14/05/2012

Exercício: as cartas

"Armindo,

Tudo isto que abres em mim, nada mais é do que pura entrega. Porque não cabe em mim tudo o que sinto, preciso entregar-te. Porque não há espaços vazios. Porque as superfícies todas que trago em mim são o teu corpo, o ar em volta é o teu hálito e eu mesma não respiro senão o líquido dos teus olhos. E porque a distância invade-me como as ondas do mar, como a areia da infância a arranhar-me as costas às margens da lagoa, a corrente na direção do mar a querer arrastar-me, e a areia a querer-me manter à margem, na margem, num destino fixo. Como se tivesse combinado algo comigo, mas eu não me lembrasse.

E eu mergulho, e eu deixo-me levar, como folha desfeita, molécula de entregas secretas expostas à água salgada. Todos os dedos que me vibram recobrem-se da tua pele, e nem grito, nem me debato, porque sou em mim o que és. E não sei como conter esta avalanche, e nem quero, e a vida que vivo acena-me de outra cada vez mais longe margem, um eco do que deixo de ser desde que as tuas mãos me erguem cavernas desde então meu refúgio. Diz-me: quem é esta que afloras e não conheço, esta pedra escavada e atravessada de sangue, granito líquido?

Tua,
Isaura"


(Tempestade de neve no mar, William Turner)

Amigos no feriado


À Vera e ao André

Visito um casal de amigos, no último feriado. Amigos antigos, com aquela qualidade rara de nos olharem nos olhos e nos verem as pontas da alma. De perceber nuances que outros, mais recentes, podem nem ver passar. De sentir as intranquilidades que assolam os barcos antes do embate nas rochas. Por isso, não é preciso dizer nada, e em um instante, como em volta de uma fogueira, um céu de estrelas iluminando as ideias, é dito o que precisa ser ouvido, e é só.

Olho meus amigos e penso no quanto a maneira como a vida se escolhe se modifica ao longo dos anos; o quanto depuramos e transgredimos as certezas de um dia para vivermos o seguinte; o quanto nos afirmamos a partir de negações internas; e o quanto gostamos, ou não, do caminho que seguimos. As escolhas modificam-se, assim como a maneira como olhamos em volta para o outro, para nós mesmos; a maneira como consideramos a entrada do outro na nossa vida, o como nos abrimos em espaços que sequer sonhamos antes para que ele se faça em nós. Esse outro que nos reconstrói, que nos oferece com um sorriso de ternura a sua visão de mundo, completando e melhorando a nossa; esse outro que é nossa possibilidade de reconstrução da própria humanidade, nossa salvação, renovação da capacidade de amar, enriquecimento mútuo.

Com todos os rombos, todas as tempestades, todas as marés que sobem e descem, é um alento passear no passado e encontrar antigos futuros transformados em presente real. Mesmo com as rugas, as marcas, as dores todas do corpo que não se reconhece, somos mais que um simulacro do que éramos antes. Olhar para amigos antigos, perceber dentro dos braços o mesmo abraço, dentro dos olhos o mesmo sorriso, rir das aventuras passadas e perceber o quanto vive de ingenuidade dentro das nossas certezas: em tudo, formas de reviver e olhar a própria presença, acendendo a essência que dormia.

(Foto: Estância Ecológica Canto da Garça, em Juquitiba, onde moram a Vera e o André.)


Exercício - no analista


Júlia precisa inventar-se, nos últimos tempos, várias vezes por dia. É o que diz a seu analista, nessa sessão que começa a meio de um dia de névoa que parece não se desfazer nem na água do rio que corre ao lado do prédio do consultório. Júlia levou consigo, para dentro do elevador, uma alma enevoada, com ela subiu os 6 andares nessa máquina lenta de ferro, e com ela entrou na sala estreita. Inventar-me olhos, pele, percepções do mundo que de repente não se referencia a si mesmo, diz ela. Porque abandono seguranças antigas e nesse de repente do mundo mudado, pergunto em volta onde o apoio do pé? Não sei se um começo de queda ou se um braço estendido agarrado à outra margem do abismo. Que momento é este? Não sei se corro no vazio, alimentando meus passos da esperança (a doce ilusão) de correr em terra firme, e estou prestes a cair e não sei, e de repente de novo cada vez mais longe dos galhos sobreviventes das árvores, aqueles estendidos desde a margem aos náufragos de passagem. Que momento é este?

