E como esse é um tempo acelerado, Vó Chica pede calma e tranquilidade. Pede que estejamos atentos aos nossos movimentos, e que não nos angustiemos nem nos deixemos levar de imediato e sem controle por nada que possa nos suceder. Pede que estejamos conscientes de com quem dividimos o espaço que ocupamos. Que nos coliguemos com a Natureza à nossa volta, a reconheçamos e nos tornemos seus observadores. Não são necessárias técnicas ou teorias. Para a ligação que devemos cultivar não há regras nem caminhos prontos. É a ligação que nos ensinará e para ela precisamos apenas silenciar a nós mesmos e entrar em contato. Ouvir o vento, os pássaros, os barulhos das folhas e dos galhos; observarmos uma árvore, uma flor, um pequeno inseto. Um cão. Um gato. Um pássaro no afã de seu ninho. Perceber e deixar ir, sem cultivar interesse.

Vó Chica pede que desenvolvamos por tudo amor sem julgamento, sem dedução, sem a lógica do nosso pensamento usual. Não importa, ao Sol, o que pensemos dele, mas sim como nos comunicamos com ele, que luz ele desperta em nós. Não importa o que possamos dizer - diminuiríamos aquilo que recebemos, e que não cabe em nossas palavras. Até se perde. Transmutemos o que recebemos e ofereçamos onde quer que estejamos.

Vó Chica pede que nos nutramos de silêncio para podermos escutar melhor. Que controlemos a palavra, que não a desperdicemos e tenhamos cuidado com o que colocamos dentro do ouvido do outro. Ouvidos são seres desprotegidos, não têm portas que se fechem nem pálpebras que os cubram.

Vó Chica pede que cessemos as discussões conosco mesmos, e que cultivemos o silêncio interno. Será mais fácil diminuirmos o que dizemos ao outro, e assim não contribuiremos para a sua angústia e a sua ansiedade. Na maior parte das vezes, diz baixinho Vó Chica antes de se ir embora, o que cada um quer é escutar a própria voz, e ter certeza de que existe algo que possa dizer. Não é necessário. Não importa o que você já viveu, as experiências que teve – a sua valia é terem se transformado em aprendizado. A própria experiência, de um tempo gasto e passado, não serve aos desafios do outro neste tempo presente. O silêncio é a melhor oferta. Em silêncio expandimos o nosso interior e ouvimos melhor o  nosso guia interno. As vozes dentro de nós nos distraem de nós mesmos.

Vó Chica fecha os seus e os meus olhos e me converte em sono. Quando os abro, ela já se foi, e todas as velas se apagaram. Ainda assim, está claro.