Há algumas pessoas na vida com
quem é difícil perder a paciência. Na minha, Valdete é uma delas. Conheço o
Valdete há uns 20 anos. Nem eu nem ele nos lembramos de como começou,
mas já tem isso: duas décadas.
Valdete é pedreiro, construtor de
casas, materializador de sonhos. Depois de ter construído a nossa casa,
tornou-se nosso afilhado de casamento. Vivemos dividindo a mesma obra durante
meses; compartilhamos feijoadas, moquecas, bolos e xícaras e xícaras de café. E
viramos amigos. Ao contrário de outras histórias, fazer reforma em casa era uma alegria: Valdete vinha e era uma conversa só, um bom humor só. Seus auxiliares, sempre gente que precisava de ajuda. O Luizinho
enganou a todos meses a fio, com a sua garrafinha térmica com um café que não
dividia com ninguém e que um dia descobrimos que vinha era cheia de pinga. E
Valdete, aquela paciência, dizia: “Luizinho, cê não vê que essa maldita tá
acabando com você, meu filho?”. E Luizinho sorria com seu sorriso desdentado e
dizia: “Saber eu sei, Valdé, mas fazer o que?”. Já se foi, o Luizinho; no meio
de um porre caiu na represa e só apareceu três dias depois, já comido pelos
peixes. Os olhos do Valdete enchem-se de água quando me conta a história: “era
como um filho, sabe?”. Valdete coleciona filhos dessa forma.
Nasceu na Paraíba, o Valdete. Tem
uma natureza mansa. Tranquila. Justa. Trabalho mal feito ele resolve de um
jeito só: faz de novo. Sem perder o bom humor. A paciência às vezes escapa, mas
só se percebe nos olhos. Nessas horas, acho que o Valdete sabe que é melhor
manter a boca fechada. Eu já aprendi um tanto de coisas com ele, e ele nem
desconfia.
Quando nossa filha Gaia nasceu, Valdete
estava trabalhando em casa, fazendo um muro lá na frente. Vim avisar
que logo ia ter bebê por ali, e ele aflito, sem saber se subia se descia do
andaime, se me levava pra maternidade, se me carregava no colo... Quando ela
nasceu, e ele entrou em casa pra vê-la, Luizinho e os demais atrás dele, era a
reverência em pessoa, o visitante de um presépio acabado de descer do céu. Se
usasse chapéu, certamente o traria entre as mãos, amarrotado pela emoção e pelo
nervoso. Quando Gaia partiu, Valdete passou longas horas no velório,
desconcertado, os olhos vermelhos e inchados, e me deu um abraço que disse mais
do que as palavras diriam.
Valdete morava numa chácara, naquela
época. Perto do Natal, decidiu engordar uns porquinhos. Veio um amigo e pediu-lhe
um pernil: “pago depois, pode confiar”. Nunca mais. E Valdete, avesso à cobrança
que sugeríamos, filosofava: “Sabe o que acontece, Ana? Desse aí eu já sei o
preço, que é só de um pernil. Se não me paga, tem a vantagem de nunca mais me
procurar mesmo, e amigos desses eu quero todos é bem longe”.
Às vezes o santo
do Valdete não bate com o de quem o contratou – e sofre, porque deu sua palavra
e não pode deixar a obra, e o mal estar envenena-lha os dias. Com tudo isso e por causa de outra
obra, abandonou-me várias semanas. A obra parada, o entulho fora da caçamba, o
monte de areia se esparramando por baixo das patas dos cachorros, entrando em
casa por todas as frestas, pilhas de tijolos na expectativa, o reboco que ainda
existe caindo paredes abaixo... Faço o que posso, que é pouco, e me deixa deveras
descontente. E Valdete sumido. Ligo pra ele e ele responde: “Ô Ana, saudade docê!
E aí? Te abandonei não, viu? É que tá complicado pro meu lado.” E promete
aparecer no finzinho da semana.
Apareceu ainda agora.
Promete que vem semana que vem. E me oferece aquele sorriso de sempre, de gente
de verdade, que vive de verdade e gosta dos outros de verdade. Minha irritação desaparece como num passe de mágica: impossível
brigar com pessoas assim, que nem o Valdete, sequer discutir. Sorte é tê-las
por perto, da maneira como puder ser. Sorrio de volta e respondo: “Ô Valdete,
some não. Segunda feira tem café prontinho a hora que você chegar.”.
Ô Ana, que coisa gostosa essa amizade com o Valdete,sô! Senti até o cheirinho do café que vai ser servido na segunda... hum!Emoção gostosa na garganta por duas vezes e um sorriso tipo estica-a-bochecha-todinha veio fazer festa no meu rosto,ai que bom isso!
ResponderExcluirSe o Valdete soubesse o bem que ele NOS faz... Sabe o que? Na segunda, diz que ele acaba de ganhar mais uma amiga aqui no alto da serra. Diz tb que agradeço por cuidar bem de você e da trupe toda... e ainda por cima nos dar de presente um lindo tema pra escrever! Muito obrigada, Valdete!
Beijoca com todo amor e LUZ,
Neca Terra
Neca querida frequentadora deste espaço - o recado será dado! E aposto que a reposta será um sorriso franco, e um "ah deixa disso... vc escreveu o que?!". Beijocas!
ExcluirAi, espero que a minha relação com o meu pedreiro resulte numa amizade duradoura também!
ResponderExcluirComo a que tínhamos com o Rogério, que reformou nossa casa em Brasília.
Beijos e boa reforma. Abraços tb para o Valdete, cabra da peste.
Antô.
Também gostei deste Valdete , cabra que Deus fez e perdeu a receita sô.
ExcluirFiquei até com vontade de construir com ele.
Quando a sorte grande permitir.
E na quinta na quinta vai ter café quentinho e cheiroso?
mil beijos e beijus!
Eunice
Quinta tá tudo prometido, marcado e combinado!
ExcluirDeixo aqui também a minha simpatia pelo Valdete, que tão bem conheço sem nunca tê-lo visto. O meu Valdete é o Demerval, aprendeu a ser pedreiro com o pai. Me ensinou em silêncio o valor desta sofisticada profissão... um dia, em um ímpeto de admiração e inocência, lhe disse que gostaria de ser seu ajudante. Ele ousou um sorriso, pensando que eu estivesse brincando. Preferi acreditar nele mas ainda me pego pensando sobre a beleza desta profissão... se um dia uma crise existencial me assolar, vou ser pedreiro.
ResponderExcluirE então eu serei sua ajudante!
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