E seus braços fazem os gestos dos galhos quando perguntam ao rio e seu rosto molhado de lágrimas é o próprio rio na passagem desse destino desconhecido. Júlia afasta o cachecol mas o frio diz-lhe que mantenha o casaco junto ao corpo. Não está frio, mas ainda assim Júlia sente frio.

E o analista intervém. Inventar no sentido que lhe confere a palavra raiz: criar a partir dos restos do que morreu. Mas Júlia diz, não reconheço com facilidade as mortes à minha volta; nem com facilidade lhes levo as velas de defunto, as ladainhas das carpideiras, o caixão, os olhos fechados, as mãos contritas unidas no centro do peito oco. Olho para dentro delas e devolvo-me um vazio, um não ser que não sei se alívio se tormento. Se não estão aqui, para onde foram, essas mortes? E um vazio de silêncio opaco estende-se entre o divã que é poltrona e a cadeira que é cadeira, onde o corpo vestido de cinza do analista a olha com compaixão.

Eu sei, diz Júlia antes de levantar-se e desistir da sessão e dizer que não sabe se voltará um dia, ou se essa noite será o seu último passado, eu sei: crio-me a partir dos restos do que morreu em mim, e nessa arqueologia da alma, vejo que outras coisas morrem, e quero correr com elas para a reciclagem, mas elas dizem-me que querem-se mortas e enterradas, e que eu obedeça o escorpião que me rege e lhes dê o que é da sua natureza. A morte. E o desenho dos seus dedos na maçaneta ainda está lá de manhã, quando o analista desce as escadas para comprar pão e leite. Quando voltar, dentro do elevador, sentirá a presença da névoa, e os menores cabelos da sua nuca se arrepiarão de frio. E a maçaneta devolverá o calor à sua mão, ao entrar na sala estreita e sentar-se na cadeira que é cadeira, vestida de cinza como ele próprio.

(Desenho de Ale Félix, que não tem nada a ver nem com a Júlia, nem com seu analista.)

12/05/2012

Dos diários III


"As coisas que estão mortas aliviam-me as próprias curvas, os abismos em que se precipitam os cada vez mais cheios rios que escorrem sem tempo por dentro das minhas veias. A cada cair, aumentam o seu caudal, o tamanho da sua força. A minha alma, suspensa na margem, está toda molhada da sede que avança.

As coisas que estão mortas são silêncio. Nada as interrompe nem altera. Jazem parecendo quietas, invisíveis debaixo do chão, sem ar, sem tempo, sem escolhas.

As coisas que estão mortas só foram, e as marcas que deixaram são tão invisíveis quanto elas, agarradas à terra debaixo do chão.

As coisas que estão mortas não se ferem, não se movem, já não são, e ainda assim sente-se a maciez do toque do que foi e permanece no que é."
(Dos "Diários de Hope", a personagem em busca de contorno)

11/05/2012

Exercício - o sonho


A mulher acorda com uma palavra entre as pálpebras. Lezíria. Vê as letras através dos cílios, dentro daquele tempo diminuto que vigora entre sono e vigília. Nem sabe exatamente se é assim que se chamam as margens transbordadas dos rios das planícies quando chove além do previsto. Ou quando chovem as águas certas no tempo certo. 

Lezíria. Há um traço de infância por entre os espaços das letras.

Deixa-se estar na cama, cortinas ainda fechadas, um azul filtrado pela cambraia branca. Dentro do seu sono há um árabe campino por trás da palavra – a galope, barrete vermelho, sua vara de tocar o gado erguida como lança preparada para a guerra. Não se lhe veem os olhos, nem a boca, transida num esgar amargo de vida mal preenchida. Atravessa o campo alagado, os cascos respingando água nos olhos entreabertos da mulher que ainda agora dormia. As margens do rio não param de transbordar, a lezíria inundada, o rio escorregando pra dentro da terra, sem força, sem peso, sem pressa. O mais fértil dos mundos debaixo d´água.

