12/05/2012

Dos diários III


"As coisas que estão mortas aliviam-me as próprias curvas, os abismos em que se precipitam os cada vez mais cheios rios que escorrem sem tempo por dentro das minhas veias. A cada cair, aumentam o seu caudal, o tamanho da sua força. A minha alma, suspensa na margem, está toda molhada da sede que avança.

As coisas que estão mortas são silêncio. Nada as interrompe nem altera. Jazem parecendo quietas, invisíveis debaixo do chão, sem ar, sem tempo, sem escolhas.

As coisas que estão mortas só foram, e as marcas que deixaram são tão invisíveis quanto elas, agarradas à terra debaixo do chão.

As coisas que estão mortas não se ferem, não se movem, já não são, e ainda assim sente-se a maciez do toque do que foi e permanece no que é."
(Dos "Diários de Hope", a personagem em busca de contorno)

11/05/2012

Exercício - o sonho


A mulher acorda com uma palavra entre as pálpebras. Lezíria. Vê as letras através dos cílios, dentro daquele tempo diminuto que vigora entre sono e vigília. Nem sabe exatamente se é assim que se chamam as margens transbordadas dos rios das planícies quando chove além do previsto. Ou quando chovem as águas certas no tempo certo. 

Lezíria. Há um traço de infância por entre os espaços das letras.

Deixa-se estar na cama, cortinas ainda fechadas, um azul filtrado pela cambraia branca. Dentro do seu sono há um árabe campino por trás da palavra – a galope, barrete vermelho, sua vara de tocar o gado erguida como lança preparada para a guerra. Não se lhe veem os olhos, nem a boca, transida num esgar amargo de vida mal preenchida. Atravessa o campo alagado, os cascos respingando água nos olhos entreabertos da mulher que ainda agora dormia. As margens do rio não param de transbordar, a lezíria inundada, o rio escorregando pra dentro da terra, sem força, sem peso, sem pressa. O mais fértil dos mundos debaixo d´água.

Quando as águas refluem, a terra encharcada abre-se à semente. Sua e contrai-se, a água em si que se seca, a terra magra, escura, como ossos que se desenterraram e secam ao sol. O campino toma emprestado o vigor que o rio lhe concede, e atravessa os campos cultivados com tranquilidade e orgulho, seu cavalo de cabeça baixa sem nada respingar.

A mulher vê-se atravessando a ponte de ferro por cima da lezíria e do rio. É ela, mas está magra e ossuda como a terra. Reduz a velocidade a meio, os campos alagados a seu lado virando-se sobre si mesmos para vê-la passar. A mulher freia e para. Desce e anda pela margem; a chuva que já se sente inchando o caudal do rio, as beiradas de bocas abertas à água que se anuncia. A colheita está feita e no campo só sobra o restolho amarelo queimado de sol. A mulher anda sobre ele, e ele estala sob seu peso. Fios de água escorrem por entre as hastes quebradas; molham-lhe as pernas e fazem-na voltar à ponte.

As cortinas ondulam na janela, abandonando a sombra do campino que já é passado. A mulher levanta-se, o lençol em desalinho, os olhos encharcados como lezíria em flor. Como um dia após o outro, a chuva, a semente, a colheita.

08/05/2012

Notícias do canteiro

Perguntam-me sobre a obra. Aliás, perguntam como ficou. Como se alguma coisa por estas bandas estivesse no ponto de "ficar". Só rindo, mesmo! Não: tudo movente, nada fixo, como queria David Mourão Ferreira, o poeta português perito em lapidação de palavras e formas. Lapidar a vida: deve ser essa a lição que preciso aprender.

O ponto da obra, então. Ontem o céu se entalou entre os palitos de laje. Faltaram as escoras, por isso mais um atraso no advento do fim. Em breve (espero) haverá um teto, mas por enquanto o que nos cobre é esse céu azul pleno, semeado da esperança de que não chova. Roupa? Não se lava mais, perdeu-se o varal, a tomada... Lavar o chão? Sem sentido, igual lavar calçada. Deixam-se as coisas como estão. Assim como a alma, atropelada pelos carrinhos de cimento que circulam até mesmo de noite e até mesmo quando o pedreiro não vem, espremida por todos os lados da vida.

