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08/04/2013

De mãos dadas

Traduzo há anos. Com interrupções, às vezes mais às vezes menos, às vezes mais bem paga às vezes menos, mas há anos. Atividade solitária e silenciosa, há momentos em que fujo dela o quanto e mais longe posso. Porque é uma arte, e a arte às vezes dói, demora-se, frustra. Doem-me as costas. Demoro horas, meses (muitos), e ainda assim não consigo chegar às palavras de outras línguas que quero perfeitas na nossa. Poesia, então... dureza árdua. Se a descubro presente em todas as páginas (é o caso da tradução que tenho em mãos), preciso mover-me lentamente parágrafo a parágrafo, verso a verso, preciso desinquietar-me do mundo para estar à vontade entre as linhas. E preciso parar, de tempos em tempos, e ir em busca de inspiração nos bons tradutores dos bons poetas.

Começo pela língua original. Saboreio-lhe a riqueza diferente da minha terra mãe. Digo-a em voz alta, para que o ar em volta se compenetre dessa vida própria que preciso absorver para poder traduzir. Perco-me um tempo por entre as páginas. Como hoje, agora à noite, que decido ser tempo de Elisabeth Bishop. Paro muitos minutos diante das letras que formam o poema "One Art". Leio em voz baixa, leio em voz alta, corro ao espelho, saio à varanda, quase que chamo o vizinho para ouvir, e depois repito tudo outra vez. Preciso de apoio e de companhia, a vida tingiu-se de cores sem palavras.

The art of losing isn't hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn't hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother's watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn't hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn't a disaster.

-Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan't have lied. It's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.

De Bishop rumo ao seu tradutor - Paulo Mendes Britto. Encontro-me e aninho-me por entre o ritmo de austeridade mantido; por entre as imagens desconstruídas e reconstruídas com força e ímpeto tão iguais (de joking voice a riso etéreo, de hour badly spent a hora gasta bestamente, de losing farther, losing faster a perca mais rápido, com mais critério); diante do encontro que quase parece fortuito entre mistério/sério/austero/mistério colado em mesmo grau e intensidade a master/disaster/fluster/master. E outra vez leio em voz baixa, e em voz alta, e corro ao espelho, e saio à varanda e quase outra vez chamo o vizinho para que também ele possa ouvir. Apoio e companhia, e as cores tingindo-se de palavras diante do escuro da noite.


A arte de perder não é nenhum mistério;
tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subsequente
da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

- Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.

E vou e volto entre uma e outra, até que de repente meus dedos se desentorpecem e deixam escorrer e escapar as palavras que trago contidas, retidas, como se usassem um escafandro nessa água toda que de repente me inunda e se recusa a sair. Talvez sejam lágrimas, mas do lado de dentro parecem rios caudalosos. Saem assim, numa dose de serenidade inaudita:

Perde-se de vista o olhar encontrado.
Perde-se da mão estendida aquela que a preenchia.
Perde-se o risco da perda na tentativa.
Perde-se o sentido.
Perde-se o perdido.

Perde-se o centro dentro do espelho.


Perde-se o reflexo no escuro da retina.
Perde-se o outro à entrada da alma.
E ganha-se tudo quando a vida é absolvida e o amor inalterado.


Agora, sim, posso virar-me para o lado e recomeçar a tradução que devo terminar. Mãos dadas com a desinquietação que chegou de presente, e varreu o medo e a dúvida para o lado de fora da porta.




21/11/2010

Do intraduzível

Traduzir tem variadas utilidades. Mesmo que às vezes seja possível ligar uma espécie de piloto automático, na maioria é indispensável parar, absorver, ler de novo, apoiar-se quem sabe no dicionário de sinônimos abandonado na prateleira lá de cima. Nem sempre é fácil encontrar a palavra certa, a tradução exata. Quando o texto é técnico, vá lá, mas quando tende ao literário, ao fazer-se arte através da palavra, fica difícil passar adiante.

Há textos em que se aprendem coisas novas. As descobertas por vezes ocupam tanto espaço que é fácil esquecer o que era mesmo que se fazia - tentar ganhar a vida traduzindo. Usa-se o tempo para divagações sem fim, técnica da qual este texto é um bom exemplo, indiferente aos arquivos que se acumulam na caixa de “a traduzir”.

Alguns (muitos) anos atrás, fiz algumas traduções para a revista Casa & Jardim. Alguns artigos sobre paisagismo, algo sobre reciclagem já naquela época, linguagem coloquial fluente, fácil de entender e de traduzir. Numa das matérias, sobre flores (estava a primavera por perto), apareceu-me um “pensée sauvage” pela frente, que eu demorei um tempo a desenvolver dentro de mim. Digo desenvolver, porque algumas palavras desenvolvem-se, desenovelam-se, criam algo parecido com uma raiz dentro de nós antes de se lançarem na língua para a qual se pretendem traduzidas. Essa foi uma delas – gostei da sonoridade, da ideia de “pensamento selvagem” que com certeza não seria a tradução correta para os futuros leitores jardineiros... Fui à procura de quem entendia. Cheguei ao nosso “amor perfeito”, que é a tal flor, nomeada na nossa língua. Essa descoberta tomou-me é claro ainda mais tempo - fiquei encantada com a possibilidade de que o que para nós é um amor perfeito para um francês seja um pensamento selvagem. Pensem um segundo – é de ficar muito tempo pensando!

Há ainda aqueles textos em que as palavras são completamente e de fato intraduzíveis. Quando isso acontece, há duas possibilidades: ou o autor não soube mesmo se expressar direito (e você que dê seus pulos para entender o que ele mesmo parece não ter entendido que queria dizer), ou soube expressar-se tão bem que chega a se materializar ao seu lado e você imobilizado pelo terrível que soa qualquer escolha – querendo ou não, sempre se perde.

No fundo, no fundo, não há grandes diferenças entre traduzir e sentir. Há os sentimentos que entram no automático: não se pensa muito neles, fazem parte, aí estão. Há os que nos dão um susto – e ainda ocupam tempo, espaço, energia, dão-nos voltas e voltas e demoram a sair de nós com autonomia. São pensamentos selvagens vestidos com as roupas dos amores perfeitos.

E há os intraduzíveis, divididos também naquelas duas possibilidades: aqueles que não se explicaram e aqueles que, por meios incomuns, se explicaram tão bem que nos imobilizam. Esses, palpitam ao nosso lado, às vezes com força, outras apenas insistentemente. Somente roçam a nossa pele e deslizam os olhos pelos contornos da nossa sombra. Ainda não encontrei outra solução a não ser respirar e entrar num outro estado. Metros acima deste nosso, caracterizado pela força da gravidade, vibram com a leveza de um arco, entram e saem de nós sem portas e sem travessas, fluem por entre as nossas células como vento que nos atravessasse sem criar cadáveres. A esses intraduzíveis sentimentos, como com as palavras, imagino um dia encontrar-lhes a tradução perfeita, o espaço exato, e por isso esforço-me em guardá-los onde nada em mim os atinja, para que, quando possam, me atravessem com a simplicidade de um pássaro liberto.