18/04/2013

Coisas sem peso

"Ó Ana" - diz-me uma amiga próxima ao coração - "é melhor que escrevas sobre coisas leves".

Gosto de conselhos, e gosto tanto da pessoa que me oferece este, que só por isso vou em busca de coisas leves. Dessas que têm o poder de deixar as pessoas numa espécie de estado de graça que, mesmo não sendo aquele da crônica da Clarice Lispector, dão a impressão de que sim. Apetece-me pesquisar sobre editoras, por exemplo. Estou mesmo à procura de conhecer algumas que há anos aprecio, este é um excelente momento. Vou começar pela Peirópolis.

Ora bem: antes de chegar à editora, descubro que Peirópolis é um bairro rural da muito mineira Uberaba (assim é o google: querendo uma coisa às vezes caímos em outra). Bonito, parece. Pela foto. Durante anos famoso pela extração de calcário. Chama-se assim por causa do espanhol que lá pelos idos de 1911 o explorou: Francisco Peiró. A ferrovia, que naquela época já atravessava o triângulo mineiro e levava os peiropolinenses pelos 21 km que os separam até hoje de Uberaba, passou quase 90 anos colorindo a paisagem com essa linha em movimento que são os trens. Depois, o mundo (essa coisa que nunca sossega, segundo Camões) precisou de energia elétrica, e lá se inundou um pedaço de chão para o lago de Jaguara nascer, hidrelétrica acoplada. Metade da ferrovia virou um ser subaquático.

Anos passados da morte de Francisco, Peirópolis recebe a visita do gaúcho Llewellyn Ivor Price. Nome nada comum a um gaúcho dos pampas. Mais precisamente, de Santa Maria. A mesma Santa Maria enlutada da boate Kiss.

Llewellyn foi estudar no país de seus pais. Em Harvard, USA. Tornou-se professor de lá mesmo, paleontologia. Quando voltou ao Brasil, porque nada lhe conseguia acalmar a saudade do cheiro das terras do sul (e se não sabe do que se trata leia Érico Veríssimo que descobrirá), lá passou as décadas de 40 e 50 em expedições por todo lado. Hospedou-se no Colégio Centenário, escola só para meninas, lá na sua cidade natal, chamado assim por ter sido fundado no mesmo ano da Semana de Arte Moderna, cem anos passada a Independência. Llewellyn devia gostar de ouvir as aliterantes Miss Louise e Miss Eunice, as missionárias americanas que fundaram o colégio, discorrer sobre a sua nobre e grandiosa tarefa, até chegarem à frase que conseguiu sintetizá-la: educar a mente a pensar, o corpo a agir e o coração a sentir. Se eu quisesse pensar em educação agorinha mesmo, escolheria essa frase, o ano em que foi dita e o tempo que nos separa dela para tecer algumas ideias. Mas como eu não quero, só reparo ainda que o Colégio Centenário mudou: na década de 70 (a mesma em que a ferrovia uberabense foi engolida pelas águas) passou a admitir meninos, e o pequeno chalé cresceu tanto que hoje chama-se também FAMES (Faculdade Metodista de Santa Maria). As bandeiras a meia haste ainda ressoam a consternação pelos alunos e pelas famílias soterradas pela dor do início do ano.

Mas eu estava em Peirópolis e para lá retorno, pela mão de Llewellyn. Literalmente. Eram seus os dedos nodosos que desencavaram de dentro das rochas e do calcário ossos e mais ossos, num destino arrastado que todos os palentólogos devem ter em comum. Pacientemente, organizou esse quebra cabeças de uma só cor. Dias e dias. Quando terminou, afastou-se alguns metros, coçou lentamente a orelha esquerda e segredou a seu assistente, um jovem de óculos de aro de tartaruga que mal lhe cabem no rosto estreito: 

- Lars, esse é o Uberabasuchus terrificus. 

Durante todo esse dia, que era de verão mas não de calor desmedido, Llewellyn ficou-se por ali, enamorado da própria recriação, imaginando os 300 quilos que um dia animaram aqueles ossos, os seus movimentos sinuosos de antepassado crocodílico. 

