Mais dia menos dia, serei como essas pessoas que acordam e se lembram dos sonhos, e os anotam em cadernos que mantêm à cabeceira da cama. Por enquanto, fico feliz quando algumas imagens esparsas se agarram aos limites da memória, e, de repente, a meio do dia, no transplante de uma muda, ou no fluxo de água de uma mangueira que rega, beliscam-me com delicadeza o sentido da lembrança. Às vezes consigo deixá-las libertas à minha volta, símbolos que ainda não significam. Não sei então se me lembro ou se me crio, mas parece quase que sonho acordada o sonho que sonhei quando dormia. Num dia como esse de que falo, sonhei que era um cavaleiro andante, parado às margens escuras de um rio de caudal sereno. O cavaleiro que eu era, montado no cavalo que eu era também, virou-se por entre as árvores e disse-me assim:
"O que faço, o mais das vezes, é levar meu cavalo até um destes recantos, para que sacie sua sede e revigore seu espírito. Nada mais faço além: a tarefa desta minha vida é dar de comer e beber a este que em mim se apoia e de quem meu sustento depende. É ele quem decide para onde os nossos passos se encaminham. Anteontem, um moinho. Ontem, a campina vazia. Hoje, vejo ao longe a torre do campanário de uma igreja. Ao contrário do que pensas, os ninhos das cegonhas são recentes e estão vazios, porque o Tempo é fato concreto, e sob ele riscamos passos amplos. Creio que hoje pernoitarei sob um teto.
O dia de amanhã desperta lento. Retorço meu corpo no colchão de palha amarelada. As hastes duras marcaram-me as costas, sinto seus vincos desenhados ao espreguiçar-me. À porta, a fila de sempre. Há sempre quem acredite que por ser cavaleiro, e errante, me engano menos com o que se vê do mundo. Não sabem que eu propriamente nada vejo. Pedem-me conselhos, choram-me temores, entregam-me segredos, procuram-se dentro de mim consolo, esperança, esse brilho que perdem (dizem) a cada trovoada que lhes fustiga as costas.
Também esta é a minha vida. Andar sobre as vidas alheias, desembaraçá-las das teias que o Tempo sem uso vai desenhando nas janelas. É o Tempo que se despreza e ignora que lhes ensombrece as vidas. O Tempo não observado, o Tempo desalinhado, o Tempo que se diz passado quando já é futuro maduro. O que lhes falta, e a ti falta da mesma forma, é entrar dentro do Tempo e deixar-te possuir por ele.
Assim que a fila acaba (nunca haverá alguém que se vá sem ser escutado), olho com demora a minha montaria, a sela surrada, o conforto do trote no couro curtido, os olhos desse cavalo que sou eu e ele num mesmo espaço. Durmo ainda uma noite, se é preciso, ou duas, e faço-me à estrada quando é tempo de ir."
Muitos dos meus amigos hoje em dia respondem-me pequenos gestos que faço com a palavra "gratidão", em vez do costumeiro "obrigado". Se por um lado me agrada (gratidão é uma palavra bonita, e o sentimento de ser grato colore os lábios de sorriso), por outro me incomoda essa rejeição ao dizer-se obrigado. Triste, quando palavras correm risco de morte.
Gratidão deriva do latim gratus. Uma forma que vem lá de muito longe, quando oriente e ocidente ainda se fundiam na língua indo-europeia. Diziam eles gwer- quando queriam elogiar ou dar as boas-vindas. Gwer- transformou-se em gratus, e seu significado foi se transmutando até gerar o corrente: algo agradável que se agradece. Dá-se as boas-vindas a uma ação do outro que nos é agradável. Por isso o sorriso nos lábios, acompanhado do coração aquecido.
Obrigado também nos chega via latim. Obligare. Palavra composta por ob e ligare. Ou seja: unir (ou atar) a. (Assim como o re-ligare é ligar-se novamente a algo, e dele recebemos como herança a palavra religião.) Quando dizemos obrigado, unimo-nos a alguém, um alguém com quem temos agora uma relação de laço de retribuição. Pressupõe que aquela graça que recebemos (e pela qual somos gratos) se desdobrará em algo que entregaremos nas mãos de quem nos fez bem.
