Vó Chica
espreita por entre as árvores da mata. É um pequeno golpe de luz aqui, uma
brisa repentina acolá. Brilham-lhe os olhos miúdos, e eu já sei que preciso
fechar os meus para poder vê-la e ouvi-la na sua voz inconfundível. Começo a
ficar dormente, quase como se com sono. Deixo-me embalar por esse verde fresco
que traz à sua frente. O mesmo sorriso, as mesmas mãos gretadas macerando um
galho pequeno de alfazema. Senta-se ao meu lado – eu no meu banquinho baixo, ela
no tronco largo esverdeado de musgo.
“Filha, o
mundo pára para que vocês possam ouvir. Para que possam decidir qual o reino
onde querem entrar. Para poderem silenciar e escutar o outro lado, que equivale
a dizer a própria alma.
Não vos
desperdiceis em pequenas coisas que não têm qualquer sentido.
Observa a
pequena formiga que se prepara e trabalha hoje, com interesse nenhum pelo dia
de amanhã. Quando digo observa, quero dizer olha com atenção, com os olhos, e
não com a imaginação. Usa para isso o tempo que tens à disposição.
Assim como a
pequena quaresmeira em flor na porta do terreiro: vê como brilha sob o céu azul
cor de manto. Como ela, todas as outras. Onde estiveres, eleva teus olhos ao
céu. Se precisas de algo que permaneça no mesmo lugar, para dar-te ânimo, para
dar-te confiança, detém-te nele, de dia e de noite.”
E Vó Chica faz
um longo silêncio, quase uma eternidade onde durmo um sono profundo deitada numa
esteira, debaixo desse céu que ela contempla.
“Acorda,
filha, que estamos na Quaresma. A cada dia, a escolha. É preciso dizer a nós
mesmos que é preciso parar, parar de querer o que não é preciso.
Usa o tempo,
filha, porque não há, como nunca houve, nenhum a perder. A única diferença
entre ontem e hoje é que agora vês o que não vias antes, e agora sabes o que
não sabias anteriormente. Em algum momento, o tempo de refletir terá acabado e a
tua colheita dependerá da tua semeadura.
Esquece o que
plantaste ontem. Essa safra já terminou, pertence ao passado. Semear é todo
dia, e a colheita é quando se está maduro. Não apresses as plantas que semeias
na tua alma, nem no mundo. Deixa que cada uma cresça conforme o adubo que for
recebendo. Ocupa-te, tanto melhor, de adubar as plantas que tens em teu
quintal.
E não penses,
filha, que a semeadura foi bem feita. Não serás tu a ter os meios de saber a
medida correta da semeadura – não é quanto mais, melhor; nem quanto melhor,
melhor. É a medida exata, correta, nem a mais nem a menos. Ambos os extremos
farão mal a todos, e só Deus poderá dizer-te com certeza, quando o encontrares.”
Vó Chica ri
com gosto, imaginando meu encontro com Deus. Penso, já bem acordada, que
prefiro que ela esteja ao meu lado como agora quando isso aconteça. E rio também.
E ela olha-me com afeto, e sem pena.
“Volta os
olhos para dentro, filha, e lida com as sombras que se formaram nas tuas
paredes. Agora pode ser o último tempo, e ainda que não seja, não haverá outro
igual.
Não
desperdices. Não deixes para mais tarde, nem faças pela metade.
Serena teu
coração, silencia o teu pensamento e vai passo a passo, degrau a degrau, em
silêncio e escutando o que o mundo grita em silêncio.”
E é em
silêncio que, assim como chega, se vai. Como golpe de luz, como brisa
repentina. Deixa o gosto do destino dentro das minhas narinas e meus dedos
cheios de palavras brotadas.