No dia do ano de 1980 em que Llewellyn descansou desta vida, o homem que escavou o país sentiu em si mesmo o peso dos anos e o peso dos ossos. E chegou à conclusão, antes do último expirar, que de nada adianta tentar fugir ao peso com que a vida nos persegue. E eu, que procurava coisas leves com as quais ir-me deitar descansada, acho-me agora com uma meia dúzia de sites que quero ler. Todos sobre dinossauros. E nem um que me dê notícias da editora que me apetecia.



(Para bem da verdade, não foi Llewellyn que nomeou o dinossauro uberabense. Desde as suas escavações em Peirópolis precisaram passar-se muitos anos. O Uberabasuchus terrificus nasceu para a posteridade perto do ano 2000.)

15/04/2013

Questão de discurso

Se tem um assunto que me encantava na faculdade era análise de discurso. Com colegas bem afiados no assunto, era fantástico ouvi-los enquanto se enfiavam por entre os meandros e as dobras do discurso alheio, num strip-tease forçado daquilo que mesmo sem querer se entrega. Basta prestar atenção ao discurso: as palavras entregam, seja pela falta, seja pela presença, mais frequentemente pelas escolhas que se fazem sem mesmo se saber que se fazem.

A imagem ao lado tem circulado no facebook nos últimos dias. Muitos de meus amigos a compartilharam. Alguns são professores. Revoltados com os resultados da análise do Forum Econômico Mundial com relação à educação em 116 países, onde o Brasil se situa abaixo "até" do Azerbaijão (e Chade, e Suazilândia). O "até" é matéria importante, aqui. Deve parecer óbvio, penso, revoltar-se porque os azerbaijonenses tenham escolas e professores melhores que o Brasil - sejam lá eles quem forem e onde exatamente no mapa múndi se situarem. Irrelevante não saber com qual das mil facetas possíveis se reveste a expressão "qualidade de ensino". (Com tudo isso, descobri que os azerbaijanos têm uma questão séria, que é a de como se chamarem uns aos outros: são também azerbaijenses, azéris, azerbeijanos, azerbaidjaneses e azerbeijaneses. Não fosse o tal estudo do Forum, e a coceira que me deu na ponta dos dedos, eu não saberia disso.)

Abaixo da imagem, bem clarinho, está o link da matéria do Estado de São Paulo. Vejamos do que se trata, afinal. As preocupações do Forum dizem respeito à capacidade de adaptação ao mundo digital e ao ensino de ciências e matemática na educação básica. O Brasil não está só "atrás" do Azerbaijão, do Chade e da Suazilândia, mas também  de Lesoto, Tanzânia e Venezuela. Apesar dos "avanços em infraestrutura e de um certo dinamismo do setor privado", a estagnação impera, e um dos motivos é a "qualidade do sistema educacional (...) que não garante as habilidades necessárias para uma economia em rápida mudança em busca de talentos". 

Depreende-se, portanto que 1) o problema não é do governo federal (já que a educação básica é responsabilidade dos municípios e estados), como induz a imagem de Lula e Dilma; 2) nem sequer da educação pública (já que há setores privados dinamizando o cenário, e foram considerados pelo estudo); e 3) nem exatamente uma "vergonha", já que investimentos foram e são feitos, e o Brasil subiu de fato algumas posições desde a pesquisa anterior (da 66ª para a 60ª posição). Isso sem pararmos para pensar de que "Brasil" estamos falando, com estados que ainda não pagam o piso salarial sequer, situação radicalmente diferente do sul e sudeste.

Que a educação enfrenta desafios e nos deixa perplexos de segunda a sexta dentro de sala de aula, não é novidade. Em todos os lugares, isso não é Brasil: é mundo. A adaptação ao novo universo que a tecnologia abre, e à velocidade que o faz, e às mudanças que processa de um dia para o outro, é tão dramática quanto a introdução da imprensa de Gutemberg a seu tempo, respeitadas as diferenças. O mais importante, que de repente esquecemos com frequência maior que a possível, é de quem mesmo é a responsabilidade. Meus amigos professores hão de desculpar-me, mas cada aula abonada, cada aula mal preparada "porque essa molecada não aproveita nada mesmo", cada hora mal gasta em sala de aula fazendo o que já se sabe não significará nada na vida dos cidadãos sentados diante da lousa, cada encolher de ombros para o que se pode fazer mas não se faz, cada desmerecimento oferecido às famílias que "não fazem a sua parte", cada "deixa disso" quando aparece uma possibilidade de mudança, é um tiro no pé de todos nós. Nós, os professores.

