Seu Devair está por aqui, nessa sua barbearia, desde 1958. Nos seus 77 anos bem vividos (diz), viu de tudo. Viu a cidade mudar em volta, viu a segurança ceder espaço às chaves, trancas, portões, cadeados. Viu a família minguar, as ruas crescerem, as modas mudarem. Já a barbearia, mudou pouco - mesma tesoura, mesma lâmina, mesma cadeira. Mesmas quatro paredes diante da porta única, aberta ao jardim da praça, a mesma pia, o mesmo espelho.
"Mas eu", diz ele, "eu mudei. Hoje eu sei que sou mais feliz do que era antes. E hoje eu sou mais vaidoso também, por isso comecei a tingir o cabelo, tá vendo?". E me mostra orgulhoso, num esgar de moleque que não some da vida por muito que ela avance, o cabelo bem preto emoldurando o rosto vincado pelo tempo. Seu Devair põe e tira a dentadura a todo instante. É quase um processo hipnótico, e eu preciso lembrar-me várias vezes de desviar o olhar que provavelmente está fixo nesses maxilares imparáveis, o lábio que pende e se recolhe de repente, sem parar sem parar sem parar.
Chegam dois outros clientes, um da idade de Seu Devair, outro parecendo décadas mais velho. Sentam-se ao meu lado, um à direita e outro à esquerda. Seu Ambrósio (invento-lhe um nome, porque não fala), chapéu surrado, camisa branca de botões desencontrados, tem um tique nervoso em volta dos olhos, deve ser parente da dentadura de Seu Devair; abrem e fecham sem parar, debaixo de umas sobrancelhas espessas, fartas, silenciosas. Mantém as mãos dentro dos bolsos da calça, mesmo sentado, e não diz uma palavra. Deve esperar pela sua vez. De vez em quando inclina-se para ver o que passa na rua. Das três cadeiras para quem espera, neste espaço de 14 metros quadrados, olhar para fora é quase uma necessidade. Em vez de lhe chamar Ambrósio, prefiro chamar-lhe Paciência.
Ao meu lado direito está Eustáquio. Só sei que se chama assim porque Seu Devair o cumprimenta, assim que a filha o deixa na porta da barbearia, avisando-o que o recolherá daqui a duas horas - como se fosse uma encomenda que o tempo leva e traz a todo instante. Seu Eustáquio parece vindo de outras eras. O rosto pendurou-se ao longo dos anos; o queixo vive agora muito lá embaixo, tão longe dos olhos encovados, de um azul que parece ter perdido a luz, a boca entreaberta porque o maxilar e a gravidade a puxam para baixo. Muito (mas muito) corcunda, parece um pequeno anão, embora não o seja. A calça, hoje larga, está presa por um cinto ao qual alguém foi acrescentando com o tempo vários furos. A cintura é fina fina fina, quase uma linha, se se olhar de lado. Seu Eustáquio olha para mim de tempos em tempos - quando me viro para sorrir-lhe, desvia o rosto rapidamente, o que não combina com a sua lentidão arrastada ao andar. Talvez Seu Eustáquio tenha desistido de se comunicar com o mundo, e prefira recolher tudo o que olha dentro de si, para quem sabe lembrar-se à noite, quando se deitar e não tiver no que pensar porque a vida se esvaiu.
Meu filho, enquanto isso, corta o cabelo. Foi isso afinal que nos trouxe aqui, e o preço em conta, que este meu filho pesquisa e persegue com maestria. Hoje, porém, não foi feliz na escolha: sai de lá torcendo para que o cabelo cresça rápido, passando o dedo no pequeno corte que os 77 anos de Seu Devair fizeram na sua nuca. Mas, como eu, reparou em tudo, e assim temos assunto enquanto subimos rua acima, pensando em quanto as cidades mudam, as pessoas mudam e nós próprios mudamos, sobrevivendo a nós mesmos. A idade é só um acidente, concluímos, que cada um ultrapassa a seu modo. Não há nada que, entretanto, não nos enriqueça.
Esta é prima das minhas!
ResponderExcluirÉ mesmo, Pedro - e eu estou com saudades das suas...
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