18/01/2015

A Indonésia em nós


Leio estarrecida os comentários às notícias sobre o fuzilamento de Marco Archer ontem, na Indonésia, tão perto do atentado ao jornal do país que nos legou as palavras egalité, fraternité e liberté. Há uma quarta palavra que parece ter desaparecido do íntimo das pessoas, e que nasceu no mesmo lugar: solidarité.



Solidariedade é um algo inteiro, completo e interdependente. Ser solidário é reconhecer-se no outro, porque o outro é um ser humano igualzinho a você, cada um com as suas alegrias, as suas falhas, as suas fraquezas, as suas conquistas, as suas inconsistências. É saber que aquilo que o outro é, é também o que você mesmo é. Inteira, completa e interdependentemente. Não naquilo que me agrada e que eu mesmo faria, mas até mesmo naquilo que não compreendo. Ser solidário não é concordar, mas é no mínimo ter certeza, absoluta, de que o outro (todos os outros) tem tanto direito à vida quanto eu. Ponto.


Solidariedade demanda compaixão, que por sua vez demanda empatia, que por sua vez demanda pathos, que é basicamente o estado vivo de emoção... Tudo artigo escasso nestes dias em que nos vangloriamos de sermos racionais e objetivos, deixando de perceber o quanto somos manipulados da forma mais vil e estúpida. E não pense apenas nos grandes temas, porque o grande está no pequeno assim como o pequeno está no grande, já o Oriente e a física quântica nos ensinaram.


Não sei se a palavra solidariedade consta da Declaração dos Direitos Humanos, esse documento de uma civilização inteira desesperada por escapar à barbárie exposta com a abertura dos portões de Auschwitz. Se não consta, deveria - porque me parece ser uma boa parte do iceberg invisível das nossas relações. Muito embora a Declaração em si pareça ter sido soterrada pela entropia dominante. Entre em qualquer site de notícias, procure por aquelas que falam do fuzilamento, e mantenha a cabeça no lugar ao ler os comentários.

A bem da verdade, não chega a espantar, nesse nosso Mundo Novo de selfies. O mundo não se reduz mais àquilo que os meus olhos veem (o que já era um senhor problema): o mundo agora reduz-se a mim mesmo sob meu próprio olhar. Nada de "penso, logo existo". Agora é "Me vejo, logo existo". E nem preciso de ninguém, eu mesmo aperto o botão da minha foto, se quiser distância uso até um "pau de selfie" e me legitimo feliz da vida olhando para a imagem que eu mesmo crio e espalho. Os outros... que outros?!

Agora, me espanta. Espanta que a nossa capacidade de irreflexão e de ação automatizada cresça como cresce. Que se torne tão fácil acreditar nas próprias mentiras, e que nada em nós se abale ao repassá-las aos outros (ops... que outros?!). Espanta que a tragédia alheia, que jamais diminuiu a tragédia de ninguém, não se perceba como própria. Que o coração não se aperte ao pensar nesse homem fuzilado. Que nos tenhamos esquecido das atrocidades que essa mesma Indonésia perpetrou contra Timor Leste há tão, mas tão pouco tempo - e justifiquemos a sua ação abjeta apoiados em que "cada país tem as suas leis". Se cada país tem as suas leis, e se estamos à sua mercê, não há o porquê de Je suis charlie, não há o porquê de assinarmos abaixo-assinados com um click da nossa confortável poltrona, para que a violência de hoje na Nigéria tenha um fim. Batendo palmas para a pena de morte na Indonésia, batemos palmas para o fim civilizatório. Em vez de sentirmos, pensarmos e agirmos após refletir sobre ambos movimentos, mandamos um recado claro: sinta, pense e aja. Os outros?! Que outros?!

23/12/2014

Madrugada

Acordo com um vulcão dentro do peito. Ouço as erupções no escuro da madrugada, sinto o calor da lava a subir pelas laterais da cama. E ouço a voz de minha mãe, confundida com outras vozes que se fazem ouvir.

Ouço-a contar-me, como se estivesse ao meu lado e não no jardim da casa onde vive hoje em Fátima, dos 13 meses de atividade vulcânica que acompanhou da escadaria da casa de sua avó, casa açoriana construída em cima de uma rocha tão grande que em seu interior tinha uma gruta. Terras de basalto, casas de basalto, mar azul petróleo em volta: os Açores são meu pensamento em voo quando o mundo concreto craquela. Lá está a janela da casa dessa minha bisavó, transbordada sobre o mar. Lá estão os ensaios da banda da igreja. Lá estão as águas-vivas a dançar na beira da praia. Lá estão as terras vulcânicas, essa paisagem lunar que já criança me depositava silêncio na alma.

Minha mãe conta da mescla estranha de terror e fascínio que sentia, da rudimentar máquina fotográfica empenhada em registrar a evolução diária desse vulcão. Conta da espessa nuvem de cinzas, incessante, a soterrar casas, a tornar o ar irrespirável, pessoas evacuadas, um farol quase desaparecido, metros de terra escura ganhos ao mar. "Essas terras", dizia, "tornar-se-ão nas mais férteis da ilha. Talvez eu não chegue a ver esse dia, mas talvez teus filhos sim."

