A mulher acorda com uma palavra
entre as pálpebras. Lezíria. Vê as letras através dos cílios, dentro daquele tempo diminuto que vigora
entre sono e vigília. Nem sabe exatamente se é assim que se chamam as margens
transbordadas dos rios das planícies quando chove além do previsto. Ou quando
chovem as águas certas no tempo certo.
Lezíria. Há um traço de infância por
entre os espaços das letras.
Deixa-se estar na cama,
cortinas ainda fechadas, um azul filtrado pela cambraia branca. Dentro do seu
sono há um árabe campino por trás da palavra – a galope, barrete vermelho, sua
vara de tocar o gado erguida como lança preparada para a guerra. Não se lhe
veem os olhos, nem a boca, transida num esgar amargo de vida mal preenchida.
Atravessa o campo alagado, os cascos respingando água nos olhos entreabertos da mulher que ainda agora dormia. As margens do rio não param de transbordar, a lezíria inundada, o rio
escorregando pra dentro da terra, sem força, sem peso, sem pressa. O mais
fértil dos mundos debaixo d´água.
Quando as águas refluem, a
terra encharcada abre-se à semente. Sua e contrai-se, a água em si que se seca,
a terra magra, escura, como ossos que se desenterraram e secam ao sol. O
campino toma emprestado o vigor que o rio lhe concede, e atravessa os campos
cultivados com tranquilidade e orgulho, seu cavalo de cabeça baixa sem nada
respingar.
A mulher vê-se atravessando a
ponte de ferro por cima da lezíria e do rio. É ela, mas está magra e ossuda
como a terra. Reduz a velocidade a meio, os campos alagados a seu lado virando-se
sobre si mesmos para vê-la passar. A mulher freia e para. Desce e anda pela
margem; a chuva que já se sente inchando o caudal do rio, as beiradas de bocas
abertas à água que se anuncia. A colheita está feita e no campo só sobra o
restolho amarelo queimado de sol. A mulher anda sobre ele, e ele estala sob seu
peso. Fios de água escorrem por entre as hastes quebradas; molham-lhe as pernas
e fazem-na voltar à ponte.
As cortinas ondulam na janela,
abandonando a sombra do campino que já é passado. A mulher levanta-se, o lençol em desalinho, os olhos
encharcados como lezíria em flor. Como um dia após o outro, a chuva, a semente, a
colheita.
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