Quando as águas refluem, a terra encharcada abre-se à semente. Sua e contrai-se, a água em si que se seca, a terra magra, escura, como ossos que se desenterraram e secam ao sol. O campino toma emprestado o vigor que o rio lhe concede, e atravessa os campos cultivados com tranquilidade e orgulho, seu cavalo de cabeça baixa sem nada respingar.

A mulher vê-se atravessando a ponte de ferro por cima da lezíria e do rio. É ela, mas está magra e ossuda como a terra. Reduz a velocidade a meio, os campos alagados a seu lado virando-se sobre si mesmos para vê-la passar. A mulher freia e para. Desce e anda pela margem; a chuva que já se sente inchando o caudal do rio, as beiradas de bocas abertas à água que se anuncia. A colheita está feita e no campo só sobra o restolho amarelo queimado de sol. A mulher anda sobre ele, e ele estala sob seu peso. Fios de água escorrem por entre as hastes quebradas; molham-lhe as pernas e fazem-na voltar à ponte.

As cortinas ondulam na janela, abandonando a sombra do campino que já é passado. A mulher levanta-se, o lençol em desalinho, os olhos encharcados como lezíria em flor. Como um dia após o outro, a chuva, a semente, a colheita.

08/05/2012

Notícias do canteiro

Perguntam-me sobre a obra. Aliás, perguntam como ficou. Como se alguma coisa por estas bandas estivesse no ponto de "ficar". Só rindo, mesmo! Não: tudo movente, nada fixo, como queria David Mourão Ferreira, o poeta português perito em lapidação de palavras e formas. Lapidar a vida: deve ser essa a lição que preciso aprender.

O ponto da obra, então. Ontem o céu se entalou entre os palitos de laje. Faltaram as escoras, por isso mais um atraso no advento do fim. Em breve (espero) haverá um teto, mas por enquanto o que nos cobre é esse céu azul pleno, semeado da esperança de que não chova. Roupa? Não se lava mais, perdeu-se o varal, a tomada... Lavar o chão? Sem sentido, igual lavar calçada. Deixam-se as coisas como estão. Assim como a alma, atropelada pelos carrinhos de cimento que circulam até mesmo de noite e até mesmo quando o pedreiro não vem, espremida por todos os lados da vida.

Estranho viver num canteiro de obras. Mesmo sem mania de limpeza, irrita o pó por todo lado, brincando de esconde-esconde com o bom humor, atrás dos tijolos que aguardam a parede que não vem, a fome, a sede, tudo agoniado do lado de dentro da gente. Um teste de paciência para o tempo que passa tão devagar, o dia de amanhã custando a chegar.

05/05/2012

A cidade nova X - o presente

Dona M. fez aniversário dia 25 de abril. Achei tão simpático (e revolucionário) fazer aniversário nessa data que resolvi visitá-la e levar-lhe um presente, e ainda umas flores. Flores, por aqui, é fácil encontrá-las; a duas quadras do cemitério, não faltam floriculturas em volta. Dia bonito, vou a pé escolher uma orquídea chocolate, suas flores miúdas delicadamente traçadas a marrom escuro. Bonito demais. E grande. Sorrio satisfeita, não tem coisa melhor do que dar presentes aos outros.

Volto para casa e embrulho um de meus livros. Não tenho papel, então o embrulho será invisível, mas a fita que o amarra fará as vezes do movimento de abrir que um presente demanda. Presentes abrem-se, deixam-se entrar, percorrem-se com os olhos, com as mãos, com a vontade. Deixam-se ficar ali, empoleirados em algum lugar da sala, e a cada vez que a vista pousar neles, quem fez a oferta materializa-se. Oferecer multiplica-se em quem sabe receber.