Meus filhos estudaram, há pouco tempo, em escolas públicas. Das 6 aulas que teriam no seu período escolar diário, raros foram os dias em que as tiveram. As às vezes quatro "janelas" passadas no pátio sem ter nada para fazer tumultuaram seu processo pedagógico, sua crença na capacidade dos professores de ensinar e na deles de aprender. Relativizaram a importância da escola e desmotivaram a assiduidade.

Não há governo que consiga reverter esse quadro, especialmente se todos os nossos dedos forem ingenuamente apontados para ele. Uma escola de qualidade demanda compromisso e mais compromisso, e o compromisso é, no dia a dia, de seus professores e diretores e secretários e merendeiros e faxineiros, que dentro de uma escola somos todos educadores. É árduo, intenso e altamente estressante. Mal remunerado. Socialmente desprestigiado. Todos os dilemas da sociedade estão dentro da escola, latentes e prestes a explodir. Todas as desagregações, todos os desmantelamentos, todas as desigualdades, todos os pequenos e grandes infernos, todas as carências, infelicidades e sentimentos de inferioridade. Assim como todas as possibilidades.

Se olharmos para trás, a remuneração dos professores teve aumento expressivo nos últimos dez anos (16% em 2011; 22% em 2012, por exemplo). O estado decadente vem de há muito tempo, não é recente, nem provavelmente solucionável a curto prazo. A abertura do processo escolar a todos trouxe mudanças e desafios, e é preciso olhar para o passado sabendo o que se vê, fugindo de discursos tendenciosos e sensacionalistas. As infraestruturas precisam ser utilizadas com sabedoria e as decisões precisam ser compartilhadas. Livros em caixa e computadores trancados dentro de salas fazem sentido? Sistemas de ensino particulares, apostilados, uniformizantes e reducionistas, tomando quase de assalto as salas de aula da escola pública, são o caminho?

Agora, a aula de amanhã, e a de depois de amanhã, precisa fazer sentido, precisa ser o caminho e precisa ser possível. A qualquer custo. A imagem que prega "Seja diferente: não derrube. Ajude a levantar" tem quase o mesmo número de postagens que a cara da "vergonha". Os mesmos murais as exibem, as mesmas cabeças compartilhando coisas tão díspares. Como se não houvesse relação entre elas.

A matéria do Estado de São Paulo:

12/04/2013

Ó Botucatu!

Essa ferramenta absorvente chamada facebook há semanas me pede que defina em que cidade moro. Já me mandou a pergunta de várias formas: parece haver inteligência por trás dessa tecnologia. Hoje, foi uma espécie de enquete: três possibilidades com a bolinha para clicar em cima da minha escolha. Uma delas é Botucatu.

A minha vida tornou-se uma forma itinerante. Há dias em que, se me perguntam onde vivo, direi que no carro. Na estrada. A caminho de. Indo. Voltando. É claro que minha sagitarianice diverte-se com tudo isso, mas outros aspectos do meu mapa franzem o sobrolho e disparam um tsc tsc tsc como se fossem personagens de gibi: "Até quando, filha, você vai aguentar essa toada?". Hoje, curiosamente, o sotaque parece ser de Botucatu.

Poderia ser a cidade escolhida. Ainda mais esta semana, que faz aniversário e completa 158 anos. Mesmo sendo ela a aniversariante, vou-me dar um presente: se o facebook me perguntar de novo  por estes dias onde afinal eu moro, responderei em alto e bom teclar: em Botucatu.

E só tem vantagens. Os bons ares, logo de cara. Mas mais ainda as nuvens, que não encontram congêneres em lugar algum do planeta. O céu noturno, pelo menos este aqui da casa onde vivo, sem luzes nem barulho nem quase pessoas em volta. Gosto da impressão de "vou crescer mas quero ficar pequena" que a cidade me transmite. Habituei-me com as suas ruas, nunca vivi tanto tempo em nenhuma outra cidade. Criei raízes, parece. Aéreas, pode até ser, mas ainda assim raízes. Ou âncoras. Ou essa sensação que às vezes me desconcerta de ser acolhida e consolidada naquilo que quero ser em mim mesma. Em Botucatu e em qualquer cidade. É bom, no mínimo, voltar para cá de tempos em tempos, reencontrar-me espelhada aqui e ali, neste e naquele olhar, como uma garantia de ter, sim, um lugar próprio.