Talvez nem eles. A natureza é mais indomável do que pretende o nosso pensamento; segue o seu próprio e desconhecido tempo, e não há nada a fazer a não ser munir-se das armas serenas da espera.

É o gosto dessas armas que amanhece na minha boca. Mesmo serenas, são amargas. Penso nos Capelinhos como se a vida fossem, e enterro as mãos nessas cinzas ainda quentes. São estranhamente líquidas, sobem até à garganta e dizem-me que não as deixe transbordar: "Agarra-te a essa inconsistência de neblina que recobre a madrugada, e espera que de nós nasça o mais fértil dos caminhos. É da tua espera que nascem as coisas. É da tua espera que o futuro se alimenta. É da tua espera que as águas que te marejam a alma refluem e seguem seu caminho ao longo da linha da costa, até mergulharem no mar e te acenarem adeus antes da onda final. Deixa que a onda que as leva passe sobre ti: deixa a onda passar e acorda outra vez, até não ser mais necessário."

Imagem: vulcão dos Capelinhos, ilha do Faial, Açores, 1958.





01/12/2014

Temporada

Uma das coisas mais bacanas do inferno astral é a oportunidade absurdamente expandida de encerrar ciclos, preparar-se para o novo, resolver pendências, instigar mudanças, criar movimento. Eu gosto particularmente do meu, todo ano chego à mesma conclusão.

A vida não piora, no (meu) inferno astral. Muito pelo contrário. Com a sorte de ter nascido em dezembro, coincide a época de colocar a vida em perspectiva e olhar para os meses adiante com um olho nos meses que se passaram.

Semana passada, segredavam-me aquilo que todos sabemos de que "a César o que é de César". No sentido de que, se a César se dá mais do que César consegue, ou merece, levar e manter dentro de si, algo de menos se dá a Deus, que é o outro lado desse binômio bíblico. E como Deus está em tudo, e tudo está em Deus, e namastê-o-deus-em-mim-saúda-o-deus-em-ti, resulta que, se demais se dá a César, de menos se dará a esse pedaço nosso que é o todo e que é a nossa origem, vocação e verdadeira essência divina. Inferno astral é um momento privilegiado para se perceber se o que damos a César assiste realmente a César. E corrigir a rota, e dar a quem é de direito o que lhe pertence.

No estado de sensibilidade alterada, de uma capacidade perceptiva interna mais alimentada, como são essas semanas de inferno astral, as coisas que nos afetam, ou nos desafetam, tornam-se mais nítidas. Se os deixarmos, os insights farão visitas frequentes. Teremos presentes dos céus em forma de reencontros inesperados.

Nesta madrugada, escrevo porque está particularmente difícil adormecer. Tenho a impressão de ter o corpo cheio de estrelas, tremeluzindo através de cada poro. Fico encantada, e não durmo. Na escuridão do quarto, brilho. E me pergunto se este brilho em mim estará brilhando em outros também.

Sei que sim, e por isso também me ponho a escrever. Porque talvez aqueles que originaram esse brilho, um pouco incautos porque não têm a sorte de estar em seu inferno astral, estejam desconcertados, e não saibam de onde vem esse sentimento que de tão plácido não permite o sono.

Pois bem: foram os abraços. Aqueles frequentes, aqueles deliciantes, aqueles reconhecedores, e os desconhecedores também, mas sobretudo, e muito, aqueles que quase ficam pelo caminho, com cara de tropeço desagradável, e de repente se retomam. De repente abrem-se os braços e os outros braços estão ali abertos também, num acolhimento mútuo que enche os olhos de lágrimas. E o que se sente faz-se carne, e logo a seguir estrela, e cá estou eu que não consigo dormir por causa de um abraço.

Porque, descobri às vésperas de entrar neste paradisíaco inferno astral, sou como estrela em busca de constelação, e em dia em que os constelamentos brotam como água de mina, eu só posso mesmo é querer ficar acordada e ver em mim, nítido como um girassol, o que fazem os outros quando se abrem, inteiros, a um abraço de corpo, alma e espírito.



Foto: Ana, de árvore ibirapuérica

22/11/2014

O que importa


Um dos desafios da escrita de ficção reside em encontrar o como revelar uma personagem aos olhos do leitor. Mais do que o que pensa e o que sente, o que dá força a uma personagem é o que ela faz, e como o faz. Detalhes da sua construção humana emergem dessas coisas ínfimas que pertencem à vida do dia a dia e que, de tão pequenas, parecem irrelevantes. Não são. São importantes e poderosas. E não apenas o que o narrador, ou o autor, revela desses detalhes, mas o recorte que faz de um conhecimento amplo daquilo que a personagem é, e que nasceu de um relacionamento profundo, duradouro e verdadeiro.