Eu gosto de dizer obrigada. Muito, até. Gosto dessa criação de vínculo, dessa sensação de que algo em mim se liga e ata ao outro, e me faz entrar em relação. Deixo a gratidão dentro de mim, naquele lugar luminoso onde vivem as boas-vindas àquilo que vem por bem, e expresso-a através do meu obrigada, que quer levar até o outro o mesmo bem que ele fez em mim. Ou então dar graças, pela existência minha e do outro, pela possibilidade do encontro - que nos faz criar esse vínculo em que estamos obrigados à construção de humanidade para não sucumbirmos num mundo sem forma. Por isso, em gesto de gratidão, eu digo: obrigada.
... mas quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro, brota é depois. (GR)
Facebook, dizia eu hoje a uma amiga, é uma fábrica de neuroses. Nunca se sabe ao certo por que aquela pessoa curtiu aquela sua postagem, ou por que passou por ela ignorando-a. Dentre as pelo menos nove possibilidades, escolhe-se uma, duas, e deduz-se um nunca acabar de motivos para a bendita curtida, ou não curtida. Sobretudo quando a distância é imensa, e separa os olhos dos olhos, criando na sua imprecisão não sonhos, mas fantasmas, essa ferramenta assume o seu lado pactuado com as forças sombrias e invade-nos o dia. Por isso, melhor afastar-se dela, de tempos em tempos, e optar pelo contato que se materialize real, disponível, feito de tato e de afeto.
Porém, justamente essa amiga publica em meu mural um trecho de Guimarães Rosa que me faz levitar para fora da minha infinitamente pequena visão, e dar graças pela existência facebookiana. Desse recorte que ela me oferece, faço eu meu próprio recorte: aquele que abre este texto.Que fala de amor que é destino dado. Destino maior que o miúdo. Um amar inteiriço fatal. Carente de querer. Faceador de surpresas. Amor que primeiro cresce, e "brota é depois".
É Riobaldo quem fala, esse homem tomado de des-serenidade ao perceber-se movido em amor pelo companheiro Diadorim. Depois do espanto, talvez a vontade de correr ao encontro e o movimento contrário, porque esse amor inteiriço e fatal sente-se também proibido (até onde os olhos de Riobaldo ainda alcançam), amor em des-padrão, amor que arrebata e aparece repentino, e não há garantias, nem salvaguardas, apenas caminho a seguir. Isto, quando se escolhe seguir, sabendo que esse seguir demanda ser pleno e inteiro. Se não, é como ser desleal consigo mesmo. Se não, é como dizer-nos a nós mesmos que a vida pequena e sem relevo, do tamanho do miúdo e atrevendo-se aos destinos ofertados pela metade, é a vida que queremos.
Só mesmo lendo Grandes Sertões para saber os caminhos que percorrem Riobaldo e Diadorim, e por quais palavras, sabor e carne e pedra desse homem feito escritor que é Guimarães. Mas esse instante de desatino perplexo, tão imenso e tão libertador, esse reconhecimento de um sentir maior que o miúdo, é um júbilo que quero levar para o meu adormecer. Seja como forma de transcendência. Seja como instrumento de criar humanidade. Seja para salvar-me os sonhos de acordarem enrijecidos pela covardia do mundo. Ou seja para salvar-me a mim daquilo que, ao saber-se diante de algo maior, atrasa seus passos ou revoga o caminhar. Como uma inadvertida curtida de facebook, é difícil saber o que a palavra alheia, sem o contorno dos olhos nem o calor da pele, realmente diz. Ou, como nas palavras de Riobaldo/Guimarães, "como se o obedecer do amor não fosse sempre ao contrário...".
Diz-me um amigo que a doença da sociedade é a sua incapacidade de emancipação, e não as variadas dependências que nos rodeiam. A incapacidade de pensar por si, de tomar posse da própria vida.
Desconfio que seja uma espécie de semeadura de palavras. Funciona. Como toda semeadura, brota. Multiplica-se em palavras que já li, e em outras que quero ler. Hannah Arendt aparece-me com o seu pensar-condição-humana, essa complexidade imensa tão simples. Aparece-me Steiner e seu pensar-livre. Sócrates com a frase célebre... Vou deixando que se amontoem dentro de mim, sem lugares onde guardar, sem espaços a preencher. Como em receita clássica de bolo, é bom usar os ingredientes à temperatura ambiente. Espero que tudo se acomode a este dia ora quente, ora frio. Tudo isso ainda é só tempero. Faltam os grandes volumes, os espaços solenes.