Parabéns, Botucatu!

10/04/2013

O ar rarefeito

Judite está sentada diante da janela da sala. Um dia cinza, como tantos outros. O aquecedor a óleo aceso dentro de casa para secar o ar úmido. O sol esgueirando-se por entre as sombras dos prédios.

Judite está de olhos fechados. Impossível captar-lhe a alma. Amanheceu de boca dormente, o coração à entrada da garganta, as palavras na dúvida de se manterem silêncio ou atravessarem o ar.  Atravessaram, e ficaram da cor do ar rarefeito. O problema, lembra-se de ter pensado, não é a falta do ar. O problema é a sua consistência rarefeita.

Agora, o corpo dói-lhe. Como se cada dor a invadisse feito ar de montanha. 

Talvez por isso se expanda quando ouve a palavra praia. Por causa do ar. Da densidade do ar. Da pressão maior que torna os contornos menos difusos e a vida mais concentrada. Menos neutra. Salgada e presente. Em vez dessa coisa passageira e transparente que lhe atravessa os pulmões e lhe liquefaz a alma.

A alma líquida. Por isso fecha os olhos, a Judite. As mãos não fazem nada, porque cada movimento lhe dói. Doem-lhe as marcas. E a cada dor o mesmo coração secando, entalado à entrada da garganta. O mesmo ar rarefeito. E doem-lhe os tempos. E sobretudo sobretudo a falta deles. 

O dia vem bater-lhe à porta, de mansinho mas insistente. Judite levanta-se do seu posto de observação. As palavras entram por baixo da porta antes mesmo dela a abrir. Enroscam-se em seus pés, lambem-lhe as solas, os dedos um a um. Como se tivessem olhos, vigiam-na enquanto se demoram em cada articulação. Judite sacode-as, como se fossem formigas pretas enterrando-lhe ferrões de açúcar na pele. E recolhe-as do chão, com uma ternura feita da dor que não a espanta, para colocá-las à mesa, a seu lado, enquanto agarra com as mãos desocupadas papel e tinta.

08/04/2013

De mãos dadas

Traduzo há anos. Com interrupções, às vezes mais às vezes menos, às vezes mais bem paga às vezes menos, mas há anos. Atividade solitária e silenciosa, há momentos em que fujo dela o quanto e mais longe posso. Porque é uma arte, e a arte às vezes dói, demora-se, frustra. Doem-me as costas. Demoro horas, meses (muitos), e ainda assim não consigo chegar às palavras de outras línguas que quero perfeitas na nossa. Poesia, então... dureza árdua. Se a descubro presente em todas as páginas (é o caso da tradução que tenho em mãos), preciso mover-me lentamente parágrafo a parágrafo, verso a verso, preciso desinquietar-me do mundo para estar à vontade entre as linhas. E preciso parar, de tempos em tempos, e ir em busca de inspiração nos bons tradutores dos bons poetas.

Começo pela língua original. Saboreio-lhe a riqueza diferente da minha terra mãe. Digo-a em voz alta, para que o ar em volta se compenetre dessa vida própria que preciso absorver para poder traduzir. Perco-me um tempo por entre as páginas. Como hoje, agora à noite, que decido ser tempo de Elisabeth Bishop. Paro muitos minutos diante das letras que formam o poema "One Art". Leio em voz baixa, leio em voz alta, corro ao espelho, saio à varanda, quase que chamo o vizinho para ouvir, e depois repito tudo outra vez. Preciso de apoio e de companhia, a vida tingiu-se de cores sem palavras.

The art of losing isn't hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn't hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother's watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn't hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn't a disaster.

-Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan't have lied. It's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.