Talvez lhe pareça incomum, leitor, esse processo de conviver intimamente com uma personagem que, de antemão, é ficcional. Mas eu lhe garanto que, através do observar dessa relação, muito se aprende sobre a vida em si, porque a ficção e a vida coexistem no tempo e no espaço, e se olharmos bem de perto confundem-se ambas a todo instante.

Começa-se com o olhar capturado. Em algum momento a personagem nasce, assim como alguém aparece na vida. Não se sabe de onde, às vezes nem o porquê, mas o fato é que algo em nós fixa a sua atenção nessa existência, e a examina, procura-a, tentando percebê-la, absorvê-la internamente a partir do que se mostra. Melhor que não haja maiores influências do interior de quem observa, para que se observe o que de fato é, e não o produto do nosso desejo, mas o fato de deter o olhar aqui, e não ali, mostra uma preferência que pode ser tão orientada pela simpatia quanto pela antipatia. No caso da ficção, o que se observa é uma construção interna, sobre a qual se imagina poder ter algum tipo de "controle". Ledo engano. Tem-se o mesmo controle que se tem sobre as pessoas que andam conosco pela terra. Ou seja, nenhum.

Mas o fato é que se observa. E dessa observação surgem perguntas, porque com a observação do outro nasce a vontade irrefreável de aproximar-se para conhecê-lo mais. E porque a pergunta é o ponto de partida de todo diálogo, pergunta-se porque se quer saber - quem és tu, que apareceste na minha vida? O que te move? O que te emociona? O que procuras na vida? Quando esse querer saber é genuíno, as perguntas são profundas e urgentes. Quando não, o que surge desse desvio pouca valia terá para conhecer o que, de fato, nem se vê.

O mesmo acontece com a personagem que temos entre mãos. Sabemos-lhe talvez o nome, o lugar em que vive, as circunstâncias básicas que lhe marcam a vida. Conseguimos circunscrevê-la num certo momento histórico, numa certa corrente de ideias que sustentarão esta ou aquela ação, do ponto de vista do seu ideário. Mas aos poucos surgirão perguntas mais atentas ao passar dos seus dias. Desenvolveremos uma atenção àquilo que a torna humana como nós, e que encontrará eco em quem dela se aproxime. Assim, constrói-se uma teia de conhecimento ligada às pequenas coisas. O tempo torna-se mais lento. É preciso que se amplie em minutos, horas, dias. Para que haja espaço de ver, e porque é nas coisas "inúteis" que os grandes conflitos, as grandes demandas, os grandes traumas, os maiores desejos, as grandes procuras, se emancipam.

Na meia luz de fim de tarde, sentada no sofá da sua sala, ou recostada no travesseiro da cama, a personagem despe-se das suas artimanhas sociais, dos seus construtos mentais, das suas couraças, da suas fachadas. É ela mesma. Mesquinha, incapaz, sublime e vulnerável. Humana como nós.

Não precisarão esses detalhes aparecer no texto final. Poderão ser suprimidos, ao longo das várias versões que se escreverão, mas existirão, serão reais, e sem querer o escritor lançará mão disso que sabe, e saberá que é verdade o que escreve, e saberemos nós que o lemos. Revelam-se nas entrelinhas, esses detalhes, delineados por um narrador que sabe muito mais do que conta. Esse "saber mais" é poderoso aliado na construção de qualquer personagem. E, neste "saber mais", os mais simples e cotidianos pormenores são os que dão consistência a uma pessoa. É aqui, hoje, que para mim mais a ficção se veste de realidade.

Não sou eu quem diz isto, mas a narradora de "The last run away", último romance de Tracy Chevalier, que acabo de ler sentada numa cadeira de hospital enquanto me sinto cosendo um quilt em pleno Ohio. Gosto de acompanhar o percurso desta escritora, que chamou a minha atenção desde "Moça com brinco de pérola". A excelente pesquisa de cada um dos seus livros; a maneira incisiva como entretece realidade e ficção (aqui, a vida quaker e a luta abolicionista americanas); os detalhes que pressinto construídos e que são o alicerce de uma trama real; a dosagem eficaz dos níveis de tensão - fazem de cada livro uma aula.

Às vezes, a aula resume-se a uma frase. Como essa de que "são os pormenores cotidianos que dão consistência a uma pessoa". A maneira particular como se varre um quarto, o quadro que se escolheu pendurar na sala, a maneira como se afasta a cadeira para sentar-se à mesa do almoço, a forma como se escolhem produtos numa gôndola de mercado, o quanto se aprecia as folhas recém-varridas no quintal, o olhar que se dirige ao espelho numa noite especial. Sem pormenores cotidianos, as personagens, como as pessoas, enfraquecem. Sobretudo quando se pressente a fuga deliberada desses detalhes, justamente por se saberem reveladores.

O fascínio dessas personagens empobrecidas não dura muito, porque não se ancora em realidades palpáveis, e nem mesmo o mistério que as envolve, justamente por essa falta de relevo, as faz subsistir. O que provocam não dura, e aos poucos se esvairá da memória. Em algum momento, com tristeza e decepção, o leitor sente o incômodo daquele que não se entrega, e talvez cogite em deixar esse livro na mesinha de cabeceira e retirar outro da estante.

