Júlia precisa inventar-se, nos
últimos tempos, várias vezes por dia. É o que diz a seu analista, nessa sessão
que começa a meio de um dia de névoa que parece não se desfazer nem na água do
rio que corre ao lado do prédio do consultório. Júlia levou consigo, para
dentro do elevador, uma alma enevoada, com ela subiu os 6 andares nessa máquina lenta de ferro, e com ela entrou na sala estreita. Inventar-me olhos, pele,
percepções do mundo que de repente não se referencia a si mesmo, diz ela. Porque
abandono seguranças antigas e nesse de repente do mundo mudado, pergunto em volta onde o apoio do
pé? Não sei se um começo de queda ou se um braço estendido agarrado à outra
margem do abismo. Que momento é este? Não sei se corro no vazio, alimentando meus passos da
esperança (a doce ilusão) de correr em terra firme, e estou prestes a cair e
não sei, e de repente de novo cada vez mais longe dos galhos sobreviventes das
árvores, aqueles estendidos desde a margem aos náufragos de passagem. Que momento é este?
E seus
braços fazem os gestos dos galhos quando perguntam ao rio e seu rosto molhado de lágrimas é o próprio
rio na passagem desse destino desconhecido. Júlia afasta o cachecol mas o frio
diz-lhe que mantenha o casaco junto ao corpo. Não está frio, mas ainda assim
Júlia sente frio.
E o analista intervém. Inventar
no sentido que lhe confere a palavra raiz: criar a partir dos restos do que
morreu. Mas Júlia diz, não reconheço com facilidade as mortes à minha volta; nem
com facilidade lhes levo as velas de defunto, as ladainhas das carpideiras, o
caixão, os olhos fechados, as mãos contritas unidas no centro do peito oco.
Olho para dentro delas e devolvo-me um vazio, um não ser que não sei se alívio
se tormento. Se não estão aqui, para onde foram, essas mortes? E um vazio de
silêncio opaco estende-se entre o divã que é poltrona e a cadeira que é
cadeira, onde o corpo vestido de cinza do analista a olha com compaixão.
Eu sei, diz Júlia antes de
levantar-se e desistir da sessão e dizer que não sabe se voltará um dia, ou se essa noite será o seu último passado, eu sei: crio-me a partir dos restos do que
morreu em mim, e nessa arqueologia da alma, vejo que outras coisas morrem, e
quero correr com elas para a reciclagem, mas elas dizem-me que querem-se mortas
e enterradas, e que eu obedeça o escorpião que me rege e lhes dê o que é da sua
natureza. A morte. E o desenho dos seus dedos na maçaneta ainda está lá de manhã, quando o analista desce as escadas para comprar pão e leite. Quando voltar, dentro do elevador, sentirá a presença da névoa, e os menores cabelos da sua nuca se arrepiarão de frio. E a maçaneta devolverá o calor à sua mão, ao entrar na sala estreita e sentar-se na cadeira que é cadeira, vestida de cinza como ele próprio.
(Desenho de Ale Félix, que não tem nada a ver nem com a Júlia, nem com seu analista.)
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