De Bishop rumo ao seu tradutor - Paulo Mendes Britto. Encontro-me e aninho-me por entre o ritmo de austeridade mantido; por entre as imagens desconstruídas e reconstruídas com força e ímpeto tão iguais (de joking voice a riso etéreo, de hour badly spent a hora gasta bestamente, de losing farther, losing faster a perca mais rápido, com mais critério); diante do encontro que quase parece fortuito entre mistério/sério/austero/mistério colado em mesmo grau e intensidade a master/disaster/fluster/master. E outra vez leio em voz baixa, e em voz alta, e corro ao espelho, e saio à varanda e quase outra vez chamo o vizinho para que também ele possa ouvir. Apoio e companhia, e as cores tingindo-se de palavras diante do escuro da noite.


A arte de perder não é nenhum mistério;
tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subsequente
da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

- Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.

E vou e volto entre uma e outra, até que de repente meus dedos se desentorpecem e deixam escorrer e escapar as palavras que trago contidas, retidas, como se usassem um escafandro nessa água toda que de repente me inunda e se recusa a sair. Talvez sejam lágrimas, mas do lado de dentro parecem rios caudalosos. Saem assim, numa dose de serenidade inaudita:

Perde-se de vista o olhar encontrado.
Perde-se da mão estendida aquela que a preenchia.
Perde-se o risco da perda na tentativa.
Perde-se o sentido.
Perde-se o perdido.

Perde-se o centro dentro do espelho.


Perde-se o reflexo no escuro da retina.
Perde-se o outro à entrada da alma.
E ganha-se tudo quando a vida é absolvida e o amor inalterado.


Agora, sim, posso virar-me para o lado e recomeçar a tradução que devo terminar. Mãos dadas com a desinquietação que chegou de presente, e varreu o medo e a dúvida para o lado de fora da porta.




06/04/2013

A cidade grande

Disseram-me ontem que quase-que-estou virando paulistana. Talvez porque, onde chego, falo do trânsito. Ou da reportagem da CBN, que aparentemente meus companheiros também ouviam no caminho. Ou porque me divirto avaliando a probabilidade concreta de chegar ou não na hora esperada, já desistida de me inquietar ou irritar com coisa tão elementar. Começo a descobrir com razoável facilidade se meu caminho é fluxo ou contra-fluxo. Já sei que trechos de pontes das marginais evitar às nove horas da manhã. E qual avenida eliminar do itinerário por causa das obras. Enquanto os pés dançam entre acelerador e freio, a mão escapa para tirar uma foto ao acaso. Querendo reter a beleza escondida por trás da água e do cinza, pendurada nos fios que enfeiam ou enobrecem a cidade. Como sempre e em todo lugar, o que faz as coisas mudarem é a perspectiva com que se observa.

O fato é que, não me sentindo quase-que-paulistana, gosto do que vejo quando cá/lá estou. Gosto da garoa, gosto do movimento, gosto de cada pedaço que preciso descobrir para ir de um lado ao outro. De Franco da Rocha ao Tremembé, do Parque Novo Mundo à Granja Julieta, de Taboão ao Morumbi, são quilômetros, braços dados com trabalho, oferecendo-me a cidade que ainda não conheço, longe da República, do Arouche, da São João, da Teodoro, de Pinheiros e da USP que me são familiares. Afasto-me dos espaços que já me foram casa e paixão e descubro novos recantos. Como essa casa de chá em meio à Chácara Santo Antônio, ruas e minutos antes do horário do filme de logo mais no Lumiére.

A Teakettle, chama-se a casa de chá, já fechou. Fica na rua Alexandre Dumas, 1049. Não quero, e nem minha companhia quer, perder a viagem que nos trouxe - tocamos a campainha e mesmo fechada a casa abre-se, a água ferve e o chá aparece. Friozinho de começo de noite em São Paulo e um bule de chá na mesa redonda. Paredes forradas de simpatia e à vontade, um oásis repentino assim, de mãos dadas com o burburinho lá de fora. "Ainda bem que vocês vieram, assim sei que tenho uma companhia" - dona Silvia, a proprietária, diz-se feliz de lhe interrompermos o descanso. Não há como não sorrir e encher as xícaras e recostar-se na cadeira de palhinha. Ao longe há um eco de poema, mas o longe é dentro, aqui guardado onde decidiu construir-se, nítido e forte como cada milímetro desta cidade tão grande e que, num instante, cabe dentro de um bule de chá. Ou de uma gota de chuva com sabor de saudade imensa.