Para que nos arrebate, e nos conduza ao final da história com entusiasmo e consistência, a personagem precisa permitir acesso ao seu universo privado, um passo dentro dos seus recônditos secretos. Para que nos sintamos especiais e merecedores da sua confiança, afetados pelo seu passado, pelas suas dores, suas conquistas, seus planos. Precisa enriquecer-nos a vivência mútua com cheiros, cores, sabores, texturas do mundo em que vive.

Limitar o que dela transparece a um quadrante apenas, retira força e, sobretudo, retira motivo para a sua existência. Se (e quando) tudo foi dito, e o leitor tem a repentina sensação de que não há mais nada a se revelar, é urgente rever o texto, restaurar o prumo, perceber as fraquezas e caminhar para resolvê-las. E, sobretudo, ter a humildade necessária para reescrever o que precisa ser reescrito.


Imagem: Maíra Ventura

17/11/2014

Não é, e parece


1. Tome-se a palavra contente, aquela que Camões usa no canto V d'Os Lusíadas para descrever a cor do barrete que os marinheiros do Gama usavam: encarnado, cor contente. A cor de quem tem os pés sobre a terra.

Contente deriva de continere, via seu particípio passado. Resulta da junção de con + tenere, que basicamente poderíamos traduzir por segurar (ou agarrar) junto. "Estar contente" poderia então ser, pensa você desse seu lado da tela, segurar junto a si aquelas coisas que lhe fazem bem. Ou pessoas a quem você quer bem.

Sim, e não só. Continere carrega um sentido de restrição e de contenção. Agarrar (ou segurar) algo junto a si restringe o espaço de ambos: não poderás tu andar sem aquilo que decidiste conter, nem poderá o conteúdo andar mais sem ti. Ao mesmo tempo, como aquilo que tu seguras mantém-se junto a ti, é preciso que suspendas a respiração, fonte primária do desejo, e aguardes que continente e conteúdo estejam alinhados para poderes avançar/retroceder/parar. Ser contente é ter junto a si as pessoas e as coisas a quem se quer, e bem, e apropriar-se de suas restrições e contenções, percebendo a secreta felicidade que vive dentro delas.

2. Pense agora na tríade "feito, perfeito, defeito". Obviamente tudo tem a ver com as coisas que se fazem. O "feito" presente nos três é o mesmo facere que nos aparece também em satisfeito: só quem faz, na medida certa (satis), pode estar satisfeito.

Per e de são dois prefixos que, como todos os demais, alteram o que vem depois. A vida está cheia de fatos/feitos que se agregam ao que já estava composto, parecendo terminado. De repente, eis que surge algo que se soma, que se agarra ao começo das coisas e as transforma até o seu âmago. São os prefixos, subvertendo a ordem estabelecida. Está tudo lá, mas não como antes: per junta-se a feito e temos agora algo que se faz, sim, mas de um modo completo, sem faltar nada. São essas as coisas perfeitas: as que se fazem até que nada falte, um fazer mais que si mesmo.

Enquanto isso, do outro lado da palavra, temos o prefixo de-. Aquilo que é "feito fora" - feito em queda, em falha, um desertar. Um defeito é um fazer desertado. As coisas defeituosas são as coisas abandonadas. Aquelas que se deixaram pelo caminho, feitas pela metade, feridas abertas na sua incompletude. Um defeito é um deserto.

3. Uma das vantagens do latim, como língua morta que é, é a sua estagnação. O latim não evolui. Não se modifica. O significado de suas frases e palavras não se altera, porque não há mais gente de sangue corrente que faça dele a expressão da sua alma. Por isso, podemos confiar que aquilo que diz hoje é o que dirá sempre; não há interpretações que variem no tempo. A outra vantagem é o poder que nos oferece de reconhecermos em nós essa presença arquetípica, sublime e forte da herança de outros - entrar nesse túmulo abandonado e examinar-lhe as ossadas, as fortes mandíbulas, o crânio redondo, as tíbias e os fêmures alongados e saber-se parte.

Desse cheiro de nenúfar que se desprende das coisas mortas reverberam palavras antigas, que mais ninguém pronuncia. Verba non mutant substantiam rerum, dizem. As palavras não mudam a substância das coisas. E mesmo o que por vezes não parece, é.

Imagem: Cemiterio dos Prazeres, em Lisboa, por Suzana Siqueira.

07/11/2014

Interesse

Esse homem ao lado acompanhou-me a semana toda. Heráclito de Éfeso. Alimento-me da sua proposição do mundo ser movimento e mudança constantes e fundamentar-se numa estrutura de contrários. Para ele, a origem de todas as coisas é a contradição, e o conflito é ajuste dessas forças contrapostas.

Há uma lei, entretanto, que rege esse movimento. Heráclito chama-a de Logos. Logos não só rege o devir do mundo, como "indica, dá signos", ainda que o homem "não saiba escutar nem falar". As aspas são palavras do próprio Heráclito. Ou seja: Logos dá-nos indícios do mundo tal qual se manifestará no futuro; Logos diz-nos, em forma de signos, o ser da mudança em nós e no mundo. Mas é preciso saber escutar e falar, o que significa saber usar a Palavra e usá-la.

