Braços de poltrona são terra de
ninguém. Espaços de propriedade indefinida – ganha-os quem lhes chega antes com
os próprios braços, quem é mais ousado e se atreve a deslocar o cotovelo
alheio, quem tem a seu lado alguém que gentilmente cede esse estreito espaço. De
vez em quando, há cotovelos que se permitem o toque, forma de permitir que
ambos passageiros apoiem seus braços e viajem tranquilos. Cada vez mais raras,
pessoas assim. Cada vez mais raro permitir o toque. Uma pena.
Indo e voltando de Porto
Alegre, escolho sentar-me num assento do meio. Nem corredor, nem janela. Justa
e sintomaticamente, são essas as poltronas que sobram para quem chega atrasado
ao aeroporto, o que me oferece duas oportunidades de conhecer gente nova, e de
perceber mais coisas a respeito de braços de poltrona, que é meu verdadeiro
motivo aqui. Na escrita.
À minha esquerda, à janela,
Sandra sentou-se armada de óculos escuros, revista e tablet. Armas contra
intrusos, penso. Mas eu me levantei logo cedo com vontade de gente, essas
barreiras não têm efeito qualquer sobre mim. Aliás, tornam-se mais é motivos. "O
que você está lendo?", "faz tempo que usa tablet?", "lindos, esses seus óculos..." –
levanto rapidamente uma série de formas de aproximação. Escolho a primeira, é a
mais sincera.
Sandra lê “Os livros dos outros”,
de Fernanda Young, que por sorte eu já li, e assim a conversa acontece de fato.
Linguagem interessante a da Fernanda (assim mesmo, nessa intimidade de primeiro nome...), uma forma de angústia obsessiva bem trabalhada,
as ideias entrelaçando-se aos poucos à nossa própria conversa. Sandra mora em Porto Alegre e vai
passar o feriado a São Paulo. E pega o livro dela, e eu pego os meus “Contos
italianos” de Górki, e ambas alisamos as capas antes de abrir os livros. No encontro de braços da poltrona, reparo que a pele
de Sandra é morna e não refuga o contato. Sorrio para dentro
do livro, antecipando o resto da conversa que virá.
Espio pelo canto do olho o homem
sentado à minha direita. Marcelo veste terno, gravata, sapato social, cinto
preto. Viaja compenetrado, deve ser um homem sério preocupado com o sucesso; a
custo diz-me o seu nome e conta que é publicitário. Feriado? Não, viaja a
trabalho, para ele não há feriados. Desliga o celular conforme pedem, fecha os
olhos e dorme de forma instantânea, seu braço sequer percebendo que existe onde
apoiar-se. Não vou saber mais nada de Marcelo. De Marcelo para o livro, e do
livro para Sandra.
Conversamos sobre o impulso que é
preciso para a decolagem, um esforço incrível de motores, tremor, barulho, excitação
do voo que se aproxima e se torna êxtase recompensado: voa-se. Como se um orgasmo de
nave, penso mas não digo. Conto até 10 assim que o trem de pouso larga a terra,
porque alguém me disse um dia que é nesses segundos que o avião pode explodir.
Bobagem, tenho quase certeza, mas ainda assim conto, e sorrio quando termino.
Sandra voa muito, vai a cada quinze dias para São Paulo, onde vive sua namorada.
Ela gosta, assim – talvez a relação não se desgaste, talvez a distância nos
preserve, talvez a frequência não se intrometa entre a verdadeira vontade de
sermos, e talvez assim prolonguemos a felicidade por mais tempo, quem sabe talvez nos amemos para sempre. Leio-lhe nas
palavras uma melancolia urbana, que se parece com a de Young, numa contaminação
gostosa da pessoa pelo que lê. Depreendo que sabe de fato ler, e bem; que se
entrega às palavras e as deixa entrar dentro dela e fazer-lhe morada. Olha-me
bem nos olhos, como se de repente se apercebesse de que era comigo que falava e diz-me
que é isso mesmo, que é para isso que lê, para ser permeada pela palavra do
outro.
Passa rápida, essa hora e pouco
de voo. Conversamos pouco, depois dessa troca tão límpida. Porque nos
debruçamos cada qual sobre as palavras dos outros, para nos contaminarmos e nos
salvarmos de nós mesmas, das nossas prisões todas, nossos desgostos, nossos
anseios, nossas dúvidas. Como se pudéssemos viver a vida alheia sem sair nem
por em perigo a nossa. E ao fechar o livro sermos mais do que éramos, por
contermos mais humanidade dentro dos olhos. É por isso, dizemo-nos em silêncio,
que lemos. E à saída trocamos um olhar de despedida que ressurge aqui, no papel
em branco, um sintoma do poder de criação dos livros e das pessoas que os leem.