A casa de chá tem um site!


01/04/2013

O sol, riqueza dos pobres

Diz-se isso, algures: que o sol é a riqueza dos pobres. Veio-me à lembrança porque dia desses me perguntaram de onde mesmo vinha a palavra quarar. Com ajuda de uns e outros, descobri que a palavra deriva do corar lusitano, absorvido e transmutado pelo tupi. Vale o mesmo que branquear, ao sol, a roupa branca necessitada de um tratamento extra. Ninguém mais faz isso: talvez os pobres, quando o sol lhes é a única riqueza.

E por que isso? Porque tenho uma amiga que me pergunta, aflita, o que fazer com um lençol sujo, encardido e manchado. Poderia parecer mais fácil comprar um novo. O que custaria? Vinte reais? Que seja: as soluções fáceis e rápidas contêm em si um perigo. Vamos assumindo-as como se fossem possíveis, e a vida vai se tornando, com a sutileza das coisas que parecem não ter importância, uma coisa descartável: manchou, troca; sujou, compra um novo. No momento sério, aquele que ao olhar para trás poderá revelar-se o limiar de um novo nós, pode ser que tendamos a fazer o mesmo. E de repente descobrimos que nos perdemos. Melhor quarar a alma ao sol, vez por outra.

Pergunto a minha amiga de que manchas quer ela se livrar. De tudo, responde evasiva. Não vou me meter na sua vida - melhor ajudá-la de forma pragmática, até porque gosto de encontrar soluções que nos livrem do supérfluo do supérfluo, especialmente em termos de limpeza. Descubro uma infinidade de dicas para quem quer voltar a ter um lençol branco como neve, sem esvaziar as prateleiras do supermercado. Como pode ser que sirva a outros (quem não tem um lençol pra lavar?!), segue abaixo o receituário completo. 

Lençóis brancos, e a sua irrecusável sensação de limpeza, estão perto do que as nossas almas respiram: sujam-se e limpam-se e sujam-se e limpam-se. Erram e acertam, e acertam e erram. Às vezes, precisam de ajuda, especialmente para o limpar-se e o acertar. Pequenas dicas de quem já tenha se sujado e errado por aí. O importante, creio, é não se render, imaginando que as manchas possam ser descartadas ou encaixotadas - como uma pele que trocássemos porque a nossa se enrugou antes da hora. Cedo ou tarde, elas voltam - melhor cuidar delas, e com o carinho que merecem por tudo o que nos fizeram e fazem crescer. À alma, ponho-a a quarar amanhã cedinho; quanto ao lençol, seguem-se outras possibilidades:

- deixá-lo de molho durante a noite com uma colher de sopa de amoníaco ou suco de limão;
- se muito, mas muito sujo mesmo, ferve-lo em balde de alumínio, com uma colher de sopa de terebentina. Amoníaco, na falta dela. Suco de limão, na falta de ambos;
- lençol amarelado, mais do que sujo? Lave-se com meia xícara de álcool;
- a mancha é de sangue? Esfregue-se com água oxigenada 10 volumes;
- uma tampa de anil líquido, 3 colheres de sopa de álcool, 1 colher de sopa de amoníaco e 1 colher de chá de bicarbonato parece bruxaria - mas é da branca. Deixa-se de molho por 4 horas e não se elimina da receita o bicarbonato, que é quem impede que o anil manche;
- mais uma: em água fervente, dissolvem-se 2 colheres de sopa de sabão em pó, 1 colher de sopa de aguarrás e 1 colher de sopa de amoníaco; acrescenta-se a mistela a um balde com água fria, onde a roupa ficará de molho por 4 horas;
- a inusitada: em balde grande, dissolvem-se duas colheres de sopa de sabão em pó; bate-se até formar espuma e então junta-se um saquinho de filó cheio de cascas de ovos esmagadas. Molho de uma hora;
- para deixar preparado e juntar à água da lavagem: 4 litros de água, 1/2 kg de sabão em pó, 1 kg de bórax ou ácido bórico (vende-se em farmácias e serve também pra fazer bombas caseiras também; pode ser que alguém ache estranho...). Aquece-se a água, dissolve-se o sabão em pó e depois o bórax. Não é preciso ferver. Deixa-se esfriar e guarda-se. Usa-se uma xícara bem cheia no tanque; 3/4 na máquina.
- e se você é daqueles que preferem ver, e só vendo pra crer:
http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=ePaRlGPPKHA

Boa limpeza!