Dona M. espreita de dentro de casa com um sorriso espantado, e só então me dou conta de que talvez o presente em uma das mãos, o vaso repentinamente descomunal na outra, a visita a essa hora em que ninguém se visita, tudo isso junto, seja demais. E coro, vermelha de súbita vergonha de ter-me preenchido tanto da vontade de agradar ao outro que de repente tenha me perdido dos limites que se respeitam em situações assim. Mas o sorriso estampado de Dona M. não é desse tipo de espanto, mas da vida não lhe trazer presentes e flores todos os dias para diante de seu portão, que ela nem consegue abrir de tão atrapalhadas ficaram as suas mãos. E eu, que tinha pressa, e precisava só dizer-lhe com um gesto o quanto me alegrava e confortava a sua presença na minha vida, vejo-me rebocada para dentro dessa casa desocupada de quem já morreu. Passeio pelos quartos que se mantêm como se seus ocupantes fossem voltar a qualquer momento, como se os filhos que se foram pudessem sonhar ainda nesse travesseiro macio à meia luz, como se o marido morto pudesse perambular ainda e criticar-lhe as compras feitas sem raciocinar, diria ele. Dona M. conduz-me pela mão e eu deixo-me ir, porque eu não gosto de não deixar-me ir. Permito que entre em meu tempo e o desalinhe, que agarre a minha mão e a faça percorrer a sua vida, o seu passado, a colcha de presente que ganhou da nora viúva e de que não gostou, mas usará porque não importa o seu gosto, importa retribuir. Porque presentes, diz-me ela, são pedaços do outro, e pedaços do outro guardam-se para que o outro não se falte. Filósofa, minha vizinha.

Dona M. gosta tanto de receber presentes quanto de os dar. Mostra-me um freezer cheio de doces que não pode comer por causa da diabetes, e que faz para dar aos outros. Um armário cheio de panos de prato debruados a crochê, para quando perceber que alguém pode gostar. E conta-me tantas histórias que perco a hora, perco o compromisso, chego atrasada. Mas passo o dia sorrindo, pensando em Dona M. que pensará em mim no seu caminho da sala pra cozinha, e tropeçar nas flores, e da cozinha pro quarto, quando se deitar à noite, colocar seus óculos e me deixar embalar-lhe os sonhos.


26/04/2012

Side writing

O mapa da cidade em que nasci, Caldas da Rainha, é cheio dessas encruzilhadas surpreendentes a que chamamos (ao menos, em Portugal) becos. Beco do Forno, Beco do Estragado, Beco do Arneiro, Beco da Fé, Beco da Fonte, Beco do Borralho. Não são lugares de passagem, mas de ficagem. De entrar e sair pelo mesmo lugar. Não conduzem, são caminhos sem saída. Exatamente como alguns dos textos que me sucedem a meio do processo de criar e que não vão para lugar algum, sequer pertencem. Apenas aparecem e ficam, e me deixam estar quieta a observar detalhes de uma cidade interna que se constrói aos poucos, da memória dos tempos, da vida que pulsa por baixo do que é aparência. É de becos cheios de letras que a minha escrita tem se alimentado ultimamente.

E porque a palavra beco não agrada a muitos (já percebi), decidi chamar a esse processo de side writing. Assim, em inglês, que é como pensei no assunto, e porque não consigo chegar a nenhuma tradução que me deixe satisfeita. Side writing pode ter um efeito extraordinário sobre a criação de texto. Da seguinte forma.

Imagine-se submerso num ambiente qualquer de ficção - sendo, portanto, ficcional, situa-se naquela linha nem tão imaginária entre a sanidade e a loucura. As coisas são, mas não existem. As pessoas vivem, mas ninguém ainda as vê. As situações acontecem, mas não são palpáveis. E por aí vai.

Você está, então, imerso nesse ambiente paralelo à sua vida normal, aquela que inclui (existentes, visíveis e palpáveis) filhos, companheiro, amigos, supermercado, mecânico, almoço e jantar, roupa, vassoura, escritório, vizinhos, ruas, dentista, escola e esse looongo etcétera que você já desenhou para você mesmo. Esse ambiente outro, o da ficção, que se insinua por entre as esquinas dessa vida de fato, curva a sua vida como uma bola arremessada com efeito; faz com que o movimento usual se desvie um tudo nada, mas o suficiente para transformar-se em estado de alerta, inclinando imprevisível e irremediavelmente tudo o que você vive. Gerando angústia e premência. E assim se vai, o dia inteiro perambulando de uma janela a outra, inconformadas ambas de que não se lhes preste atenção plena.

