01/04/2012

Quijoteces


“Allá donde están los molinos del Quijote”: foi assim que ele se apresentou na roda em que estávamos, quando lhe perguntaram de onde vinha. E isso foi o bastante. O namoro, o meu primeiro, durou poucos dias; sequer me lembro do nome dele, nem consigo ver-lhe o rosto ao fechar os olhos. Só essa frase. Poucos dias, mas intensos; um acampamento, tudo novidades, a frequência diária. Quando o visitei, semanas depois, fugindo à vigilância paterna, nas suas terras de La Mancha, recebeu-me com aceitunas e queso manchego, que fomos comer debaixo das pás dos moinhos escolhidos como corpo da sua referência. A paisagem plana e lisa à nossa volta, como os sentimentos que amainavam. Inesquecível.

Cervantes acompanhou-me, de lá pra cá, aqui e ali; sofri com as Novelas Ejemplares na escola, pouco disposta a essas leituras na altura, querendo respirar só Lorca, só Rubén Darío, só Neruda. Não as li direito até hoje e, nesse meio tempo, Cervantes foi cedendo espaço a Camões.

“O homem de La Mancha” voltou anos atrás, quando Marco Antonio me pediu que revisasse a peça que seus alunos, entre eles meu filho mais velho, encenariam. Cervantes a la Broadway, numa apresentação bonita e simples na Casa das Meninas, em Botucatu, sob a batuta de Kim Marques. Hoje, precisando identificar um momento pessoal de revelação de personagens, escolho esse, achando que seja aleatoriamente e ao acaso. Não é.

Quem faz curso de letras inevitavelmente descobre em algum momento que as personagens da narrativa se dividem básica e simplesmente em personagens planas e redondas. Lembro de ter gostado demais dessa definição geométrica, metáfora perfeita para o que é preciso lembrar da história. Foi o ano de descoberta de Barthes, dos estruturalistas, das teorias da narratologia, de um Forster que dizia “Como posso saber o que eu penso, até um escutar o que eu digo?”, e isso fazia tanto sentido. O mesmo Forster que apelidou as personagens de Homo fictus, seres ficcionais no âmago de qualquer narrativa, e propôs a sua divisão nesses dois tipos, flat e round no original. Como qualquer teoria é dada às suas falhas, nem sempre consigo que as personagens que leio ou escrevo se encaixem com tanta perfeição em um ou outro lugar, mas há (lembro) exemplos lapidares, como o corajoso e bondoso Peri (plana) ou o denso e surpreendente Dom Casmurro (redonda). Personagens planas tendem ao tipo, à caricatura, à densidade nenhuma, às atitudes previsíveis, ao caminho reto e sem surpresas. Personagens redondas (ou personagens que se arredondam) são densas, imprevisíveis, nunca se sabe o que dirão, o que farão, o seu caminho é feito de transformação, e mantêm-nos num suspense que nos faz soltar ahs e ohs conforme a sua descoberta avança. Porque as personagens redondas precisam ser descobertas, conquistadas, não se oferecem de cara como as planas, que podem revelar-se numa frase apenas, que nos diz tudo e nos faz sentir que estamos satisfeitos.

Dos anos de faculdade até agora não se tornou mais fácil acoplar as ideias estruturalistas à minha prática. Não é que não goste; gosto, mas não me afino. Só isso. Por isso olho para esta minha escolha, Dom Quixote à minha esquerda, Sancho Panza à minha direita, e reluto em encaixotá-los em algum lado. Tendo a achar o Quixote até previsível – lembro-me de que, embora risse, porque não há como não rir, me cansavam as estripulias da Triste Figura, que começam a ficar previsíveis - mas sei que é geralmente considerada uma personagem redonda. E tendo a achar que Sancho é o mais imprevisível, na sua paciente e persistente decisão de acompanhar seu amo em todas as batalhas enlouquecidas – embora eu saiba que é por vezes exemplo de personagem que tende ao plano. Ambos parecem-me planas, às vezes. E ambos parecem-me redondas, logo depois. Porque há densidade e conteúdo em ambas, detalhes ricos que se descobrem aos poucos, a humanidade inesgotável de Sancho, a intrepidez alucinada de Quixote. No que preciso escrever, decido, direi que ambos são tipos alinhavados de dentro para fora, para que não seja óbvio e para que a identificação seja lenta e interna, e vou abster-me da geometria.

E, como se gostasse no minuto em que me decido por esse caminho, Sancho de repente ganha luminosidade, ao lado de um Quixote que cavalga a sombra da própria estampa. O Sancho que acompanha e vela e cuida da loucura alheia, esquecendo-se de si próprio a cada instante. Tão idealista quanto o cavaleiro, largando a vida no campo para ser o que a tradição lhe dizia que poderia ser: um escudeiro servindo a seu senhor. Carrega escudo, remédios, comida - e sobretudo equilíbrio. Gordo, analfabeto e pragmático, faz-nos rir ao longo do romance, num riso que espelha identificação das nossas mazelas humanidades cotidianas. Come demais, vomita, é mal criado - mas é ele quem cura as feridas, quem cozinha, quem leva e traz recados, quem vê rebanhos onde o outro vê exércitos, moinhos onde se levantam gigantes. As longas conversas entre os dois, pelos campos de La Mancha, são provavelmente os pontos altos do romance, talvez onde se torne mais claro o quanto um jamais sobreviveria sem o outro, o quanto um se realiza e se permite porque o outro está ao lado, vigilante ou louco.

São raras, mas há pessoas que medem o horizonte com os olhos do impossível e agem sabendo que o mundo pode acabar na próxima esquina, como se conscientes e mergulhados nos dias que se sucedem um ao outro. Como se amalgamassem sonhos quixotescos - irrealizáveis e fadados à derrota, mantendo-os vivos e pulsantes dentro de si mesmos, numa coragem que inspira e fascina – à ação impressa com pulso e decisão no cotidiano alheio, às vezes cinza, às vezes pleno de brilho. Pessoas que sonham ao estender a mão. Pessoas que estendem a mão e fazem sonhar uma vida melhor, ainda que seja impossível e tudo diga que não. Pessoas quase personagens, um risco no meio da vida, ao qual (escrevem-me lá de Porto Alegre) devemos nos dedicar, mas com cuidado, e sobretudo ao escrever.

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