Os meus primos foram, durante anos, os irmãos que ainda não tinha. Preencheram as lacunas desses tempos infantis em que as pessoas próximas são a nossa própria vida. Aguardava com entusiasmo e ansiedade a chegada das férias, dos fins de semana, do Natal, o dia iluminado em que eles chegavam e transformavam a minha vida em algo a mais do que apenas a minha vida - inauguravam-se os dias da "nossa vida". Mas a vida tomou os contornos daqueles que se afastam, e afastou-nos uns dos outros, a ponto de parecer que sequer nos reconhecemos.
Mas apenas parece. Porque a mesma vida, nessas maneiras estranhas que tem de nos mostrar abrupta o que é óbvio, sentou-me por estes dias lado a lado com os meus primos, estes meus primos que já não são só crianças e têm vida de adultos, eles próprios como eu a gerarem crianças que em adultos se tornam quando menos esperamos.
O meu pensamento senta-se nesse mesmo lugar nesta madrugada fria e eu estou outra vez sentada ao redor dessa mesa familiar quente, abrigada e segura. Onde as travessas se passam e os talheres se entrechocam e os copos se enchem e esgotam como se não existisse fim e onde há um silêncio por onde se podem ver as almas quando comungam. Há muitos anos não me sentava eu ao redor dessa mesa. E de forma abrupta, diante de mim o óbvio: essa intensa felicidade que vive no podermos voltar, sempre, ao que já se foi, porque não há nada que exista em nós que possa em tempo algum morrer. Somos eternos naquilo que vivemos. E infinitos nesta nossa finitude, porque essa coisa pequena que somos está por todos os lados rodeada de luz que não tem fim.
Devo ao Francisco este almoço. Devo ao Francisco esse tempo pleno, o tempo daqueles que se resgatam naquilo a que sempre pertenceram. E eu, que não lhe soube agradecer quando podia ter certeza de que me ouvia, agradeço-lhe agora, e em dobro: como mais uma prenda que desembrulho num dia d'anos, preciso acrescentar à minha voz a certeza de que ele continua a ouvir-me.
As pessoas começam a ir-se, e a povoarem o espaço do céu. A cada um que parte, invoco a presença dos que já se foram, e como se fossem contas de um rosário, ou convidados de uma festa de boas-vindas, medito em oração cada um dos nomes que tiveram enquanto estiveram entre nós. De olhos fechados, perco-me nesse mundo que sei existir fora do tempo e do espaço. Apenas por efeitos didáticos dividimos o tempo. Não há ontem e nem amanhã no hoje que nos reúne a todos neste espaço absoluto, em que desligo também a distância entre o lá e o aqui.
É esse espaço absoluto que me faz estar agora em Évora, nutrida pela tenacidade das coisas que lá vivem. A tenacidade que nos soergue a cada derrocada, a tenacidade que nos alivia a cada sufocamento, a tenacidade que nos ilumina a cada pedaço de treva que nos ensombrece o céu. Como o tronco que se agarra ao esteio, e por ele sobe, na direção do céu que colheu o Francisco.
É essa tenacidade construída de espírito e alma encarnados que eleva e deposita Francisco em segurança à entrada das portas do céu, sem saber ele que lá atrás, em festa, há uma família à sua espera. Salve Francisco, salve a sua passagem e salve todos nós que ficamos ainda deste lado, sem saber onde e como guardar a memória, a saudade e os tempos todos em que a ausência, como disse a minha tia, for ainda tão presente.
O meu pensamento senta-se nesse mesmo lugar nesta madrugada fria e eu estou outra vez sentada ao redor dessa mesa familiar quente, abrigada e segura. Onde as travessas se passam e os talheres se entrechocam e os copos se enchem e esgotam como se não existisse fim e onde há um silêncio por onde se podem ver as almas quando comungam. Há muitos anos não me sentava eu ao redor dessa mesa. E de forma abrupta, diante de mim o óbvio: essa intensa felicidade que vive no podermos voltar, sempre, ao que já se foi, porque não há nada que exista em nós que possa em tempo algum morrer. Somos eternos naquilo que vivemos. E infinitos nesta nossa finitude, porque essa coisa pequena que somos está por todos os lados rodeada de luz que não tem fim.
Devo ao Francisco este almoço. Devo ao Francisco esse tempo pleno, o tempo daqueles que se resgatam naquilo a que sempre pertenceram. E eu, que não lhe soube agradecer quando podia ter certeza de que me ouvia, agradeço-lhe agora, e em dobro: como mais uma prenda que desembrulho num dia d'anos, preciso acrescentar à minha voz a certeza de que ele continua a ouvir-me.
As pessoas começam a ir-se, e a povoarem o espaço do céu. A cada um que parte, invoco a presença dos que já se foram, e como se fossem contas de um rosário, ou convidados de uma festa de boas-vindas, medito em oração cada um dos nomes que tiveram enquanto estiveram entre nós. De olhos fechados, perco-me nesse mundo que sei existir fora do tempo e do espaço. Apenas por efeitos didáticos dividimos o tempo. Não há ontem e nem amanhã no hoje que nos reúne a todos neste espaço absoluto, em que desligo também a distância entre o lá e o aqui.
É esse espaço absoluto que me faz estar agora em Évora, nutrida pela tenacidade das coisas que lá vivem. A tenacidade que nos soergue a cada derrocada, a tenacidade que nos alivia a cada sufocamento, a tenacidade que nos ilumina a cada pedaço de treva que nos ensombrece o céu. Como o tronco que se agarra ao esteio, e por ele sobe, na direção do céu que colheu o Francisco.
É essa tenacidade construída de espírito e alma encarnados que eleva e deposita Francisco em segurança à entrada das portas do céu, sem saber ele que lá atrás, em festa, há uma família à sua espera. Salve Francisco, salve a sua passagem e salve todos nós que ficamos ainda deste lado, sem saber onde e como guardar a memória, a saudade e os tempos todos em que a ausência, como disse a minha tia, for ainda tão presente.