27/02/2012

Exercício


(500 palavras de um personagem que insiste em fazer-se nascer)

“Sabe o dia que se esgueira, como uma enguia viva, para dentro das nossas almas? O dia que se infiltra, que se ateia fogo a si mesmo, que se boicota a felicidade desde a hora em que sol assoma até a que a lua já está alta no céu? O dia embolorado, rançoso, entristecido ao olhar-se de frente? Pois esse é o dia de hoje. Um dia enguia, sinuoso dentro do corpo da minha alma, arrastando-se na lama em que me atolo sem ajuda, escorregando lento e destilado por entre a cor da manhã. Ninguém aparece para salvar-me, lembro de ter pensado. Ninguém levanta um braço para socorrer-me, e eu sequer consigo gritar por socorro. Lembro de ter pensado horas e horas, diante do nada, só vendo essa enguia esguia engolindo-me mais a cada hora, engordando satisfeita com o alimento que lhe forneço assim, de graça, sem galanteios e sem mesuras. Estende-se ao comprido por cima do que sobra de mim, ossos fracos e amarelados, secos quase como farinha que queimasse ao sol, e que sequer precisasse ser moída. Sinto-lhes a firmeza perdida, a solidez desperdiçada, oferecida a essa enguia que reluz sob o sol, mil tons de cinza brilhando como escamas, embora sua pele seja lisa e densa.

Alguém que me acenasse do outro lado faria que meus ossos se levantassem, mas há uma solidão nesta terra que habito, uma solidão feita de caminhos vazios de formigas, só seus traçados e algumas folhas perdidas pelo caminho. Os buracos dos formigueiros estão ocos, com seus amontoados de terra digerida formando circunferências de montanhas em torno do orifício. Releio os sinais da terra através desses caminhos, solitários e sozinhos como eu próprio.

Pergunto-me se alguém lembrará da minha presença, ou se todo este silêncio que me rodeia será uma estratégia para que abandone a mim mesmo por fim. Se todo este silêncio onde leio a palavra abandono existirá para evidenciar que devo ir, deixar-me cair em algum lugar e parar de lutar.

Meus braços cansados estão pendurados ao lado dos meus ossos, como se fossem suas sombras. A enguia já deixou seu posto de triunfo, deslizando como água para dentro da terra. Não tenho mais o conforto úmido e gelado de seu corpo sobre a minha parte mais dura, mas recuperei a minha sombra, e assim posso recuperar a minha forma de andarilho da vida, mesmo sendo feito só de sombra e ossos. Mesmo que os ossos fiquem parados, à espera da sombra lhes dê notícia da vida do lado de fora.

Mas há um fosso que se abre a toda a volta, um fosso que nem a sombra consegue atravessar, porque assim que o tenta há uma força que a empurra para baixo, em direção às ondas vorazes onde vive o reino das enguias. A sombra será engolida, e logo a seguir os ossos. Ainda que me agarre às bordas duras desse fosso à minha volta, sou todo engolido, e transformo-me naquilo que eu já era antes de ter nascido.”

2 comentários:

  1. Parece que vc está descrevendo o meu dia hoje.
    Se tá procurando um nome pro personagem pode por o meu.Ou nem sei se a minha enxaqueca me deixou endender direito. Acho que vou por anônimo para não gerar comoções.
    beijos

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  2. Cadê o botão de Like dos comentários????

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