Estranho viver num canteiro de obras. Mesmo sem mania de limpeza, irrita o pó por todo lado, brincando de esconde-esconde com o bom humor, atrás dos tijolos que aguardam a parede que não vem, a fome, a sede, tudo agoniado do lado de dentro da gente. Um teste de paciência para o tempo que passa tão devagar, o dia de amanhã custando a chegar.

05/05/2012

A cidade nova X - o presente

Dona M. fez aniversário dia 25 de abril. Achei tão simpático (e revolucionário) fazer aniversário nessa data que resolvi visitá-la e levar-lhe um presente, e ainda umas flores. Flores, por aqui, é fácil encontrá-las; a duas quadras do cemitério, não faltam floriculturas em volta. Dia bonito, vou a pé escolher uma orquídea chocolate, suas flores miúdas delicadamente traçadas a marrom escuro. Bonito demais. E grande. Sorrio satisfeita, não tem coisa melhor do que dar presentes aos outros.

Volto para casa e embrulho um de meus livros. Não tenho papel, então o embrulho será invisível, mas a fita que o amarra fará as vezes do movimento de abrir que um presente demanda. Presentes abrem-se, deixam-se entrar, percorrem-se com os olhos, com as mãos, com a vontade. Deixam-se ficar ali, empoleirados em algum lugar da sala, e a cada vez que a vista pousar neles, quem fez a oferta materializa-se. Oferecer multiplica-se em quem sabe receber.

Dona M. espreita de dentro de casa com um sorriso espantado, e só então me dou conta de que talvez o presente em uma das mãos, o vaso repentinamente descomunal na outra, a visita a essa hora em que ninguém se visita, tudo isso junto, seja demais. E coro, vermelha de súbita vergonha de ter-me preenchido tanto da vontade de agradar ao outro que de repente tenha me perdido dos limites que se respeitam em situações assim. Mas o sorriso estampado de Dona M. não é desse tipo de espanto, mas da vida não lhe trazer presentes e flores todos os dias para diante de seu portão, que ela nem consegue abrir de tão atrapalhadas ficaram as suas mãos. E eu, que tinha pressa, e precisava só dizer-lhe com um gesto o quanto me alegrava e confortava a sua presença na minha vida, vejo-me rebocada para dentro dessa casa desocupada de quem já morreu. Passeio pelos quartos que se mantêm como se seus ocupantes fossem voltar a qualquer momento, como se os filhos que se foram pudessem sonhar ainda nesse travesseiro macio à meia luz, como se o marido morto pudesse perambular ainda e criticar-lhe as compras feitas sem raciocinar, diria ele. Dona M. conduz-me pela mão e eu deixo-me ir, porque eu não gosto de não deixar-me ir. Permito que entre em meu tempo e o desalinhe, que agarre a minha mão e a faça percorrer a sua vida, o seu passado, a colcha de presente que ganhou da nora viúva e de que não gostou, mas usará porque não importa o seu gosto, importa retribuir. Porque presentes, diz-me ela, são pedaços do outro, e pedaços do outro guardam-se para que o outro não se falte. Filósofa, minha vizinha.

Dona M. gosta tanto de receber presentes quanto de os dar. Mostra-me um freezer cheio de doces que não pode comer por causa da diabetes, e que faz para dar aos outros. Um armário cheio de panos de prato debruados a crochê, para quando perceber que alguém pode gostar. E conta-me tantas histórias que perco a hora, perco o compromisso, chego atrasada. Mas passo o dia sorrindo, pensando em Dona M. que pensará em mim no seu caminho da sala pra cozinha, e tropeçar nas flores, e da cozinha pro quarto, quando se deitar à noite, colocar seus óculos e me deixar embalar-lhe os sonhos.


