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25/03/2020

Quaresmeiras em flor


Vó Chica espreita por entre as árvores da mata. É um pequeno golpe de luz aqui, uma brisa repentina acolá. Brilham-lhe os olhos miúdos, e eu já sei que preciso fechar os meus para poder vê-la e ouvi-la na sua voz inconfundível. Começo a ficar dormente, quase como se com sono. Deixo-me embalar por esse verde fresco que traz à sua frente. O mesmo sorriso, as mesmas mãos gretadas macerando um galho pequeno de alfazema. Senta-se ao meu lado – eu no meu banquinho baixo, ela no tronco largo esverdeado de musgo.

“Filha, o mundo pára para que vocês possam ouvir. Para que possam decidir qual o reino onde querem entrar. Para poderem silenciar e escutar o outro lado, que equivale a dizer a própria alma.

Não vos desperdiceis em pequenas coisas que não têm qualquer sentido.

Observa a pequena formiga que se prepara e trabalha hoje, com interesse nenhum pelo dia de amanhã. Quando digo observa, quero dizer olha com atenção, com os olhos, e não com a imaginação. Usa para isso o tempo que tens à disposição.

Assim como a pequena quaresmeira em flor na porta do terreiro: vê como brilha sob o céu azul cor de manto. Como ela, todas as outras. Onde estiveres, eleva teus olhos ao céu. Se precisas de algo que permaneça no mesmo lugar, para dar-te ânimo, para dar-te confiança, detém-te nele, de dia e de noite.”

E Vó Chica faz um longo silêncio, quase uma eternidade onde durmo um sono profundo deitada numa esteira, debaixo desse céu que ela contempla.

“Acorda, filha, que estamos na Quaresma. A cada dia, a escolha. É preciso dizer a nós mesmos que é preciso parar, parar de querer o que não é preciso.

Usa o tempo, filha, porque não há, como nunca houve, nenhum a perder. A única diferença entre ontem e hoje é que agora vês o que não vias antes, e agora sabes o que não sabias anteriormente. Em algum momento, o tempo de refletir terá acabado e a tua colheita dependerá da tua semeadura.

Esquece o que plantaste ontem. Essa safra já terminou, pertence ao passado. Semear é todo dia, e a colheita é quando se está maduro. Não apresses as plantas que semeias na tua alma, nem no mundo. Deixa que cada uma cresça conforme o adubo que for recebendo. Ocupa-te, tanto melhor, de adubar as plantas que tens em teu quintal.

E não penses, filha, que a semeadura foi bem feita. Não serás tu a ter os meios de saber a medida correta da semeadura – não é quanto mais, melhor; nem quanto melhor, melhor. É a medida exata, correta, nem a mais nem a menos. Ambos os extremos farão mal a todos, e só Deus poderá dizer-te com certeza, quando o encontrares.”

Vó Chica ri com gosto, imaginando meu encontro com Deus. Penso, já bem acordada, que prefiro que ela esteja ao meu lado como agora quando isso aconteça. E rio também. E ela olha-me com afeto, e sem pena.

“Volta os olhos para dentro, filha, e lida com as sombras que se formaram nas tuas paredes. Agora pode ser o último tempo, e ainda que não seja, não haverá outro igual.

Não desperdices. Não deixes para mais tarde, nem faças pela metade.

Serena teu coração, silencia o teu pensamento e vai passo a passo, degrau a degrau, em silêncio e escutando o que o mundo grita em silêncio.”

E é em silêncio que, assim como chega, se vai. Como golpe de luz, como brisa repentina. Deixa o gosto do destino dentro das minhas narinas e meus dedos cheios de palavras brotadas.






11/03/2019

O ronco e o raio


Vó Chica, quando olha para dentro dos olhos das pessoas, vê coisas que os nossos olhos comuns não veem. Às vezes, até, mudam a forma externa para que se pareça mais o que se vê com o que se é de verdade, sobretudo quando tentamos a todo custo esconder aquilo e quem somos. Outro dia, a conversa dela dizia mais ou menos assim.


"Filha, você precisa prestar mais atenção nas coisas à sua volta, e olhar para elas da maneira correta. Senão, você acaba não vendo nada por querer ver tudo de uma vez só. É sempre um passo de cada vez - um, e depois o outro. Não ajuda nada andar a dar pulos com os dois pés ao mesmo tempo. É como um rio, que começa é riozinho, e depois é que vai engrossando, engrossando, até chegar ao fim. E no meio desse tempo, o que é que ele faz? Ele corre, ele se deita sossegado parecendo que nem se mexe, ele salta por cima das rochas de nosso pai amado Xangô, ele lambe as beiradas das matas, vai se espreguiçar nas areias das curvas longas que faz, quando já cansou de ser rio e quer ser mar.

Pois então, olhar as coisas tal qual elas são. Igual esse céu aqui por cima de nós (e Vó Chica põe a sua mão calejada de anteparo nos olhos, e eu estranho, porque é de noite, estamos debaixo de teto, mas Chica vê tudo e longe, e eu vejo junto com ela esse telhado que e repente se transformou em amplidão de sidério). Esse céu, olha lá, filha. Tem vez que ronca e vez que relampeia, não é? E você escuta o que, filha? O ronco ou o raio? Se for querer escutar o raio e ver o ronco, não vai conseguir saber de coisa nenhuma.

Para cada coisa da vida é preciso o sentido correto. Se é de ver, é com os olhos. Se é de escutar, é com os ouvidos. E tá um mais certo do que o outro? É claro que não! Cada coisa se percebe com aquilo com que pode ser percebida. E a vida fica mais fácil quando a gente se humilda assim e se curva diante de Nosso Senhor Pai Oxalá, e pede a bênção e a inspiração pra fazer as coisas do jeito que ele mesminho pensou, antes de nós estarmos aqui. Se fez o raio pra ver, pra que é que nós vamos querer escutar? E pois ainda tem pessoa que quer ver, e se tumultua tudo, e à família também, porque quer que as coisas sejam do seu jeito, e não do jeito que são.

E eu falei em humildade, filha, porque não tem coisa melhor. Quem cultiva a humildade, colhe paciência e aceitação. E quem tem paciência e aceita as coisas sabe muito bem quando que é dia de gritar e quando que é dia de calar, e não fica gastando a vida à toa batendo cabeça nas portas que só vão abrir é mais de tarde, quando o sol se põe e a vigilância do povo adormece. Aí sim, filha: aí é hora de agarrar a maçaneta da porta e abrir igual vendaval.

O que eu mais quero, filha, é que você fique bem perto das coisas divinas, porque foram elas que me ensinaram a ser quem eu sou, que é o que eu já era antes de vir pra esse mundo e sair dele. É tudo mais simples do que você às vezes pensa, e o mais é a espera, que pode ser dolorosa, se for combatida, mas pode ser descanso, se for acolhida dentro dos braços como se fosse um recém-nascido, igual esses que a gente colhe assim que escorrega da Mãe."