Aprender a ler os signos de Logos é uma arte. Heráclito diz-nos, em outro fragmento, que é indispensável abrir e utilizar os sentidos: o mundo entra-nos pelos olhos, pelos ouvidos, pela pele, esse tecido extenso de composição tão sutil. É preciso aprender a ler os signos que nossos sentidos captam, porque só eles, em estado bruto, não bastam. É preciso lapidar.

Lapidar significa, aqui, fazê-los acompanhar do sentido da inteligência, e essa apóia-se numa atitude indagadora. É preciso pensar, e é preciso fazer(-se) perguntas. Se não, seremos seres encastelados na matéria imprecisa dos sentidos, onde o real é invisível. A pergunta, costumo eu dizer nos cursos de escrita, é o movimento propulsor do diálogo. Se a palavra afirmativa, enunciativa, dá nome ao mundo, e é objetiva e verdadeira, embora distante e fria, a pergunta é o primeiro movimento de Um em aproximação ao Outro. Pergunto, porque me interesso, e me interesso porque a vida parte do interesse.

Inter-esse é aquilo que "está entre". Para haver "entre" é preciso que haja dois e há de haver aquilo que os conecte, uma importância que um reconheça no outro: é entre dois ou mais que Cristo se manifesta. É entre dois ou mais que o céu se constela.

Interesse cultiva-se, e seu cultivo parte da intenção de aprender a ler os signos de Logos. Porque, a rigor, podemos passar várias existências surdos e mudos. Logos continuará e as águas dos rios continuarão passando por baixo de todas as pontes. É preciso que algo em nós se mova na direção do outro, esse interesse verdadeiro na verdade que ele carrega em si como ser divino que é, e esse interesse manifesta-se na importância que lhe conferimos, na ocupação que lhe dedicamos, para que a conexão que se anuncia seja real e verdadeira.

Mas o Outro desaparece debaixo de nosso olhar superficial e apressado. Somos indiferentes ao sofrer alheio, às percepções dos sentidos do Outro, desinteressamo-nos daquilo que vê e diz, porque o nosso Eu tem pressa, e tem suas próprias obrigações, compromissos, responsabilidades, interditos, exigências, territórios... e não descansa de si, e nem se detém, porque o mundo anda rápido e tudo é veloz e são tantas tarefas e não temos tempo não temos tempo não temos - e o que não temos afinal é a chance de perceber o Outro, partilhar do seu caminho e multiplicar o nosso. Somos só superfície, um mundo raso de pele sem tato pro Outro. Esse olhar de superfície, indiferente e desinteressado, é um rolo compressor em marcha lenta por cima da alma.

Eu me pergunto, e pergunto a Heráclito, qual será a força de contraposição. Qual será a força, de igual magnitude e poder, que se oporá a esse desmantelamento da humanidade em nós. E Heráclito responde com a sua frase mais famosa, aquela em que Platão se inspira para, na sua própria e particular leitura, dizer que "um homem não se banha duas vezes no mesmo rio".

"Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos" são as palavras proferidas por Heráclito. Embora uma parte do rio flua e mude (a água), há uma outra (o caudal, o leito), que se mantém relativamente permanente. 

É esse caudal, que guia o movimento da água, o Logos que tudo rege. Ao entrarmos num rio, entramos nele e não entramos, porque ele sempre muda nas águas que passam, apesar de ser sempre o mesmo. E nós mesmos, sob a regência de Logos, somos permanentes e mutáveis a cada instante. Quanto mais conseguirmos compreender os signos que Logos indica, mais conseguiremos compreender onde se manifesta a lei regente, e onde a constante mutação modifica. É nessa condição que precisamos parar, observar, pensar, indagar e mudar. Sem esse movimento, mudaremos porque forças externas nos impelem, e não por forças de nosso próprio caminhar evolutivo. 

Sem menosprezar o olhar do Outro, e mantendo o pensar do Outro em mim, pavimento o meu caminho. Nos embates entre, no interesse que se cultiva, no conflito que se estabelece e do qual não se foge, nasce uma nova possibilidade. Talvez possa ser a força de contraposição à diluição do vir a ser humano, essa força que se manifesta às vezes tão próxima, em tantas almas que se angustiam tanto que procuram a morte como refúgio. Talvez o que nelas tão cruamente chore, e chore em nós quando a parede do desinteresse e da indiferença nos atinge, seja o choro da humanidade que sofre, e que vive em cada um de nós. Cada movimento que Eu faço na direção do Outro aglutina-se em torno dos movimentos que o Outro faz, e soma e multiplica, e é dessa aritmética que nasce a força necessária de contraposição. E sempre, sempre vigiar a si mesmo e amar o outro.