26/04/2012

Side writing

O mapa da cidade em que nasci, Caldas da Rainha, é cheio dessas encruzilhadas surpreendentes a que chamamos (ao menos, em Portugal) becos. Beco do Forno, Beco do Estragado, Beco do Arneiro, Beco da Fé, Beco da Fonte, Beco do Borralho. Não são lugares de passagem, mas de ficagem. De entrar e sair pelo mesmo lugar. Não conduzem, são caminhos sem saída. Exatamente como alguns dos textos que me sucedem a meio do processo de criar e que não vão para lugar algum, sequer pertencem. Apenas aparecem e ficam, e me deixam estar quieta a observar detalhes de uma cidade interna que se constrói aos poucos, da memória dos tempos, da vida que pulsa por baixo do que é aparência. É de becos cheios de letras que a minha escrita tem se alimentado ultimamente.

E porque a palavra beco não agrada a muitos (já percebi), decidi chamar a esse processo de side writing. Assim, em inglês, que é como pensei no assunto, e porque não consigo chegar a nenhuma tradução que me deixe satisfeita. Side writing pode ter um efeito extraordinário sobre a criação de texto. Da seguinte forma.

Imagine-se submerso num ambiente qualquer de ficção - sendo, portanto, ficcional, situa-se naquela linha nem tão imaginária entre a sanidade e a loucura. As coisas são, mas não existem. As pessoas vivem, mas ninguém ainda as vê. As situações acontecem, mas não são palpáveis. E por aí vai.

Você está, então, imerso nesse ambiente paralelo à sua vida normal, aquela que inclui (existentes, visíveis e palpáveis) filhos, companheiro, amigos, supermercado, mecânico, almoço e jantar, roupa, vassoura, escritório, vizinhos, ruas, dentista, escola e esse looongo etcétera que você já desenhou para você mesmo. Esse ambiente outro, o da ficção, que se insinua por entre as esquinas dessa vida de fato, curva a sua vida como uma bola arremessada com efeito; faz com que o movimento usual se desvie um tudo nada, mas o suficiente para transformar-se em estado de alerta, inclinando imprevisível e irremediavelmente tudo o que você vive. Gerando angústia e premência. E assim se vai, o dia inteiro perambulando de uma janela a outra, inconformadas ambas de que não se lhes preste atenção plena.

Buscando solução para viver nesses dois universos sem prejuízo a nenhum deles, tentam-se formas de organização: estabelecem-se horários, rotinas, métodos e locais para a revelação completa dessa vida quase e tão real quanto a outra. Porque é isso que o universo ficcional quer: revelar-se e ser revelado. A todo custo. E de repente, naquele minuto tão esperado e aguardado, de repente de repente de repente não há nada dentro dessa vida para ser dito. Assim que há tempo, desaparece. Há só um branco, muito bem distribuído entre mente, papel e tela. E fica a ficção prejudicada, as personagens de boca aberta sem saberem as próprias falas, as ondas do mar paradas, os ciclistas espantados porque as suas pernas não pedalam. O coração, que se queria calmo e satisfeito, num turbilhão aflito.

É nessa hora, descubro nos últimos tempos, que é preciso sair da estrada principal e procurar os viecu - as vias pequenas, os becos, os caminhos que parecem não levar a lugar algum. Por isso esses side writing, por isso sair do arquivo principal em que se sucedem os capítulos da história, e ganhar tempo com detalhes e recortes tão ínfimos quanto uma carta de amor que se escreve, a resposta que se recebe, o arrumar de uma mala, uma página de diário, cenas do cotidiano de personagens que se nos colam ao corpo como visgo.

Os textos que se produzem nessa bola de efeito que decido chamar de side writing ficam assim, quietinhos. Lado a lado com a autoestrada em que a ficção se transformou. Alimentam-na, permitem que respire, que se afaste de si mesma para perceber-se melhor. Quase como se a deitássemos no divã, e puséssemos suas personagens em fila diante da porta do analista. Esperam ajuda para serem descobertas, para entenderem as situações todas que lhes tiram véus e cortinas da frente. Cada texto que pula dos meus dedos para a página é, creio, uma sessão bem sucedida.