Não bato demais a massa, esperando que me segrede o que é mesmo que falta. Não falta, diz-me ela, ele já te disse tudo. E tu esqueces-te de que é de uma palavra apenas que necessitas. Sorrio para a massa, pensando eu em outras coisas que precisam apenas de uma palavra. E só por ter me distraído, a palavra que já estava corre atrás de mim.
Emancipar. Ali, logo no começo, antes da poluição do resto, e eu sem dar-me conta. Resisto à vontade de procurar-lhe de cara a etimologia, todo cuidado é pouco ao juntar as claras em neve à massa. Converso comigo, como se conversasse com o bolo pronto fumegando em cima do fogão.
Emancipar, digo-me, pode ser uma extraordinária quantidade de coisas. Pode ser o grito do Ipiranga, o grito de alforria, o quaes-sera-tamen. Um brado, de qualquer forma. Coisa que se dá em um momento. Emancipar pode ser uma ação repousada e cautelosa, uma assinatura em um papel que confere ao outro a liberdade que não tinha. Pode ser desculpa vazia para o (des)encontro com outro: não, não, eu não quero vínculos, não quero amarras. E os braços desfazem os laços, as vozes silenciam as gargantas, os olhos não veem os sonhos, e a liberdade de ação por nós mesmos escorre de uma banheira cheia de possibilidades. Tememos os nós, como se arriscássemos perder domínio próprio, e ficamos nos eus. Todos esses eus que vivem dentro de cada um, lutando pelas suas pequenas sobrevivências. Tudo, como de costume, uma faca de dois legumes.
Agora sim, a etimologia. Suculenta além da conta. Veja: emancipar é uma derivação complexa da palavra mancípio. (Mancípio é uma palavra portuguesa, e significa escravo. Mancípio é também, diz o dicionário, dependente, seja pessoa ou coisa.) Mancípio chega-nos diretamente do latim: é a junção de manus (mão) e capere (tomar posse, agarrar). Sendo assim, um escravo (um dependente) é alguém que foi agarrado, possuído por uma mão que não é a sua. É quando se junta o prefixo ex a mancípio que chegamos a emancipar. Sair, retirar-se. Libertar-se da mão do outro que nos agarra.
Está certo este meu amigo, e pode oferecer comprovação etimológica: emancipar-se é a saída da situação de dependente. Um ato que pode ser brado de um grito só, mas é precedido por um trabalho colossal, doído e desgastante, e seguido por outro de igual tamanho. Porque de uma situação cai-se em outra, e é preciso vigilância para que esse eu que grita por auxílio não nos ensurdeça para o outro. Porque o outro somos nós mesmos refletidos na amplidão do cosmos. É preciso emancipar-se diária e eternamente. Discernir entre o que quer nos agarrar e o que queremos agarrar em nós mesmos, porque é nosso, porque nos pertence, porque em nós vive o conhece-te-a-ti-mesmo como fonte de força e luz, porque é a única forma que temos para nos darmos ao outro da maneira mais verdadeira que podemos. E aceitarmos o que o outro nos dá, sem nos tornarmos escravos, e sem sermos do outro mancípio.
De todas as saudades, as mais imponderáveis são as que começam quando ainda se vive o que representam. Penso com isso nas flores amarelas das azedinhas nas bermas dos caminhos, nas giestas a anunciarem a primavera nas estradas do Alentejo, nas margaridas-do-mar em sua contemplação indiferente do horizonte atlântico. Como eco de passos nas ruas de um bairro secular à meia noite, entram sorrateiras, estendem-se nas redes que encontram, constroem em silêncio seus caminhos em nós, e tudo isso sem que ainda lhes percebamos a existência.
Há os silêncios a meio das conversas. E as conversas a meio dos silêncios. O que não é dito porque não é preciso que se diga, e o que se diz porque é preciso o ar encher-se de embriões de saudade.