Buscando solução para viver nesses dois universos sem prejuízo a nenhum deles, tentam-se formas de organização: estabelecem-se horários, rotinas, métodos e locais para a revelação completa dessa vida quase e tão real quanto a outra. Porque é isso que o universo ficcional quer: revelar-se e ser revelado. A todo custo. E de repente, naquele minuto tão esperado e aguardado, de repente de repente de repente não há nada dentro dessa vida para ser dito. Assim que há tempo, desaparece. Há só um branco, muito bem distribuído entre mente, papel e tela. E fica a ficção prejudicada, as personagens de boca aberta sem saberem as próprias falas, as ondas do mar paradas, os ciclistas espantados porque as suas pernas não pedalam. O coração, que se queria calmo e satisfeito, num turbilhão aflito.

É nessa hora, descubro nos últimos tempos, que é preciso sair da estrada principal e procurar os viecu - as vias pequenas, os becos, os caminhos que parecem não levar a lugar algum. Por isso esses side writing, por isso sair do arquivo principal em que se sucedem os capítulos da história, e ganhar tempo com detalhes e recortes tão ínfimos quanto uma carta de amor que se escreve, a resposta que se recebe, o arrumar de uma mala, uma página de diário, cenas do cotidiano de personagens que se nos colam ao corpo como visgo.

Os textos que se produzem nessa bola de efeito que decido chamar de side writing ficam assim, quietinhos. Lado a lado com a autoestrada em que a ficção se transformou. Alimentam-na, permitem que respire, que se afaste de si mesma para perceber-se melhor. Quase como se a deitássemos no divã, e puséssemos suas personagens em fila diante da porta do analista. Esperam ajuda para serem descobertas, para entenderem as situações todas que lhes tiram véus e cortinas da frente. Cada texto que pula dos meus dedos para a página é, creio, uma sessão bem sucedida.

25/04/2012

Exercício - a mala de viagem

"Acordas-me de manhã, ainda escuro, para que faça a mala. Segredas-me ao ouvido que não esqueça de levar-te - e por isso és a primeira coisa que ponho na minha bagagem. O lugar que elejo para guardar as coisas que não quero perder, a nenhum preço.

Agasalho-te com a toalha com que me enxugarei no primeiro banho em meu destino. Uma toalha densa como as tuas mãos, para que os poros da minha pele se aqueçam na tua lembrança. Uma toalha áspera, que me arranhe e dilacere como o fazem as tuas unhas ao me arrancarem do sono.

Do outro lado, esticadas junto às tuas costas aquáticas e lisas, as roupas com que me vestirei primeiro, quentes do teu corpo que não arrefece. E depois, aqui e ali, o resto. As poucas coisas de que precisarei numa mala para ir a qualquer lugar: uma roupa para o dia, uma outra para a noite. Uma para ir dançar, o sapato que não dói, um outro que levarei para caminhar nas madrugadas da cidade aonde for. Porque sem a tua presença a meu lado meu sono é pouco, minha noite é curta, a cama expulsa-me de seus lençóis. Percorro a cidade noturna, vestida com a roupa que se confunde com as esquinas, que não desafina o coro dos seres que vivem de noite e dormem de dia. Quando a madrugada for atropelada pelo sol, troco-me por uma roupa mais leve, do tecido dos sonhos que tenho acordada.

Um perfume, talvez. Leve, como a aragem que deixas ao passares por mim na direção da porta. Como nos dias em que me acordas e me tiras da cama, dando-me banho para me despedires e para que leve em mim a marca do teu corpo todo, os teus lábios pregados a cada pequena estreiteza da minha pele.

Mas primeiro, antes de tudo, quero e deixo que me acordes. Devagar, lenta e profundamente. Mesmo com os sentidos todos já despregados, fecho os olhos e finjo dormir ainda, para que insistas no meu acordar, e fiquemos ambos inquietos, despertos, sedentos já do dia em que eu voltar.

A mala, essa, pode esperar."