25/04/2012

Exercício - a mala de viagem

"Acordas-me de manhã, ainda escuro, para que faça a mala. Segredas-me ao ouvido que não esqueça de levar-te - e por isso és a primeira coisa que ponho na minha bagagem. O lugar que elejo para guardar as coisas que não quero perder, a nenhum preço.

Agasalho-te com a toalha com que me enxugarei no primeiro banho em meu destino. Uma toalha densa como as tuas mãos, para que os poros da minha pele se aqueçam na tua lembrança. Uma toalha áspera, que me arranhe e dilacere como o fazem as tuas unhas ao me arrancarem do sono.

Do outro lado, esticadas junto às tuas costas aquáticas e lisas, as roupas com que me vestirei primeiro, quentes do teu corpo que não arrefece. E depois, aqui e ali, o resto. As poucas coisas de que precisarei numa mala para ir a qualquer lugar: uma roupa para o dia, uma outra para a noite. Uma para ir dançar, o sapato que não dói, um outro que levarei para caminhar nas madrugadas da cidade aonde for. Porque sem a tua presença a meu lado meu sono é pouco, minha noite é curta, a cama expulsa-me de seus lençóis. Percorro a cidade noturna, vestida com a roupa que se confunde com as esquinas, que não desafina o coro dos seres que vivem de noite e dormem de dia. Quando a madrugada for atropelada pelo sol, troco-me por uma roupa mais leve, do tecido dos sonhos que tenho acordada.

Um perfume, talvez. Leve, como a aragem que deixas ao passares por mim na direção da porta. Como nos dias em que me acordas e me tiras da cama, dando-me banho para me despedires e para que leve em mim a marca do teu corpo todo, os teus lábios pregados a cada pequena estreiteza da minha pele.

Mas primeiro, antes de tudo, quero e deixo que me acordes. Devagar, lenta e profundamente. Mesmo com os sentidos todos já despregados, fecho os olhos e finjo dormir ainda, para que insistas no meu acordar, e fiquemos ambos inquietos, despertos, sedentos já do dia em que eu voltar.

A mala, essa, pode esperar."





24/04/2012

25 de abril lat -21° 47' 40'' long -48° 10' 32''


Meia noite em Portugal.

Antecipo-me à madrugada porque, pela primeira vez em tantos anos, minha mãe não me acordará com o seu “25 de abril sempre!” às 4 da manhã de Lisboa. Por uma dessas muito raras coincidências, sempre pudemos, ela e eu, estender-nos um fio de telefone que nos fizesse lembrar-nos de que uma está e a outra também, e a liberdade sempre estará, todos os anos, desde 74 . Desta vez, porém, os fios de telefone não conseguirão encontrar-se, apesar de todas as tecnologias. E esta será uma madrugada mais longa, de repente, porque pensei nisso quando lá já é amanhã e aqui ainda é hoje.

Dentre tudo o que me habita e vive guardado atrás desse dia de primavera é provável que a maior memória sejam os versos que ouvia de pequenina, quando ainda não podiam ser cantados.  Versos de Manuel Alegre, entoados pela minha mãe, que gostava de ouvi-los na voz de Adriano Correia de Oliveira, faziam-me adormecer. Embalou-me muitas vezes com essas palavras, esse fado coimbrão revolucionário que às vezes aparece dentro dos meus ouvidos sem que eu tenha chamado por ele. Como se me dissesse, caso esqueça, quem sou e de onde venho. É bom, quando isso acontece, apesar do risco de surto melancólico...