Mais ou menos como aconteceu em uma tarde, igual a todas as tardes que reaparecem diante dos olhos, não como se fossem ontem, mas como sendo dias do hoje, eternos agora.
Nessa tarde, que já se anuncia distante porque as saudades estreitam os ponteiros do relógio, há uma mulher sentada à sombra dos beirais da casa. Ao seu lado direito, à distância de oito passos, há duas cadeiras de reclinar vazias. O sol atravessa os espaços que formam as folhas da oliveira próxima. As cadeiras murmuram como se preenchidas. As suas vozes trinam nos bicos dos pássaros acima delas. Brilham no reflexo do sol nas nuvens. Tornam-se matéria na linha do queixo da mulher sentada ao lado da mulher que vê. Na linha do queixo, na curva dos lábios, abertos nesse grito a dizer que nem mesmo quando morremos nos vamos.
A mulher que vê, por não conseguir ver o que vê, fecha os olhos, e deixa que lhe suba garganta acima uma lágrima chamada gratidão. Nada lhe transborda os olhos, porque não sabe se o mundo terá tamanho para o tamanho do que vê. Nessa linha de queixo, nesses lábios em curva, vive ela mesma nas feições da outra, e nesta vivem as feições de quem partiu anos antes. Nesse encontro de tão poucas palavras há um apertar de mãos que as dispensam. São como eternas companheiras, com nada que haja além delas mesmas. Existem sem palavras neste espaço que, tanto quanto as separa, tanto as entrelaça.
Esta é a terra que se agarra à mulher primeira com a força mais tenaz. Porque a quer para si, e porque ela morre-se por dentro em partes. Logo há de atravessar o oceano com o sabor do luto por entre os dentes, um luto que é antes de ser anunciado. Despedaça-se em aberturas d'água, porque é o fim de um começo novo, porque se afasta, dessa cidade e desse mundo que é tão seu que não o consegue conter dentro de si. Afasta-se do rio que a reflete, do mar que a acolhe, da luz que a ilumina, impalpável sobre essa cidade única que alcança o mundo da sua sombra.
E enquanto fecha os olhos e tenta medir o tamanho das coisas inalcançáveis, o tempo que se encolhe e escapa das suas mãos (umas vezes é muito, outras escasso), pede que a vida seja simples, e mais nada. Que as raízes se agarrem ao solo que se tenha sob os pés. Quer seja rocha, quer seja areia, quer seja água, quer seja qualquer coisa onde a vida germine quando parecer terminada.
Estou desde cedo à procura de um rumo de prosa, por entre a procissão de momentos grávidos de crônica que me acompanharam no fim de semana. Há uma multidão de palavras nascendo à minha volta, e para alinhavá-las procuro-lhes os elos. Em todas, a plasticidade com que se trata a vida. A disposição de mudança constante. A metamorfose ambulante. O moldar do cotidiano pelas mãos, como se a vida nos ofertasse vida sem jamais cansar-se.
Para começar, o filme curto (está logo a seguir a este texto) de Eric Aberg, e os Cubos Fantasmas que se transformam a partir dos movimentos das mãos. Mudanças de forma e de aspecto, parecem essências plasmadas em formas regulares. Eric é sueco, e parece entender e gostar bastante de malabarismo. De dentro de seus vários trabalhos, pesco alguém que se chama Paul Cinquevalli. Um polonês-alemão nascido Paul Kestner em 1859. Descoberto aos 12 anos numa apresentação de ginástica por um trapezista já famoso (de quem adotou o sobrenome artístico), Paul juntou-se à companhia, a despeito da vontade de seu pai de que fosse músico. Deduzo que fugiu. Vítima de um acidente no trapézio, que o deixou inapto para as façanhas aéreas logo aos 18 anos, Cinquevalli desviou-se na direção do malabarismo. Transformou-se em um dos primeiros malabaristas a se apresentarem em salões e teatros manipulando objetos do dia a dia, ora prosaicos, como garrafas, guarda-chuvas, pratos, copos, ora estranhos e pesados, como banheiras familiares, cadeiras, mesas. Em 1885 já fazia enorme sucesso em Londres (chegou a apresentar-se diante da família real), onde acabou por se fixar; lá morreu em 1918, no ostracismo que lhe rendeu a sua cidadania alemã. Eric Aberg dedicou boa parte de seu tempo à pesquisa sobre Cinquevalli. Proferiu inúmeras conferências e palestras a seu respeito. Esse, abaixo, é Paul Cinquevalli, fotografado em 1873.