04/11/2014

Panta rei


Tudo se move, exceto o próprio movimento. 
Heráclito

Decido, por estes dias, retirar-me da esfera facebookiana, desse campo impreciso de amizades também imprecisas, recortadas em pequenos quadros que não se constituem de fato e pele. Um mundo volátil, inconstante, traiçoeiro e sem memória. Deseja-se proximidade, obtém-se um simulacro.

E a minha alma anda cansada de simulacros. Por isso, restrinjo-lhe por ora a entrada nos domínios em que nada pode a não ser encolher-se aflita. Neste lugar sem existência, neste mundo virtual feito de nadas, vive uma força que aliena e manipula. Vejo seus efeitos. Vejo os que abdicam da capacidade de pensar formas livres e suas. Vejo outros que enveredam pela pré-concepção das coisas e assim as julgam. Vejo os que passam voando inconsistentes pelo que diz o outro. Vejo aqueles que clicam em botões sem pensarem no que o seu clique pode provocar no outro. Pensa-se pouco no outro, neste facebook de meu deus, talvez porque o outro seja uma entidade anônima e pulverizada entre dezenas de acessos e visualizações. E porque mais importante é expor diante do mundo, com palavras e imagens roubadas e carregadas, aquilo que se pensa que se pensa. Mesmo que nada se pense e só se aja por impulsão e estímulo externos. Aquilo que a máquina me sugere. Perdem-se capacidades humanas, na lida diária dessa rede sem peixes. Haverá algo de verdade essencial, que permeie as horas e subsista à passagem de um dia ao outro, neste mundo rápido dos bytes?

Séculos atrás, Íxion cometeu o equívoco terrível de tomar o simulacro por verdade. Rei dos Lápitas que habitaram a Tessália, Íxion foi o primeiro mortal a matar alguém da própria família, crime que o tornou impuro, tão grave que não houve quem quisesse purificá-lo. Ninguém podia tocá-lo, nem comer com ele nem sentar-se à mesma mesa e beber em sua companhia uma taça de vinho. Íxion enlouqueceu.

Zeus, num dia de humor generoso, olhando-o lá de cima de seu trono, apiedou-se, e convidou-o ao banquete dos deuses, evento que o redimiria. Íxion, entre uma taça de vinho e outra, encantou-se por Hera, esposa de Zeus, e logo a assediou. Zeus, ainda no mesmo humor generoso e farto, decidiu ensinar-lhe algo: criou uma cópia fiel de Hera, um simulacro de sua esposa feito de nuvem, e para que não houvessem dúvidas deu-lhe o nome de Nefele. Nefele, a nuvem. Íxion, que sequer percebeu diferença, possuiu e engravidou Nefele, e dela nasceram os centauros, à exceção de Quíron e Folo, que têm origem diversa e diversos são dos centauros comuns. Íxion, de volta à terra, gabou-se da conquista e relação com Hera, o que pôs fim ao bom humor de Zeus, que o amarrou a uma roda em chamas e o jogou no rio Hades, num castigo que durará toda a eternidade.

Os frutos de Íxion e Nefele assolam a terra, seres que não sabem se animais são, se humanos. Tendem ora a um lado, ora a outro, prisioneiros do simulacro que lhes deu origem. Esses frutos cavalgam sobre as nossas vidas. Nublam-nos o discernimento, o reconhecimento da nossa verdade mais interna. Conduzem-nos por caminhos confusos, onde a sombra, o nevoeiro, a noite escura se instalam com facilidade.

Quem nos lega da longínqua Grécia a lenda de Íxion é Píndaro, no século V a.C. Foi Píndaro quem disse "Homem, torna-te no que és" e foi Píndaro quem inventou a bússola. É na direção desse norte que a bússola de Píndaro indica que a minha alma se dirige e o meu espírito se move. Na direção do reconhecimento da essência e da recusa de todo simulacro que se identifique. Quero a vida feita de matéria, lugar onde o espírito mais visível se torna. Quero a vida feita de palpabilidade, de encontros plenos e sob um sol que os ilumine, nutra e faça brilhar. Que sejam recíprocos, e nos aliviem das trevas que se abatem, sem dó nem sossego, sobre cada um de nossos dias.


13/10/2014

Para escrever, escrever


É comum pensarmos que quem muito lê, bem escreve. Grande ilusão: escreve bem quem muito escreve. Escreverá melhor quem dominar um repertório vocabular amplo (adquirido também mas não só através da leitura), e escreverá melhor quem tiver acesso a um cada vez maior número de formas de se usar a língua escrita. Escreverá melhor quem se dedicar a observar a maneira como a linguagem escrita está presente em nosso dia, caminhando na direção de um olhar crítico e avisado.

Mas para escrever bem o que é preciso, mesmo, é escrever. Muito. Com técnica, disciplina, dedicação e tempo. Eu sei, quase desanima. Mas não é tão grande o drama quanto parece.

Há dois momentos fundamentais no processo da escrita. Valem para tudo, do poema que se dedica à namorada à tese de doutoramento em física quântica. Podem estudar-se todas as técnicas e demais gavetas que guardam e fecham a produção textual. Sem o momento do desdobrar criativo e sem o momento da reflexão atenta sobre o escrito, muito pouco se faz.