26/03/2013

Domingo de Ramos (às minhas tias)


Apesar de poder ter vários motivos para ter ido à missa neste domingo de Ramos, apenas um me fez por as pernas em movimento. Poderia ter ido porque, de fato, acho que este é o mais bonito domingo do ano. E isso talvez se deva (mas não é verdade) à cena de Jesus entrando em Jerusalém ao som de Hossana-hei-sana-sana-sana-ho de um Jesus Christ Superstar que vi até os olhos me doerem. Ou talvez se deva (embora também não seja verdade) ao trecho do evangelho de Lucas, em que Jesus sabe o que se vai passar daí a horas com os discípulos, e eu inquieta “mas eles não perceberam o que aconteceu?!” porque Lucas não diz nada do que os discípulos sentiram. Aliás, Lucas conta o que se vê, não o que se sente. (É aquele mesmo trecho em que Lucas diz que Jesus diz, com uma atualidade que nos acompanha desde sempre, que “se eles se calarem, as pedras gritarão”.)

Mas não. Mesmo sendo este o mais bonito domingo do ano, não é por isso que vou à missa de Ramos, e que me lembro de levar um galho de folha de palmeira, e que entro calada e um tanto alheia dentro da igreja, e que se me enchem os olhos de lágrimas quando a procissão entra sacudindo as folhas e a igreja retumba com o padre (que canta bem) e se enche de verde, seja ou não a cor da esperança.

Estou aqui porque lá, longe, do outro lado do mar, sei que as minhas tias estão também em alguma missa de domingo de Ramos. Pressinto-lhes o passo nos adros de todas as igrejas em que estiverem, e quero que saibam que estou num adro semelhante. Assim que fecham os olhos, que também se lhes enchem de lágrimas, quero que saibam que também os meus transbordam. E não porque os padres cantem bem, ou a imensidão verde dos campos do Senhor invada as naves de todas as igrejas em que estamos. Não por isso.

Estou aqui porque preciso fazer algo que me diga, e concretize, e garanta, e torne nítido como uma manhã açoriana, que o tempo e o espaço são nossas criações, e nada mais. Que não nos vamos, porque sequer chegamos. Que o lá, e o aqui, e o do outro lado são as mesmas coisas, vestidas de tules diferentes.

E por isso, porque são criações e não realidades, com os olhos fechados neste domingo de Ramos, vejo a mais nova das minhas tias. Vejo-a no seu riso rouco. Vejo-a nos seus dedos que como os meus têm as unhas roídas. Vejo-a na sua recitação acelerada do Pai Nosso nas missas de domingo. Vejo-a deitada ao meu lado, ambas cativas de hepatites gêmeas. Vejo-a hábil à máquina de costura. Vejo-a modelando flores de papel para uma festa na garagem nas Caldas. Vejo-a gargalhando. Vejo-a por entre as nuvens de fumo dos seus cigarros. E vejo-a quando uma voz tão conhecida diz “Ó Manela, então já cá chegaste?!” e eu viro-me e são ela e meu pai, que me acenam do outro lado do tempo e do espaço, e me dizem “até logo” e se afastam, porque a minha avó os chamou também de outro lado, e eu fecho os olhos porque as saudades impedem-me de querer ver o resto.

E volto à missa, e ao domingo de Ramos: esse domingo tão lindo, acho, porque nos diz que tudo o que será já é, e nós sabemos. Só fazemos de conta, às vezes, que não.


