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23/12/2014

Madrugada

Acordo com um vulcão dentro do peito. Ouço as erupções no escuro da madrugada, sinto o calor da lava a subir pelas laterais da cama. E ouço a voz de minha mãe, confundida com outras vozes que se fazem ouvir.

Ouço-a contar-me, como se estivesse ao meu lado e não no jardim da casa onde vive hoje em Fátima, dos 13 meses de atividade vulcânica que acompanhou da escadaria da casa de sua avó, casa açoriana construída em cima de uma rocha tão grande que em seu interior tinha uma gruta. Terras de basalto, casas de basalto, mar azul petróleo em volta: os Açores são meu pensamento em voo quando o mundo concreto craquela. Lá está a janela da casa dessa minha bisavó, transbordada sobre o mar. Lá estão os ensaios da banda da igreja. Lá estão as águas-vivas a dançar na beira da praia. Lá estão as terras vulcânicas, essa paisagem lunar que já criança me depositava silêncio na alma.

Minha mãe conta da mescla estranha de terror e fascínio que sentia, da rudimentar máquina fotográfica empenhada em registrar a evolução diária desse vulcão. Conta da espessa nuvem de cinzas, incessante, a soterrar casas, a tornar o ar irrespirável, pessoas evacuadas, um farol quase desaparecido, metros de terra escura ganhos ao mar. "Essas terras", dizia, "tornar-se-ão nas mais férteis da ilha. Talvez eu não chegue a ver esse dia, mas talvez teus filhos sim."

Talvez nem eles. A natureza é mais indomável do que pretende o nosso pensamento; segue o seu próprio e desconhecido tempo, e não há nada a fazer a não ser munir-se das armas serenas da espera.

É o gosto dessas armas que amanhece na minha boca. Mesmo serenas, são amargas. Penso nos Capelinhos como se a vida fossem, e enterro as mãos nessas cinzas ainda quentes. São estranhamente líquidas, sobem até à garganta e dizem-me que não as deixe transbordar: "Agarra-te a essa inconsistência de neblina que recobre a madrugada, e espera que de nós nasça o mais fértil dos caminhos. É da tua espera que nascem as coisas. É da tua espera que o futuro se alimenta. É da tua espera que as águas que te marejam a alma refluem e seguem seu caminho ao longo da linha da costa, até mergulharem no mar e te acenarem adeus antes da onda final. Deixa que a onda que as leva passe sobre ti: deixa a onda passar e acorda outra vez, até não ser mais necessário."

Imagem: vulcão dos Capelinhos, ilha do Faial, Açores, 1958.





06/02/2014

Insular, verbo feminino




Há palavras que dá gosto fazer passear por dentro da boca. Repare nesta, uma das minhas preferidas. Tão grande que precisa de um parágrafo só para ela.

Insular.

Gosto de pensá-la verbo, e de pensá-la em ação dentro da minha vida. Insulam-se as coisas à minha volta, agora que escrevo. Insulam-se os meus pensamentos: rodeio-os dessa substância chamada Palavra que, além de alimento, é aquilo que não me trai. Insulam-se os meus dias, e torno-me ilha.

Paro um instante, antes de prosseguir, para dizer a palavra em voz alta. Insular: sai-me por entre os dentes, sibilante como um braço de água virgem. Demoro-me nas vogais, para que o vento dessa água possa transportar-se para dentro das palavras escritas. Tenho cada vez mais a impressão de que as palavras nascem de dentro do vento. Tenho um amigo que ouve vozes-vento. Eu insulo vozes nascidas no vento.

As ilhas não são apenas palavras de género feminino: as ilhas são seres femininos. Veem-se ao longe antes de serem tidas de perto. Um assombro, estar-se embarcado durante dias e de repente, em meio ao espelho azul que é o mar, ver surgir a Ilha como que num encantamento. Todo mar é masculino, assim como toda ilha é feminina. 

As ilhas permanecem em meio a vagas e serenos, mares de todos os tipos lambem as suas praias, nuvens de espuma marítima alçam-se na direção dos penhascos mais altos das suas encostas. Nelas, abrem-se grutas secretas, onde só os primeiros olhos conseguem chegar e ver. Há ilhas lisas e calmas: toda a sua extensão se desdobra diante dos olhos sem cautela alguma. Há ilhas escarpadas, arredias, como cervos assustados ao ouvirem o tiro distante. Há ilhas que se dobram sobre si mesmas, reinventam-se a cada estação para não sucumbirem.

E há ilhas que se reconstroem, após a invasão das ondas. Choram as suas dores internas em lugares que ser algum conhece. Curam-se em silêncios de grito engolido. Há ilhas tenazes, persistentes, teimosas. O mar cobre-as inteiramente, quase parecem desaparecer. Mas os mares sempre, sempre refluem, mais dia menos dia. Vão-se em busca do seu tamanho, conscientes da ferida que é a sua natureza aquática. As ilhas reaparecem no lugar onde sempre estiveram. São novas, e são as mesmas.

Há ilhas cheias de remansos e lugares bons para os homens aportarem nas embarcações que usam como cavalos do mar. Baías e enseadas protegidas, o sol a pino a secar os corpos que nadam através das águas salgadas, do barco à praia. Estas são as ilhas lugares de acolhimento. Abrem-se sem conhecerem o que é o pudor. Permitem a entrada àquele que deseja entrar. As suas árvores, os seus arbustos, ainda que precisem de facas que os deitem ao chão, não sabem opor resistência que os homens não possam vencer. E por isso as ilhas são às vezes tomadas, às vezes saqueadas, às vezes roubadas, às vezes invadidas, às vezes magoadas.

Mas há um território inconquistável em cada ilha. A esse território, ninguém subjuga, permanece escondido e protegido e inviolável. Está por baixo dela, na escuridão do mar, espaço único onde ilha e mar são coisa única e se misturam e convivem como se fossem cada um sozinho o mesmo lugar do outro.

Gosto de pensar nesse lado de baixo das ilhas, braços de rocha a estenderem-se numerosos até o fim absoluto da terra. Imaginá-lo cheio de reentrâncias, por onde a água do mar caminha com delicadeza e suavidade, os dedos cuidadosos estendidos na direção dos lugares mais vulneráveis, e proibidos, e sensíveis. Pode haver tempestades à tona d'água: nesse lugar do embaixo, a vida corre em outro tempo, em outro mundo, de outras formas. 

Talvez seja esse o lado mais feminino da ilha: um lado que não é lado mas absoluto todo, um lado iridiscente, a luz própria de toda ilha a iluminar o mundo sem luz do fundo do mar. E o mar, então, azula-se em tons nunca vistos, um passeio do negro mais escuro aos cerúleos, aos cianos, aos marinhos, aos cobaltos, aos cárdeos, aos safiras mais faiscantes. Surgem seres vermelhos, pequenos camarões de grandes olhos, que sorriem para esse mar transfigurado. 

A ilha revela as cores do mar. Amalgama-se às suas pernas, ao seu tronco, a cada uma das partes sem nome que o mar não nos diz ter, para que achemos que ele é apenas uma massa compacta de água, e sal. Mas não: o mar, quando descoberto dentro da luz do lado escuro da ilha, cresce em tamanho e poder, e é verdadeiramente o mar que nasceu para ser. À ilha, basta-lhe insular.


Publicado originalmente em