Talvez seja a mobilidade aquilo que os une e que chama a minha atenção. A paixão por transformar o cotidiano e seus objetos e condutas em matéria plástica e moldável. Na mão de Aberg, cubos fixos e sólidos deslizam como água sobre si mesmos, como se a ousadia adormecida nas coisas fosse despertada pela vontade do homem. Desconfio que a máxima de Cinquevalli deva aplicar-se a Aberg também: "para ser malabarista, só existe uma maneira e uma regra. E a mesma coisa se aplica, tenho visto, a qualquer outra coisa na vida: quando a sua mente decidir fazer alguma coisa, mantenha-se nela até que seja feita."
O que poderíamos chamar de persistência ou perseverança. Algo que, de certa forma, nos impele na direção da esperança (isto é, de que os esforços empreendidos deem certo), o que por sua vez nos faz dar entrada nos domínios da fé. Essa, que move montanhas, é a que é capaz de nos fazer duvidar de nossas próprias dúvidas, e por isso mesmo nos mantemos nessa que, segundo o mestre malabarista, é a única regra e a única maneira: persistir até conseguir. Nada mais atual: nesses tempos de overdose de experiências e sensações e possibilidades, persistir e resistir à desistência é coisa vital.
Persistir une a raiz sistere (ficar firme, ficar de pé) ao prefixo pre (totalmente). Persistir é ficar totalmente firme, totalmente de pé. O tempo inteiro. Claro que cansa, claro que é preciso insistir, que nada mais é que repetir um esforço anterior. Perseverar junta o mesmo prefixo à raiz severus, que responde por sério, estrito. Seja nas coisas fáceis, seja nas difíceis, todas as palavras que contêm em sua formação essa raiz firme e de pé, sistere, são quase que imprescindíveis.
A intolerância, em todas as suas formas, põe à prova a nossa persistência, a nossa perseverança, a nossa fé. Está em todos os lados, dos mais expostos aos escondidos. Nasce da ausência do sentimento da fraternidade, da ausência do reconhecimento de nós todos como um único, um único cujo princípio é a existência da diferença como qualidade primordial. Como se eu aceitasse o outro ser igual a mim mesmo justa e especificamente por ser diferente de mim e eu dele. Quando tolero, recebo um estímulo e não tenho para com ele uma reação alérgica. Aceito-o e processo-o. Persisto na percepção da diferença do outro como garantia da minha própria diferença. Como se decidíssemos ler pelo avesso as palavras de Krishnamurti, aquelas em que ele diz que, ao nos nomearmos indianos, ou muçulmanos, ou europeus (ou corinthianos, ou evangélicos, ou umbandistas, ou cariocas, ou antropósofos), promovemos a nossa separação do resto da humanidade, e, ao nos separarmos dos outros por crença, nação, tradição ou ideologia, alimentamos a violência implícita de nos sentirmos em lugar distinto dos outros que não são ou pensam ou creem como nós. Delimitamos e isolamos o nosso espaço quando o nomeamos, e deixamos de pertencer à humanidade, porque a humanidade deixa de pertencer ao nosso espaço, ocupado tão somente por aqueles que são ou pensam ou creem como nós. Na realidade, quando restringimos o nosso espaço, restringimos a presença do outro em nós.
Uma mesa deixa de ser tudo o que poderia ser quando eu a nomeio: mesa. Da mesma forma, assim que me nomeio como forma definida, retiro de mim a existência de tudo que não nomeio para mim mesmo. Reflito-me num espelho esquecendo de que ele é apenas isso (um espelho), e de que apenas todos os espelhos, conectados e permeados uns pelos outros, revelam a humanidade à qual pertenço, e que, portanto, pode me definir. O que permeia os espelhos, e os conecta uns aos outros, é a essência onde se ancora a fé. A fé que persiste na capacidade da humanidade transformar-se a si mesma, a seus rumos e a seus paradigmas. A fé em que consigamos receber os estímulos uns dos outros reagindo a eles de formas novas e multiplicadas. Sem programações antigas e obsoletas, que nos limitem os caminhos de encontro que temos abertos à nossa frente. Todos eles.
