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15/04/2017

Sábado de Aleluia

O sol já nasceu quando Vó Chica passeia pelo quintal. Ainda é cedo, mas ela veio à procura das conchas. Mesmo sendo sábado de Aleluia, ainda é tempo de Paixão, esse momento do ano que ela tanto aprecia, por ser solene, alegre e triste ao mesmo tempo. Por ser o tempo de pensar com o coração, pleno e entregue.

Pensei que Chica gostasse da noite, mas não. O que ela gosta é de luz verdadeira, como as luzes do fogo das velas. É por isso, explica, que ela pede que as apaguemos quando nos visita à noite. Para poder ver melhor às vezes é preciso apagar as luzes.

No fundo, penso enquanto vejo seu vulto atrás da moita de mirra, e já há algumas nuvens no céu azul, ela nunca está longe.

Chica desenha no ar, por cima das conchas, uma cruz. E outra. E outra. Três cruzes pairando acima das plantas do quintal. Sorri satisfeita, conversa com as conchas sob a sombra das cruzes, encarrega-as de alguma coisa que não alcanço compreender e vai-se.

Vó Chica tem falado das cruzes, nesta quaresma. Das nossas cruzes, cada qual com a sua. Adverte séria: engana-se quem presta demasiada atenção à sua e negligencia a do outro. Carrega-se a própria, sustenta-se a alheia. Nem uma substitui a outra, nem se deve pensar que, por cuidar das alheias, se resolvem as suas.

Obaluaiê, o orixá do trono da Evolução, da vida, da morte, veste-se de palha. Há quem diga que esconde chagas, há quem diga que esconda a sua beleza. Seja como for, não se mostra, não ostenta. A sua cruz é invisível, mas dobra-o quase até o chão.

Aproximo-me das conchas que Chica me ofereceu. Já rebrilham ao sol da primeira manhã. Parecem polvilhadas com espuma de mar. Estão todas com seu lado aberto virado para cima, como se tivessem combinado, com as mãos estendidas de Chica, ensinar-me a mesma coisa: a aceitação. Aceitar a cruz, o seu peso, a sua superfície áspera, o seu gosto amargo. As conchas abertas dizem-me dobra-te. Abre-te. Aceita-te. Permite-te ser pregada à tua cruz, para que nesse casamento de madeira e sangue possas entender com a tua carne o que a carne da tua cruz te conta e ensina.

Levo-as para dentro, e abro-as onde devem ficar. Já se misturaram todas, já se fecharam e abriram nesse transporte, mas será difícil apagar essa imagem de tantas aberturas claras, tanta entrega incondicional, tanto brilho na atitude simples de apenas estar e apenas ser nesse estar. A Paixão agora brilha em tudo, e a vida está pronta para o Domingo de Páscoa. Aleluia!

Foto: Mônica Stein








20/04/2014

Re-nascer-se


Renasço hoje cedo vendo uma entrevista antiga do Laerte. Não andava à procura de nada em particular, um clique levou a outro e o último à tal entrevista. E gostei, gostei demais, e recomendo. A entrevista é do começo de 2012, pouco depois do célebre incidente do banheiro da pizzaria.

Laerte escolhe roupas de mulher para se vestir. Dizia aqui à minha filha menor que, a rigor, é mais ou menos como acontece com ela, que gosta de usar roupas de equitação. Cada um escolhe aquilo de que gosta, e eu me emociono (ela percebe) com esse presente de manhã de Páscoa de um homem que não desiste de si mesmo e nem de ser, a cada momento, aquilo que é. Veja: não é só abdicar de ser os que os outros gostariam que você fosse, mas abdicar de ser hoje o que se foi ontem, e saber que amanhã poderá existir-se de nova ou velha forma. Essa liberdade interna, que ele resume na frase "não quero me proibir de nada", é um renascer-se diário. Bom pra ver neste domingo de Páscoa. Laerte vive em coragem. Há um tipo de dor que faz a espinha dorsal dobrar-se sobre si mesma. E a meio da dor resistir. Essa é a coragem do processo e eu ouço-me em algumas das suas palavras. E sinto que, além de processo, a vida é sobretudo encontro.

Minha filha, aqui do lado, acha "esquisito". Gostaria de ajudá-la a construir-se mais despreconceituada. Mas o mundo às vezes pode mais, e por isso fico feliz de que esteja aqui junto a mim, enquanto assisto esse homem lúcido que distingue sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual, e distingue para saber o que escolhe e por que escolhe. Não que ela preste atenção em nada disso (nem precisa), mas eu presto, e, porque eu presto, ela percebe que há espaço para todos em todos. Mesmo não ouvindo, quando olha de soslaio para a tela, percebe essa calma na fala, essa calma no gesto da mão, essa calma  no olhar - e talvez no seu íntimo registre tudo isso como "calma na alma". A calma na alma de um homem que gosta de se vestir como uma mulher, e se veste, porque se sente no direito genuíno de ser e fazer aquilo que faz sentido para si. Quem sabe essa calma na alma tatuada na sua própria alma dilua os preconceitos que o mundo queira impor a minha filha, como esta impressão de "esquisito" que não é dela, mas do mundo. Este homem vestido de mulher é apenas um homem vestido de mulher, na busca do ser si mesmo, sentado diante de uma mesa e de uma câmera, em fevereiro de 2012. Oferece-me, de bandeja à distância de um ano, a dose de coragem, beleza e integridade que eu precisava neste acordar de Páscoa.



O link para a entrevista é https://www.youtube.com/watch?v=uxD1xXvQWYM
e a tirinha encontrei-a no blog que publica as tiras diárias, o Manual do Minotauro