Hoje de manhã, uma amiga querida mandou-me de presente um video de Mercedes Sosa cantando os versos do chileno Julio Numhauser, Todo Cambia. E este 25 de abril, tão diferente dos que madrugaram na minha vida nos últimos anos, muda tudo. Porque tudo mudou, desde a minha mãe que não telefonará até eu que preciso acostumar-me a estar mais sozinha do que gosto neste dia. Consola-me descobrir que até os Capitães de Abril, neste 2012, mudam, e se recusam a estar presentes na cerimônia oficial da Revolução, de tão longe veem que está Portugal daquilo que os moveu. E também ali não estará Mario Soares, e assim até a memória vai mudando num mundo que vai ficando de cores diferentes, e eu desisto de querer achar quais prefiro. Tantas voltas que o mundo dá, tantas que sequer as vemos. A algumas, só damos por elas quando nos ultrapassam e surpreendem lá na frente – aqui na frente. Quando tudo muda tanto que se torna irreconhecível, nós mesmos diante dos nossos espelhos – e, de repente, por causa de uma data, por causa dos cravos que aqui em casa já sorriem de dentro da jarra, tudo vibra e é pleno, justamente porque mudou, e porque tudo o que este dia nos diz é que as utopias podem ser realidades e tudo pode ser sempre diferente.

(-21° 47' 40'' long -48° 10' 32'': coordenadas de Araraquara/SP)





Trova do vento que passa
Manuel Alegre/Adriano Correia de Oliveira

Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.
o vento nada me diz.

Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.

Exercício - a resposta

"'Ah, meu bem', lê Isaura à sombra dos ciprestes, 'que pena não te ter agora junto à saudade.' E Isaura estremece porque ouviu a própria voz, oculta pelo tronco da árvore que lhe distende as costas. O silêncio do cemitério agrada-lhe - ali, ninguém a incomodará se chorar, ninguém virá perguntar-lhe porque fecha os olhos e se apoia na árvore esguia, imóvel numa espécie superfície de dor sufocada. Não: aqui está em segura e absoluta solidão, a não ser pela carta em suas mãos.

O envelope rodopia entre seus dedos, resistindo a ser aberto. A marca dos tipos da máquina de escrever passeia-lhe pelas pontas dos dedos. Suas unhas vermelhas ressaltam a brancura do papel e num de repente a lateral se rasga, para fazer nascer a carta  qual feto de dentro dela. O papel não escorrega. Isaura abre mais. Isaura tem paciência, não há nada em seus gestos que seja irmão da inquietude, da pressa, da ânsia. Não: Isaura está calma porque o tem entre as mãos. Em forma de papel, mas ainda assim entre as mãos, qual bicho que desabrochará entre as palmas, resfolegando e arfando como se no último minuto.

Os olhos de Isaura sorriem. Sorriem do segredo tipográfico, por que não uma carta manuscrita? Por que reescrever tantas vezes à máquina, só para um resultado tão perfeito, tão homogêneo, tão equilibrado, tão contido? E seus olhos sorriem porque no fundo ela sabe. No fundo, lá num lugar onde às vezes as coisas se escondem, ela sabe. As grandes paixões: Isaura guarda-as lá, e elas escondem-se, e querem enganá-la. Dizem que nada do que sente se aproxima do sentimento - que haverá outras coisas no lugar, que nem de si mesma ela se deve fiar, que dirá dos outros, Isaura preste atenção em nós agora, olhe só para dentro, agora. Mas os olhos sorriem antes de Isaura perceber que a boca se contrai. E nem ouve essas tímidas imprecações das paixões que a invadem.

E logo o papel segreda-lhe, lá de dentro: 'Ah, Isaura, meu bem.' E a tarde será curta para o amor que se desfia de todas as letras de Armindo. Isaura vai esperar anoitecer para voltar para casa, atordoada depois de todas as linhas."

20/04/2012

No avião, as poltronas



Braços de poltrona são terra de ninguém. Espaços de propriedade indefinida – ganha-os quem lhes chega antes com os próprios braços, quem é mais ousado e se atreve a deslocar o cotovelo alheio, quem tem a seu lado alguém que gentilmente cede esse estreito espaço. De vez em quando, há cotovelos que se permitem o toque, forma de permitir que ambos passageiros apoiem seus braços e viajem tranquilos. Cada vez mais raras, pessoas assim. Cada vez mais raro permitir o toque. Uma pena.