Apareceu profunda, ampla e ritmada. Um útero quente. Desdobrou-se em vogais e consoantes, cor de comida recém feita. De fruta madura. De cheiro de mata nas mãos que colhem as ervas.
Segredou em silêncio. Disse do cuidado. Da atenção. Do não resvalar pelas curvas desenhadas o despreparo e a desatenção. Disse da verdade, a própria, a de cada um, intransferível e autêntica. Tudo em segredo, como se soubesse que, se dito em voz alta e ouvido em som breve, o mundo é uma filigrana de neve.
O segredo foi coisa sabida. Mas a neve derrete sem contenção diante dos que não podem ouvir. O segredo em seu assomar mergulha de olhos fechados. E se as palavras roucas rebatem em ouvidos moucos, para que gastar a garganta?
Calou-se, portanto. E no silêncio tornou-se decálogo. A Palavra feito razão. A razão feito ensinamento. A razão como motivo. A palavra quando Palavra.
Nada de profundidade para quem nada à superfície.
Subtrair o peso é cultivar a leveza.
Para não morrer afogado, lavar a alma em solidão.
Espremer a vida quando a extração valer a pena.
Dentre as almas grandes, atenção nas que são pequenas.
Os meus primos foram, durante anos, os irmãos que ainda não tinha. Preencheram as lacunas desses tempos infantis em que as pessoas próximas são a nossa própria vida. Aguardava com entusiasmo e ansiedade a chegada das férias, dos fins de semana, do Natal, o dia iluminado em que eles chegavam e transformavam a minha vida em algo a mais do que apenas a minha vida - inauguravam-se os dias da "nossa vida". Mas a vida tomou os contornos daqueles que se afastam, e afastou-nos uns dos outros, a ponto de parecer que sequer nos reconhecemos.
Mas apenas parece. Porque a mesma vida, nessas maneiras estranhas que tem de nos mostrar abrupta o que é óbvio, sentou-me por estes dias lado a lado com os meus primos, estes meus primos que já não são só crianças e têm vida de adultos, eles próprios como eu a gerarem crianças que em adultos se tornam quando menos esperamos.
O meu pensamento senta-se nesse mesmo lugar nesta madrugada fria e eu estou outra vez sentada ao redor dessa mesa familiar quente, abrigada e segura. Onde as travessas se passam e os talheres se entrechocam e os copos se enchem e esgotam como se não existisse fim e onde há um silêncio por onde se podem ver as almas quando comungam. Há muitos anos não me sentava eu ao redor dessa mesa. E de forma abrupta, diante de mim o óbvio: essa intensa felicidade que vive no podermos voltar, sempre, ao que já se foi, porque não há nada que exista em nós que possa em tempo algum morrer. Somos eternos naquilo que vivemos. E infinitos nesta nossa finitude, porque essa coisa pequena que somos está por todos os lados rodeada de luz que não tem fim.
Devo ao Francisco este almoço. Devo ao Francisco esse tempo pleno, o tempo daqueles que se resgatam naquilo a que sempre pertenceram. E eu, que não lhe soube agradecer quando podia ter certeza de que me ouvia, agradeço-lhe agora, e em dobro: como mais uma prenda que desembrulho num dia d'anos, preciso acrescentar à minha voz a certeza de que ele continua a ouvir-me.
As pessoas começam a ir-se, e a povoarem o espaço do céu. A cada um que parte, invoco a presença dos que já se foram, e como se fossem contas de um rosário, ou convidados de uma festa de boas-vindas, medito em oração cada um dos nomes que tiveram enquanto estiveram entre nós. De olhos fechados, perco-me nesse mundo que sei existir fora do tempo e do espaço. Apenas por efeitos didáticos dividimos o tempo. Não há ontem e nem amanhã no hoje que nos reúne a todos neste espaço absoluto, em que desligo também a distância entre o lá e o aqui.
É esse espaço absoluto que me faz estar agora em Évora, nutrida pela tenacidade das coisas que lá vivem. A tenacidade que nos soergue a cada derrocada, a tenacidade que nos alivia a cada sufocamento, a tenacidade que nos ilumina a cada pedaço de treva que nos ensombrece o céu. Como o tronco que se agarra ao esteio, e por ele sobe, na direção do céu que colheu o Francisco.