Temos em comum, todos nós seres alfabetizados, um processo de aquisição de código calcado sobretudo nos interditos. No que não se pode fazer. Não se pode escrever errado, não se pode escrever sem usar maiúscula no começo de frase, não se pode escrever sem sentido, não se pode escrever com s quando é com z (e vice-versa), não se pode usar ponto quando é vírgula, não se pode escrever mentiras, nem bobagens, nem palavrões, nem coisas sem princípio, meio e fim. Um nunca acabar de nãos.

Escrever é processo. De encontro do si mesmo. Da própria e irrepetível voz. Podemos (e devemos) escrever como escrevia Camões, ou Drummond, ou Clarice... e nessa procura do como um outro Eu se faz palavra, tatearmos por entre essa selva de letras, em busca da nossa própria voz. Infelizmente, não se dá à escrita o tempo de que ela precisa. Para encontrarmos essa voz própria e única é preciso lapidação, observação, compartilhamento. E é preciso permitir que a palavra viva em estado de liberdade, deixando-a que se escreva errado, que não tenha sentido, que não corra atrás da letra certa, que diga mentiras e bobagens e comece do meio para chegar ao princípio. A palavra que não se diverte não se torna canção.

Antes de mais nada, são precisos espaço e tempo para poder plasmar no papel as palavras tal qual saídas de nossas mãos. Sem censor interno que fique à procura do erro. Sem desvio do caudal criativo porque é preciso saber se aqui precisa de dois pontos porque é trecho enumerativo. Isso são assuntos para depois. Nesse momento do criativo, são precisas asas. Que voem alto, sem limites no céu. Que experimentem no silêncio e no ruído, dentro e fora de salas, debaixo de árvores e em pleno sol, com companhias que escrevam a seu lado e em solitário isolamento. No meu vocabulário, isto ainda não é escrever. Isto não tem nome. Isto é penetrar no reino das palavras - onde as palavras vivem, como os poemas, em estado de dicionário, segreda Drummond. É construir a capacidade de ouvi-las dentro de si, na direção que queiram. Aprender a ouvir palavras é uma arte que precisa praticar-se quando se quer escrever.

Como em toda arte, é preciso matéria. Preciso de argila para uma escultura, de tintas para uma pintura, de sons para uma sinfonia. Para escrever, preciso de palavras. E não de quaisquer palavras: daquelas que vivem em silêncio e que, de repente, porque me atento, as ouço e escrevo. Uma folha cheia de palavras: agora sim, com matéria concreta nas mãos, posso escrever. Agora, com esse papel cheio das palavras que busquei (ou me buscaram?), posso olhá-las. Pensá-las. Refleti-las. Corrigi-las. Dar-lhes pontos e vírgulas e parágrafos, para que respirem. Experimentá-las assim, nessa ordem, depois diferente. E depois daquele outro jeito. E fazer escolhas, sem pensar ainda por que, só atenção ao que o som diz. Palavra escrita é som preso em linhas, que precisa da nossa voz para se fazer verdade.

A reflexão atenta sobre a escrita é feita de escolhas. Ao lermos com atenção um trecho de Saramago, ficamos cara a cara com as suas escolhas. Gostamos, ou não - tanto faz. O importante é perceber as opções tomadas, deixá-las ressoar dentro de nós. Aprendemos pelas suas mãos, no uso que faz das palavras e dos espaços silenciosos entre elas. Da mesma forma, encaramos o texto próprio. Aquela junção de palavras que ouvimos e a que demos forma. Agora lapidamos - na maioria das vezes, retiramos mais de metade de todas elas, como um Michelangelo que encontrasse finalmente seu Davi dentro do pedaço enorme de mármore. Na arte de escrever, menos é sempre mais. Quanto mais se retira mais se ganha. Como, então, retirar de onde nada se tem? Como imaginar que um texto nasça do nada, por arte de mágica, e encante pela sua profundidade?

Não, não: é preciso ter escrito para poder escrever.

A base da boa escrita está guardada dentro das várias versões que se faz de um texto, sem considerar que a última hoje seja a definitiva de amanhã. É bom guardar por uns dias, e retomar o texto. Lê-lo em voz alta, para sentir a música que tem (ou não) na retaguarda. Cuidá-lo como a um filho. Não se pode ter pressa para criar um texto.

A boa notícia é que esse é um processo que se aprende; começa a ser trilhado e, com o tempo e a prática, ganha rapidez, ainda quando é só pensamento. Começa-se a escrever enquanto se pensa, e a pensar enquanto se escreve. Adquire-se fluência, tranquilidade, agilidade.

Na prática de alguns esportes, existe uma forma de treino específica - o sparring. Com o mínimo de regras e de arranjos informais, e evitando o número de lesões, o sparring é uma forma de colocar teorias aprendidas em prática. O sparring partner, ou parceiro de treino, é contratado não como adversário, mas como um meio de aperfeiçoar a técnica. Também na escrita um partner sparring é algo de imenso valor. Alguém que, com recursos técnicos e experiência prática, auxilia o praticante a esmerar-se no aperfeiçoamento técnico e formal dessa arte. Um sparring partner da escrita lê e comenta, sugere e corrige, apoia e fundamenta.