Indo e voltando de Porto Alegre, escolho sentar-me num assento do meio. Nem corredor, nem janela. Justa e sintomaticamente, são essas as poltronas que sobram para quem chega atrasado ao aeroporto, o que me oferece duas oportunidades de conhecer gente nova, e de perceber mais coisas a respeito de braços de poltrona, que é meu verdadeiro motivo aqui. Na escrita.


À minha esquerda, à janela, Sandra sentou-se armada de óculos escuros, revista e tablet. Armas contra intrusos, penso. Mas eu me levantei logo cedo com vontade de gente, essas barreiras não têm efeito qualquer sobre mim. Aliás, tornam-se mais é motivos. "O que você está lendo?", "faz tempo que usa tablet?", "lindos, esses seus óculos..." – levanto rapidamente uma série de formas de aproximação. Escolho a primeira, é a mais sincera.
Sandra lê “Os livros dos outros”, de Fernanda Young, que por sorte eu já li, e assim a conversa acontece de fato. Linguagem interessante a da Fernanda (assim mesmo, nessa intimidade de primeiro nome...), uma forma de angústia obsessiva bem trabalhada, as ideias entrelaçando-se aos poucos à nossa própria conversa. Sandra mora em Porto Alegre e vai passar o feriado a São Paulo. E pega o livro dela, e eu pego os meus “Contos italianos” de Górki, e ambas alisamos as capas antes de abrir os livros. No encontro de braços da poltrona, reparo que a pele de Sandra é morna e não refuga o contato. Sorrio para dentro do livro, antecipando o resto da conversa que virá.

Espio pelo canto do olho o homem sentado à minha direita. Marcelo veste terno, gravata, sapato social, cinto preto. Viaja compenetrado, deve ser um homem sério preocupado com o sucesso; a custo diz-me o seu nome e conta que é publicitário. Feriado? Não, viaja a trabalho, para ele não há feriados. Desliga o celular conforme pedem, fecha os olhos e dorme de forma instantânea, seu braço sequer percebendo que existe onde apoiar-se. Não vou saber mais nada de Marcelo. De Marcelo para o livro, e do livro para Sandra.

Conversamos sobre o impulso que é preciso para a decolagem, um esforço incrível de motores, tremor, barulho, excitação do voo que se aproxima e se torna êxtase recompensado: voa-se. Como se um orgasmo de nave, penso mas não digo. Conto até 10 assim que o trem de pouso larga a terra, porque alguém me disse um dia que é nesses segundos que o avião pode explodir. Bobagem, tenho quase certeza, mas ainda assim conto, e sorrio quando termino. Sandra voa muito, vai a cada quinze dias para São Paulo, onde vive sua namorada. Ela gosta, assim – talvez a relação não se desgaste, talvez a distância nos preserve, talvez a frequência não se intrometa entre a verdadeira vontade de sermos, e talvez assim prolonguemos a felicidade por mais tempo, quem sabe talvez nos amemos para sempre. Leio-lhe nas palavras uma melancolia urbana, que se parece com a de Young, numa contaminação gostosa da pessoa pelo que lê. Depreendo que sabe de fato ler, e bem; que se entrega às palavras e as deixa entrar dentro dela e fazer-lhe morada. Olha-me bem nos olhos, como se de repente se apercebesse de que era comigo que falava e diz-me que é isso mesmo, que é para isso que lê, para ser permeada pela palavra do outro.

Passa rápida, essa hora e pouco de voo. Conversamos pouco, depois dessa troca tão límpida. Porque nos debruçamos cada qual sobre as palavras dos outros, para nos contaminarmos e nos salvarmos de nós mesmas, das nossas prisões todas, nossos desgostos, nossos anseios, nossas dúvidas. Como se pudéssemos viver a vida alheia sem sair nem por em perigo a nossa. E ao fechar o livro sermos mais do que éramos, por contermos mais humanidade dentro dos olhos. É por isso, dizemo-nos em silêncio, que lemos. E à saída trocamos um olhar de despedida que ressurge aqui, no papel em branco, um sintoma do poder de criação dos livros e das pessoas que os leem.