03/03/2013

O lago de Isaura

Este é o último dia. Isaura muda-se para um lugar menor, mais apertado. Escolheu-o pelas janelas, que são maiores e deixam entrar mais luz. Tanto faz que o espaço seja menor, mas porque é menor, e bem menor, Isaura está sentada no chão de ladrilhos do seu ainda apartamento, arrumando em caixas estreitas o que decidiu deixar. Entre todas as coisas, há aquelas que não levará, e nem ao peso da recordação que se lhes amarrou. As mãos de Isaura acariciam as superfícies. Ainda estão quentes. A garrafa vazia de café. Os lábios tatuados no copo de vidro. A sombra dos cigarros no cinzeiro queimado. E outras coisas, que não tiveram tempo de ganhar nome. Também as palavras, aquelas de natureza volátil como cheiro de nuvem, aquelas que aos poucos se apagam (se apagarão) das telas das retinas dos olhos de Isaura. Também elas precisam ser encaixotadas. Como pinturas complexas e vibrantes de consistência líquida, são palavras que se descolam das retinas. Isaura observa o seu cair diante do espelho baço do banheiro. E lembra-se da escova de dentes, e volta à sala para colocá-la junto às demais coisas. Armindo ganha forma no chão da sala, feito das coisas que se lhe encostaram. Nenhuma marca de sua música, apenas as marcas de seus dedos, e mesmo elas tão difíceis de serem recriadas.

Isaura fecha os olhos, porque toda essa água que cai diante do espelho lhe dói. Porque a garrafa de café lhe dói. Porque a caixa em que guarda o café sem abrir lhe dói. O presente sem entregar lhe dói. O cinto esquecido lhe dói. Mas a água continua sem atenção à dor, e já está o chão do apartamento cheio dela, e sobe pelas paredes como se subisse através da pele da casa de Isaura, e levasse as últimas marcas. A água escorre pela garganta de Isaura, lava-lhe o corpo por dentro. Está tudo inundado, a garganta, o sexo, os espaços entre os dedos dos pés, o corpo amarrado ao colchão. Isaura escoa-se em água e está dentro do lago. Costuma ser um sonho, isso, mas Isaura sente a pele molhada como se secasse ao sol em cima de uma pedra, ao lado do rio de onde a içam quando querem.

Há um homem, na margem desse lago, e Isaura gostaria que fosse Armindo. Mas Armindo está longe, rodeando outros lagos, e ele, diz Isaura por entre a água que a invade, ele, mesmo assim, com tudo, ainda assim - Armindo não riria, e o homem na margem ri. Mas enquanto a água lhe sobe narinas acima, Isaura sabe que ninguém a não ser Armindo saberia que esse é o lago do seu afogamento. E como o riso na margem é tudo o que ela ouve, tudo o que ela ouve é o riso de Armindo, aquele que sabe do lago. Os olhos de Isaura transbordados da água do lago, os olhos de Isaura inundados da sua própria água. Os olhos de Isaura dentro do lago - esse lago parado como é da natureza dos lagos. Uma ilusão salobra, um silêncio aquático liso, interrompido pelas notas distantes do riso do homem à margem, de Armindo à margem. 

A escuridão calada da profundeza das águas move-se por baixo, sem que ninguém a veja, mas Isaura sente-a aliciando-lhe as plantas dos pés, enredando-se como hera em suas pernas, puxando-a para baixo. Pode-se fazer de conta que o lago não é triste. Pode-se fazer de conta que se pode ficar o tempo que se quiser dentro dele, as narinas cheias do cheiro antigo que o corpo reconhece, e fechar os olhos e imaginar uma outra noite qualquer em que se consiga escapar ao enfiar os pés no lago e ser sugado por ele. Fazer de conta que a solidão do lago é diferente da solidão das outras coisas, e estas diferentes da solidão dos abismos, e esta da solidão das noites, da solidão do tempo, da solidão do abandono. E fazer de conta que há um cheiro flutuando ao de cima do lago, quando não há nada a não ser o riso do homem à margem.

E o lago penetra Isaura, ela permite-lhe passagem para dentro de seus pulmões, presença de líquido onde só o ar faz morada pacífica. E só o que se ouve é aquele ruído rouco de riso de que já se falou tanto, no lago que sobe em direção à garganta. E então a janela fechada, a luz e a água que agora vive no chão da casa de Isaura invadem as narinas, e o lago está lá, ainda, seu silêncio encrustado, de mãos dadas com o riso à margem. Tudo diluído nesse fim de apartamento, quando a dor transborda os olhos para que a alma passe.