É essa tenacidade construída de espírito e alma encarnados que eleva e deposita Francisco em segurança à entrada das portas do céu, sem saber ele que lá atrás, em festa, há uma família à sua espera. Salve Francisco, salve a sua passagem e salve todos nós que ficamos ainda deste lado, sem saber onde e como guardar a memória, a saudade e os tempos todos em que a ausência, como disse a minha tia, for ainda tão presente.
Este dia, mais do que qualquer outro, é teu. Mais do que o dia dos teus anos, ou o dia de Natal, ou as tantas datas que aprendi a festejar pelas tuas mãos. Este dia, dia maior, devo-o a ti.
Devo-te também o gosto pela preparação das festas, mais do que o gosto pelas festas em si. O gosto pelos livros, e o gosto pelo cheiro dos lugares onde se guardam: as livrarias, as bibliotecas, as salas de leitura, os chãos dos corredores empilhados de livros órfãos de prateleiras. O gosto pelas Ilhas, incomensuráveis dentro do teu coração. Devo-te o gosto de inclinar-me sobre o fogão a pensar nos outros, o gosto de ir às compras a pensar nos outros, o gosto de, antes de em ti, pensares nos outros. Devo-te uma generosidade única, sem medidas nem limites. Essas medidas e limites que às vezes (uns mais que outros, mas todos) não sabemos como medir e limitar dentro de nós. Essas medidas e limites que ora apertam ora afrouxam com exagero. Essas medidas e limites com que te ocupaste a vida toda, e foi nas faltas, nas falhas e nos descompassos que mais me foste ensinamento de entrega e presença. Sem medidas, e sem limites.
Dentro do avião, ao teu encontro há algumas semanas, pensava no quanto quisera ser-te o que me tens sido. Mas agora, hoje, à beira dos 40 anos desse dia de Liberdade que me ensinaste a cantar com os olhos em luz, penso que te sou exatamente o que me foste. Sou aquilo que me desejaste, ainda que, à distância desse desejo, possas olhar-me com olhos inquietos, e não entenderes porque caminhos andam os passos que já não guias. Li e fiz carne da minha carne todas as tuas lições de liberdade, e engendrei dentro de mim uma face que não esmorece, nem se cansa, mas é capaz de dizer chega quando o fim se anuncia. Isso, no lugar que me cabe, é ser livre a olhos plenos.
Talvez te dissesse hoje que terias feito melhor se pensasses mais em ti do que nos outros, mas que sei eu dos caminhos que nos levam aos lugares onde é suposto irmos? Sei, ao ler esta carta da Clarice Lispector que me caiu nas mãos por estes dias, que é tarefa delicada mexer sem cuidado naquilo que somos, ainda que não nos agrade ou ainda que não saibamos o que fazer com essas coisas desconhecidas que assomam dentro de nós sem aviso nem pedido. Dizias-me, da última vez, coisa semelhante. E o teu olhar refletia-se sério nas paredes imaculadas à nossa volta.
Dizias-me, com palavras do teu âmago, isto que me diz Clarice: até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual é o defeito que sustenta o nosso edifício inteiro. Não sei quais defeitos quiseste cortar em ti, e talvez tenhas pensado, num súbito, que o teu amor pelas festas, e pela sua preparação, o amor pelos livros e pela face livre da verdade, esse amor pelos outros antes que o amor por ti mesma, fossem defeitos. Mas pergunto-te, como sei terás perguntado ao espelho diante de ti: será em algum tempo o amor defeito?
Talvez possas ainda ter pensado que o teu amor à liberdade pudesse revestir-se dessas peles com que se aderem os defeitos, e talvez tenhas pensado que deverias ser e viver como outras mulheres viviam e davam de crescer a seus filhos. Talvez pensasses não ser aquilo que esperavam de ti. E talvez não fosses. Talvez nunca tenhas sido. E eu agradeço-te por, mesmo a meio desse meio em que não te decidiste a ser o que querias ser, teres me legado esta sensação interna que me diz "sê" antes de me dizer "considera".