20/04/2012

No avião, as poltronas



Braços de poltrona são terra de ninguém. Espaços de propriedade indefinida – ganha-os quem lhes chega antes com os próprios braços, quem é mais ousado e se atreve a deslocar o cotovelo alheio, quem tem a seu lado alguém que gentilmente cede esse estreito espaço. De vez em quando, há cotovelos que se permitem o toque, forma de permitir que ambos passageiros apoiem seus braços e viajem tranquilos. Cada vez mais raras, pessoas assim. Cada vez mais raro permitir o toque. Uma pena.

Indo e voltando de Porto Alegre, escolho sentar-me num assento do meio. Nem corredor, nem janela. Justa e sintomaticamente, são essas as poltronas que sobram para quem chega atrasado ao aeroporto, o que me oferece duas oportunidades de conhecer gente nova, e de perceber mais coisas a respeito de braços de poltrona, que é meu verdadeiro motivo aqui. Na escrita.


À minha esquerda, à janela, Sandra sentou-se armada de óculos escuros, revista e tablet. Armas contra intrusos, penso. Mas eu me levantei logo cedo com vontade de gente, essas barreiras não têm efeito qualquer sobre mim. Aliás, tornam-se mais é motivos. "O que você está lendo?", "faz tempo que usa tablet?", "lindos, esses seus óculos..." – levanto rapidamente uma série de formas de aproximação. Escolho a primeira, é a mais sincera.
Sandra lê “Os livros dos outros”, de Fernanda Young, que por sorte eu já li, e assim a conversa acontece de fato. Linguagem interessante a da Fernanda (assim mesmo, nessa intimidade de primeiro nome...), uma forma de angústia obsessiva bem trabalhada, as ideias entrelaçando-se aos poucos à nossa própria conversa. Sandra mora em Porto Alegre e vai passar o feriado a São Paulo. E pega o livro dela, e eu pego os meus “Contos italianos” de Górki, e ambas alisamos as capas antes de abrir os livros. No encontro de braços da poltrona, reparo que a pele de Sandra é morna e não refuga o contato. Sorrio para dentro do livro, antecipando o resto da conversa que virá.

Espio pelo canto do olho o homem sentado à minha direita. Marcelo veste terno, gravata, sapato social, cinto preto. Viaja compenetrado, deve ser um homem sério preocupado com o sucesso; a custo diz-me o seu nome e conta que é publicitário. Feriado? Não, viaja a trabalho, para ele não há feriados. Desliga o celular conforme pedem, fecha os olhos e dorme de forma instantânea, seu braço sequer percebendo que existe onde apoiar-se. Não vou saber mais nada de Marcelo. De Marcelo para o livro, e do livro para Sandra.

Conversamos sobre o impulso que é preciso para a decolagem, um esforço incrível de motores, tremor, barulho, excitação do voo que se aproxima e se torna êxtase recompensado: voa-se. Como se um orgasmo de nave, penso mas não digo. Conto até 10 assim que o trem de pouso larga a terra, porque alguém me disse um dia que é nesses segundos que o avião pode explodir. Bobagem, tenho quase certeza, mas ainda assim conto, e sorrio quando termino. Sandra voa muito, vai a cada quinze dias para São Paulo, onde vive sua namorada. Ela gosta, assim – talvez a relação não se desgaste, talvez a distância nos preserve, talvez a frequência não se intrometa entre a verdadeira vontade de sermos, e talvez assim prolonguemos a felicidade por mais tempo, quem sabe talvez nos amemos para sempre. Leio-lhe nas palavras uma melancolia urbana, que se parece com a de Young, numa contaminação gostosa da pessoa pelo que lê. Depreendo que sabe de fato ler, e bem; que se entrega às palavras e as deixa entrar dentro dela e fazer-lhe morada. Olha-me bem nos olhos, como se de repente se apercebesse de que era comigo que falava e diz-me que é isso mesmo, que é para isso que lê, para ser permeada pela palavra do outro.

Passa rápida, essa hora e pouco de voo. Conversamos pouco, depois dessa troca tão límpida. Porque nos debruçamos cada qual sobre as palavras dos outros, para nos contaminarmos e nos salvarmos de nós mesmas, das nossas prisões todas, nossos desgostos, nossos anseios, nossas dúvidas. Como se pudéssemos viver a vida alheia sem sair nem por em perigo a nossa. E ao fechar o livro sermos mais do que éramos, por contermos mais humanidade dentro dos olhos. É por isso, dizemo-nos em silêncio, que lemos. E à saída trocamos um olhar de despedida que ressurge aqui, no papel em branco, um sintoma do poder de criação dos livros e das pessoas que os leem.

2 comentários:

  1. Ana,

    De repente, não exatamente desta vez, sua escrita me chegou simples, à vontade e intensa... quase um parto natural(visto pelo pai!)

    Obrigado!

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  2. Aninha,
    Vôo de asas que se ampliam a cada imagem, a cada palavra. Porto Alegre pra mim faz tempo que vive longe/perto de um jeito que só se corrige com viagem (seja de verdade ou na imaginação). Tenho viajado contigo pra lá nessas pequenas e deliciosas gotas de literatura que teimas em postar aqui. Que bom. Obrigada, querida mestra!
    Desta vez sentei ao teu lado, entre Marcelo e tu (já que ele nem te percebeu,bobalhão!), meu cotovelo conversando com o teu. Sim, vi a Sandra e imaginei a namorada esperando por ela no aeroporto de Sampa.Há tempo aprendi com uma querida amiga que a gente ama a pessoa, não o sexo a que ela pertence. E isso me ensinou a eliminar o preconceito que tentaram me ensinar que era a verdade. Bonito é mesmo o exercício de amar e ser amada. Que bom que a Sandra vive isso agora! Repara que olhar doce a gente vê qdo ela fala da namorada... coisa bonita,sô!
    Agora, cá entre nós, pra mim o olho brilha mesmo é por voz grossa, pelo no peito e abraço de urso.
    E por falar nisso, reparou que guapos são os gaúchos? Especialmente os que a gente vê na Redenção,tomando chimarrão na sombra do sinamomo e proseando sem pressa num final de tarde.
    Ah... saudade disso tudo,guria!
    Obrigada pela viagem e até breve.
    Beijo com LUZ,
    Neca Terra

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