A escola é um terreno propício para a atividade do writing sparring. O professor, com um domínio esmerado da arte da escrita, é o parceiro ideal e privilegiado de seus alunos. Lê e comenta, sugere e corrige, apoia e fundamenta. Vê crescer, diante de seus olhos, as capacidades discursivas, poéticas, narrativas e o longo etcetera que cabe no domínio da palavra.

Para isso, no entanto, é preciso que se prepare; é preciso que ele mesmo trilhe com antecedência os caminhos que quer ver seus alunos trilharem; é preciso que se aventure. O domínio da arte está ligado inexoravelmente à sua prática, e o professor que não pratica (ou seja, que não escreve, e reescreve, e busca ele mesmo a sua voz) não conseguirá ser esse parceiro que orienta, nutre e estimula. E precisa, ele próprio, de um parceiro.

Ao longo do tempo, chegarão desafios que se guardarão insatisfeitos e incompletos por dentro de cadernos. Há de chegar o seu dia. Como chegarão os nossos, se nos mantivermos atentos à sua espera, confiantes na sua chegada e gratos pela sua existência.

06/10/2014

Limite

"Sim, é apenas isto que posso te dar. Estas volutas de fumo que se dissolvem no ar tão inescapável da realidade. É apenas isto, e precisas afastar-te de mim se este pouco não encontra sossego nem morada dentro de ti.

É preciso que consigas ver por detrás daquilo que não digo. Por detrás desta prisão que me cerca por todos os lados e me limita o movimento e a própria vontade. E, ao mesmo tempo, que percebas que essa é a prisão que escolho, na liberdade que tenho de me conduzir a mim mesmo. É preciso que vejas por detrás destes olhos que te veem mas que, antes de te verem, veem o reflexo de meu rosto no espelho embaçado do banheiro. Espalho a palma da minha mão sobre ele, mas as gotas líquidas condensam-se outra vez, turvando a visão do que sou e do que quero. Como posso oferecer-te o que não vejo.

Agora, à distância, olho-te na pele de lembrança em minha mão. Sinto o teu olhar sobre mim e o que posso é dar-te as costas para impedir que vejas o fundo dessas pequenas indelicadezas que te magoam a alma.

Esta é a medida que me é possível. Tens razão quando me olhas manhã cedo e vês dentro dos meus olhos a impossibilidade desse pensamento que te prometo. Assim que me afasto, afasta-se a sensação de completude que resulta dos nossos corpos num mesmo espaço. Afasta-se, engolida pelo cotidiano, a impressão que a alma tenta guardar mas não consegue. Há gente demais na minha vida.

Não penses que não gostaria. Que não inverteria a ordem para começar outra vez e ser diferente o que só consegui ser igual. Mas não alimentes esperanças de que esse que não me habita te alcance como queres ser alcançada. Melhor será que te desfaças da minha imagem, ou pelo menos que a guardes em lugar que não te açoite o coração que me ofereces palmo a palmo.

Não me esperes, não me aguardes, não queiras que dê passos que não conseguirei depois sustentar sozinho. Ainda a minha alma não está pronta, e nem meu coração preparado. É longo o caminho à minha frente, e daqui de onde estou antecipo as encruzilhadas onde pararei como paro nesta em que me encontro. Não vejo os caminhos, apenas a confusão em que me lança a vida a cada amanhecer. Eu só queria viver tranquilo.

Guarda, isso sim, o meu traço na tua pele. Único lugar onde consegui deixar a marca de tudo o que queria poder te dar. E, ao mesmo tempo, o teu lugar visível mais extenso, e ainda assim onde as marcas não são eternidades. Não me faças entrar nas profundezas dessa alma que tens e temo.

E, ao mesmo tempo, como dizer-te que me deixes? Como dizer-te, assim, com todas as letras e espaços entre elas, que te vás e retires da minha vida essa leveza e essa entrega que se aproxima quando tu te aproximas? Esse instante cristalino de riso em que parece que o mundo respirou aliviado?

Não sei dos caminhos do amor, e receio-os a todos. As maçãs que crescem em mim acostumaram-se a despedir-se da vida antes de serem brotos. Arranco-as sem um gesto de lábios assim que ameaçam amadurecer. Metade de mim preferiria uma árvore sem frutos. A outra metade dilui-se num sonho de poder ser o que tanto temo, e oferecer, a essa maçã vermelha e tenra, o ar e a chuva que ela merece e precisa.

Por essa metade, peço-te: fica, ainda, um pouco, à minha espera. Marca um dia, uma hora, se queres, para a despedida e para ires em busca desse que estará junto a ti e abrigará teus sonhos, mas que esse dia se demore, e ainda eu possa ter um pouco disso que me estendes e eu não tenho coragem de colher."


Imagem: Suzana Siqueira